“A Força do querer” e o drama das mulheres negras que você não assiste na Globo

Nesta segunda feira, 03 de abril, a Rede Globo estreou sua nova novela das 21h, “Força do querer”. Na trama, a atriz Juliana Paes interpreta uma das protagonistas do enredo, a empresária Fabiana Escobar, a Bibi Perigosa, descrita pela própria emissora como “apaixonada, entrou para o crime após se casar com um traficante, e acabou conhecida como a ‘“baronesa do pó’”.

Por Nathália Oliveira, do Justificando 

Foto: Rodrigo Lombardi/Divulgação e Juliana Paes/Conta do Instagram

O momento para abordar o tema sobre mulheres envolvidas com delitos relacionados à drogas é o mais pertinente, uma vez que o crescimento do número de mulheres presas no país é assustador. Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2014, houve um aumento de 503% no número de mulheres presas entre 2000 e 2014. Mais da metade delas está presa por tráfico de drogas.

Outros estudos revelam o rosto e o perfil dessas mulheres: elas são as pequenas vendedoras, aquelas que realizam o transporte de drogas, e são as que estão, assim como em todas as relações sociais, inseridas em lugares de subalternidade na hierarquia dessa atividade econômica. Elas também são negras, sem acesso ao emprego formal, chefes de família, pobres, com filhos pequenos, vítimas de violência doméstica e muitas relatam ter se envolvido com a criminalidade por necessidade de manter o mínimo de subsistência para si e suas famílias. Esses dados evidenciam como o racismo e o machismo é acentuado através dos mecanismos do Estado punitivista perpetrado pela atual lei de drogas.

Esse, no entanto, não parece ser esse o perfil de Bibi Perigosa. A personagem é descrita como uma mulher apaixonada pelo marido, que se envolve com o crime por conta desse relacionamento e consegue ascender economicamente por conta dessa atividade. Ainda que seja baseada em uma história real, a descrição não corresponde à dura realidade das mulheres vítimas do sistema penal brasileiro. Por isso, abordagens do tema nessa perspectiva acendem um alerta de preocupação para quem trabalha diariamente por uma outra política sobre drogas no Brasil, capaz de reverter o quadro das inúmeras violações de gênero e raça reforçadas pelo modelo atual.

As diretrizes brasileiras no trato sobre drogas compõem uma opção política que diariamente criminaliza territórios pobres, e que autoriza ações bélicas através da polícia em favelas. Nesse contexto de guerra à vida das mulheres, é possível elencar os diversos fatores que colaboram para o seu sofrimento. Quando não são encarceradas por crimes relacionados ao tráfico de drogas, precisam dar conta dos filhos, netos e maridos encarcerados ou mortos nessa guerra diária. Além de esposas, mães e irmãs, elas também são vítimas de balas “perdidas” , que sempre encontram um corpo negro como destino, como ocorreu no bárbaro caso da estudante Maria Eduarda, de apenas 13 anos, atingida dentro da Escola Municipal Jornalista Daniel Piza, em Fazenda Botafogo, Zona Norte do Rio.

A política de combate às drogas é uma política de combate às pessoas e de controle massivo da população periférica, moradora de um território onde não há garantia de direitos. Os policiais não precisam de mandados de busca e apreensão para entrar nos bairros pobres forjando flagrantes, levando e sumindo com quem quiserem, arrastando mulheres pelas ruas, matando crianças nas portas de suas casas.

Não devemos desconsiderar o papel das novelas na formação do imaginário social acerca de determinados assuntos. Personagens que não correspondem à realidade e distantes da rotina das pessoas envolvidas com a situação abordada, podem, no mínimo, induzir o espectador ao erro, para não falar sobre o reforço fantasioso de determinadas condições.

Ainda que as novelas sejam obras de ficção, elas são veiculadas em emissoras de telecomunicações que são concessões públicas. Essa característica exige que as suas produções sejam feitas com responsabilidade e não reforcem estereótipos que nada servem para uma reflexão crítica da sociedade sobre temas que custam a vida de pessoas todos os dias.

É preciso denunciar a crueldade da atual política de drogas, que se utiliza da estrutura policial, judiciária e prisional para responder ao tráfico de drogas, mascarando o verdadeiro objetivo colonialista de controle dos corpos negros por meio de uma cultura punitivista e proibicionista que autoriza o Estado a matar e encarcerar pretas e pretos. É uma escolha que fecha os olhos para a estrutura do crime organizado, que envolve os mais altos escalões políticos e econômicos da sociedade, que acabam por enriquecer e lucrar com a exploração das mulheres, a outra ponta desfavorecida da estrutura do tráfico.

É urgente uma abordagem que relacione mulheres e drogas em uma perspectiva emancipadora, apontando a necessária reforma da política de drogas. É preciso denunciar a falência da atual incapacidade de construir alternativas de superação da violência e da criminalidade financiadas pelo tráfico.

Os motivos que articulam o modelo de “proibição” às drogas são sustentados e se reproduzem nos corpos destas mulheres, exploradas pelo tráfico e submetidas aos abusos físicos e morais já rotineiros do sistema penitenciário feminino. A cultura proibicionista que coíbe as drogas é a mesma cultura que perpetua a exploração do corpo feminino. Uma produção de teledramaturgia responsável deveria prezar por articular os pontos sensíveis que estruturam essas relações de opressão ao invés de romantizar essa dura realidade a partir de uma história que é a exceção do sangue e sofrimento diário de mulheres pretas e pobres.

Nathália Oliveira é cientista social; colaboradora da ONG Centro de Convivência É de Lei, faz advocacy para o Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC) e também coordena a Iniciativa Negra por Uma Nova Política de Drogas. É a atual Presidenta do COMUDA -SP ( Conselho Municipal de Política de álcool e drogas de São Paulo) e membra do Conselho Consultivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.

Ingrid Farias, Coordenadora da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, Secretária Executiva da ABORDA, Sócia da Rede Latino Americana de Pessoas que usam drogas.

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