Fraudes expõem falhas no sistema de cotas racial

Crescimento de denúncias leva universidades a criarem comissões para avaliar a autodeclaração de raça

No início de 2015, a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) indeferiu a matrícula do então calouro cotista W.S.S (a sigla é para proteger a identidade), alegando que o estudante não comprovou ser pardo. W.S.S entrou na justiça e o imbróglio foi parar no Ministério Público Federal (MPF), que, em janeiro deste ano, decidiu em favor da UFSM.

Este ano, grupos de estudantes pelos direitos dos negros denunciaram suspeitas de fraudes no sistema de cotas racial em duas universidades federais, do Espírito Santo (UFES) e do Recôncavo da Bahia (UFRB). De acordo com os grupos, candidatos brancos estão autodeclarando-se pardos para ingressar pelas cotas. Nos dois casos, nenhum denunciado teve a matrícula cancelada. Na UFES, as denúncias também chegaram ao MPF, mas, diferentemente do ocorrido na UFSM, foi decidido pelo arquivamento no âmbito criminal.

A divergência entre as decisões das universidades e da justiça expõe uma brecha da Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, a chamada Lei de Cotas. A lei reserva vagas para negros, pardos e indígenas que estudaram o Ensino Médio em escola pública, mas não define as características de cada etnia e mecanismos para evitar fraudes. Os candidatos precisam apenas assinar uma autodeclaração para concorrer como cotista racial.

Fraudes

Os coletivos Negrada, no Espírito Santo, e NegreX, na Bahia, receberam as denúncias de fraude depois do resultado dos processos seletivos da UFES e da UFRB. As denúncias vieram de candidatos do vestibular e do Sistema de Seleção Unificada (SiSU), que, ao pesquisarem nas redes sociais colegas que se autodeclararam pardos, constataram que muitos eram brancos.

No Espírito Santo, o Coletivo Negrada recebeu cerca de 40 denúncias envolvendo calouros em cursos da UFES. “As denúncias são de que há candidatos brancos que fraudaram a autodeclaração étnico-racial para obter vantagens ao usufruir ilegalmente da subjetividade do termo ‘pardo’ para concorrer às vagas das cotas para negros e indígenas nos cursos mais privilegiados como Medicina, Odontologia, Arquitetura, Direito, Engenharias, entre outros” – afirma Mirts Sants, uma das fundadoras do Coletivo Negrada.

Entre as 40 denúncias recebidas, aproximadamente, 28 foram apresentadas à UFES e ao MPF-ES. “Não conseguimos apresentar todas porque tínhamos pressa no protocolo para dar tempo de impedir a matrícula dos fraudadores” – explica Mirts. Além dessas denúncias, outras continuam sendo recebidas pelos canais de comunicação do Coletivo ou diretamente no MPF. Já na UFRB, o Coletivo NegreX protocolou denúncia contra quatro estudantes do curso de Medicina.

O que diz a Lei

A Lei de Cotas causou muita polêmica quando foi criada, já que obrigou as universidades, institutos e centros federais a reservarem metade das vagas para candidatos que cursaram o Ensino Médio integralmente na rede pública.

Regulamentada pelo Decreto nº 7.824/2012, a Lei propõe a distribuição da seguinte forma: 50% das vagas para candidatos com renda familiar mensal de até 1,5 salário-mínimo por pessoa e a outra metade para renda acima desse valor. Dentro de cada faixa de renda, há vagas para pretos, pardos e indígenas na mesma proporção do último Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na região.

No que diz respeito aos itens cor e raça, eles ainda geram bastantes dúvidas e questionamentos, tanto no que se refere a sua definição como também em relação aos indivíduos que se enquadram nessas categorias.

Negro e pardo

Para o IBGE e o Ministério da Educação (MEC), os quesitos cor e raça são autodeclaratórios, ou seja, a própria pessoa escolhe entre as opções branco, preto, pardo, amarelo ou índio em qual ela se enquadra. A maioria das denúncias de fraude no sistema de cotas raciais é em relação aos candidatos pardos, em razão da subjetividade do termo. Afinal, o que é ser pardo?

Alguns estudos do IBGE consideram pretos e pardos como negros, mas sem distinção entre as cores. No entanto, algumas universidades e movimentos dos negros definem que indivíduos pardos são aqueles cujos pais são de raças diferentes, além de outros critérios. Nesse caso, um tom de pele mais moreno não significa necessariamente que o candidato seja pardo.

Negros no ensino superior

Atualmente, a quantidade de estudantes negros no ensino superior, bem como as oportunidades destinadas a eles, é bem maior em comparação com os anos anteriores. De acordo com o Censo da Educação Superior de 2014, estudo feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 1.734.129 estudantes autodeclararam-se negros no ensino superior; em 2010, esse número era de 684.487. Isso revela que o número de negros que ingressaram no ensino superior cresceu consideravelmente, chegando a 153%.

Outros dados divulgados em agosto de 2015, por intermédio do relatório da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir/PR), mostraram que nos dois anos de vigência da Lei de Cotas, mais de 111 mil vagas em cursos superiores de universidades e institutos federais foram destinadas a estudantes negros.

O documento mostra ainda que 60.731 vagas foram ocupadas por estudantes negros em 2014. No ano anterior (2013), esse número era de 50.937. Pelas estimativas do órgão, em 2015, 40 mil vagas foram ocupadas, totalizando 150 mil vagas nos três anos da Lei. Os números definitivos de 2015 ainda não foram conhecidos, mas a previsão é que sejam liberados este ano.

Afroconvenientes

De lá para cá, esses percentuais só têm crescido. Muitos candidatos que omitiam a presença de alguma hereditariedade afrodescendente passaram a mencionar a possível herança negra, principalmente em concursos de vestibulares, criando uma nova nomenclatura não oficial para esses casos, os “afroconvenientes”.

Geralmente, os “afroconvenientes” são pessoas pardas, ou seja, que possuem alguma miscigenação racial ligada aos negros, e, por conveniência, já que não assumiam ser dessa etnia anteriormente,  tentam ou desfrutam de todos os benefícios da chamada “democracia racial”. A maioria das denúncias tem como base casos como esses, o que levou as universidades a criarem comissões de avaliação.

Comissões

O Brasil Escola entrou em contato com todas as 63 universidades federais para verificar quais delas realizam entrevistas com os cotistas depois da aprovação no Vestibular/SiSU com o objetivo de evitar fraudes no sistema de cotas. Segundo o levantamento, seis contam com comissão para análise: Alagoas (UFAL), Ciências de Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Goiás (UFG), Mato Grosso (UFMT), UFSM e Rondônia (UNIR). Algumas averíguam a veracidade da autodeclaração apenas em casos de necessidade ou denúncia.

A UFSM foi a primeira a instituir a comissão. O presidente da Coordenadoria de Seleção e Ingresso, Jerônimo Tybusch, explica que o candidato cotista negro, pardo ou indígena precisa assinar a autodeclaração na frente da comissão, e não durante a inscrição no vestibular. “Depois da assinatura, a comissão realiza uma espécie de entrevista com o candidato, que pode justificar o motivo da autodeclaração. A justificativa pode ser por escrito ou por meio de uma conversa. O candidato também pode optar por não falar”, revela.

A administradora Ana Lúcia Melo, que faz parte da Comissão de Autodeclaração da UFSM, conta que a entrevista dura cerca de cinco minutos e que a comissão tenta deixar os candidatos à vontade. A conversa, que é informal, aborda em que momento o candidato já se autodeclarou, se já sofreu algum tipo de preconceito racial, sua opinião sobre o sistema de cotas, por que se considera negro, pardo ou indígena, quais os traços que o definem como tal, a origem dos pais e avós e a cor/raça dos pais e irmãos.

Depois da entrevista, a universidade emite um parecer deferindo ou indeferindo a matrícula do cotista. Caso o pedido seja indeferido, o candidato tem um prazo para apresentar recurso e entregar fotos e documentos que comprovem sua etnia. “Não é só o candidato que precisa sentir-se negro, pardo ou indígena, as outras pessoas também precisam enxergar esses traços nele”, reitera Ana Lúcia. Sobre a polêmica em torno da cor parda, Melo conta que o candidato precisa ter pais de diferentes etnias: negro com branco; negro com índio; ou branco com índio.

A Universidade Federal de Goiás (UFG) implantou a Comissão Permanente de Autodeclaração (CPA) este ano, em decorrência do aumento de denúncias de fraude e da necessidade de acompanhar a política de cotas. Composta por cinco membros efetivos e dois suplentes, entre docentes e técnicos administrativos da instituição, a CPA trabalha com a verificação específica para os casos de denúncia, mas tem como meta agir de forma preventiva para evitar fraudes na política de cotas adotada pela universidade.

“As bancas são montadas a partir de convocação e o critério de verificação é fenotípico, conforme determina a legislação. A Comissão emite a decisão final sobre a permanência ou não de candidatos que se inscrevem para vagas reservadas para pessoas negras e, na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato é eliminado do concurso, respeitando-se o direito ao contraditório e a todos os recursos cabíveis”, esclarece a integrante da Coordenadoria de Ações Afirmativas da UFG, Luciene Dias.

Outras cinco federais declararam que estão estudando a possibilidade de adotar a comissão. São elas: de Pelotas (UFPel), do Paraná (UFPR), do Rio Grande do Sul (UFRGS), de Viçosa (UFV) e dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Segundo o diretor do Núcleo de Concursos da UFPR, Mauro Beli, uma proposta de criação da comissão já foi enviada para o Conselho de Ensino e Pesquisa da instituição. “A expectativa é que a comissão seja aprovada em junho e passe a valer a partir do Vestibular 2016/2017 para todos os aprovados pelo sistema de cotas raciais. No caso dos cotistas já aprovados, a comissão só vai avaliá-los por meio de denúncias”, informa.

A Coordenação de Ações Afirmativas e Políticas Estudantis da UFPel também está em tratativas com a Pró-Reitoria de Graduação para implantação da avaliação. Conforme a instituição, a ideia é que isso aconteça a partir do próximo ingresso. Já a UFRGS respondeu que a “Coordenadoria de Ações Afirmativas estuda a possibilidade de instituir comissão no momento em que o candidato assina a autodeclaração como negro, índio ou pardo, semelhantemente ao que já ocorre atualmente na UFSM”. A UFV e a UFVJM apenas afirmaram que estudam implantar a comissão, sem dar mais detalhes.

Por outro lado, 40 universidades federais responderam que não possuem a comissão e nem estudam a possibilidade de implantá-la. A justificativa adotada pela maioria é de que o processo é realizado por autodeclaração e que o candidato deve responsabilizar-se pela veracidade da informação fornecida. Algumas, inclusive, consideram ilegal a existência de comissão ou a realização de entrevista para contestar essa autodeclaração. É o caso da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA). “Não temos tal tipo de comissão e não considero que isso seja correto porque a Lei estabelece a autodeclaração, portanto, não sujeita a nenhum tipo de conferência”, afirmou o Pró-Reitor de Graduação, Augusto Carlos Pavão.

A opinião também é compartilhada pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). “A Lei é clara, é autodeclarável. Se é autodeclarável, ninguém pode contestar. Antes de o MEC adotar essa lei, a Universidade tinha uma equipe pra fazer essas análises, mas como a UFMA cumpre as determinações do MEC, que diz que é autodeclarável, então não há mais essa comissão”, destaca.

Outras 12 universidades federais não deram retorno até o fechamento desta reportagem: do Acre (UFAC), da Bahia (UFBA), do Oeste da Bahia (UFOB), da Paraíba (UFPB), Rural da Amazônia (UFRA), do Rio de Janeiro (UFRJ), de Sergipe (UFS), de Uberlândia (UFU), do Amapá (Unifap), do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

Legalidade

A advogada Patrícia da Silveira, presidente da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil – Conselho Seccional do Espírito Santo (OAB-ES), vê com estranheza a opinião de algumas universidades de considerarem ilegal a criação das comissões. De acordo com Patrícia, que deu suporte jurídico ao Coletivo Negrada, o judiciário tem decidido que a universidade tem autonomia para criação de tais comissões com vistas a apurar as denúncias e de punir, caso comprovada a fraude.

De fato, o MPF decidiu em favor da UFSM no caso do estudante W.S.S. Na apelação cível, a desembargadora federal Vivian Josete Caminha aponta que o edital do vestibular da UFSM prevê a comissão de autodeclaração e o cancelamento da matrícula em caso de irregularidade. A relatora da ação também afirma que a universidade “pode e deve adotar medidas para fiscalizar o ingresso pelo sistema de cotas”.

Após receber as denúncias, a UFRB mostrou-se disposta a adotar essas medidas. Em nota, a universidade afirma que “foi instituído um Grupo de Trabalho, composto por docentes, representação estudantil e de servidores técnico-administrativos para definir as normas e procedimentos de apuração das denúncias, inclusive com a possibilidade de constituição de uma comissão permanente, composta por membros das comunidades acadêmicas, sociedade civil e instituições constituídas”.

No caso das denúncias na UFES, o MPF-ES decidiu pelo arquivamento no âmbito criminal porque, diferentemente da UFSM, o edital do vestibular não previa a comissão de autodeclaração. “Como se vê, não se previu, seja na lei, seja na norma editalícia, quaisquer critérios (fenotípicos, genotípicos ou de qualquer outra natureza) para a identificação de pardos, negros ou índios” – escreveu o Procurador da República Flávio Bhering Praça em sua decisão.

Em nota, a UFES diz que instaurou um processo administrativo para apurar as denúncias e está atuando com a Procuradoria Federal da Advocacia Geral da União (AGU). “Caso seja constatada fraude, os estudantes que tiverem praticado irregularidades terão suas matrículas anuladas” – encerra a nota.

Solução

As fraudes no sistema de cotas raciais não é exclusividade da UFES e da UFRB. Mirts Sants relatou que o Coletivo Negrada tomou conhecimento de fraudes praticadas em várias universidades, federais e estaduais, como na UFRGS e na Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

As universidades que diminuíram esse problema encontraram a solução nas comissões de autodeclaração. Segundo a professora Dra. Maria José Cordeiro (Maju), coordenadora do Centro de Estudos, Pesquisa e Extensão em Gênero, Raça e Etnia da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), a solução é realizar “entrevista pessoal com cada candidato classificado e chamado para matrícula, feita por pessoas que são negras, têm conhecimento da questão e posicionamento político em relação à política de cotas”.

Apesar de a Lei de Cotas não prever essas comissões, Patrícia Silveira comenta que o acesso a uma universidade pública deve ser cercado de lisura. “Não é interesse de uma universidade ter seu sistema de vestibular fraudado. Declaração falsa, nos termos do artigo 299 do Código Penal, é crime com pena de reclusão de até cinco anos. As comissões servem exatamente para coibir e/ou apurar falsidade na declaração” – completa a advogada.

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