Friends e Living Single: o tom de pele pode influenciar o sucesso de uma série?

A história de seis amigos morando juntos em Nova York, conversando sobre problemas familiares, amorosos e de trabalho não é nova. Se acrescentarmos ainda um amigo mulherengo, uma patricinha e uma anfitriã, não há mais dúvidas de qual produção estamos falando: certamente é Friends. Mas, vou te falar que não é bem assim.

A série Friends, lançada em 1994, foi – e continua sendo – um sucesso inegável, com roteiro bem feito e ótimos atores, cujas carreiras deslancharam com a estreia do programa. No entanto, os fatores problemáticos da série já são conhecidos: machismo, homofobia e racismo são apenas alguns dos preconceitos presentes na produção.

Em 1993, um ano antes da estreia de Friends, uma outra série foi lançada, e ficaria apenas 5 anos no ar. O nome dela era Living Single, e contava apenas com protagonistas negros. E a descrição pode soar familiar, já que ela já foi citada neste texto: seis amigos morando juntos em Nova York, conversando sobre problemas familiares, amorosos e de trabalho. Um amigo mulherengo, uma patricinha e uma anfitriã.

Semelhanças

Em Friends, Rachel Green(Jennifer Aniston), Joey Tribbiani(Matt LeBlanc), Chandler Bing(Matthew Perry), Monica Geller(Courtney Cox), Ross Geller(David Schwimmer) e Phoebe Buffay(Lisa Kudrow) protagonizam a narrativa, sendo Rachel, resumidamente, a “patricinha”; Joey, mulherengo avoado; Chandler, trabalhador sarcástico; Monica, anfitriã competitiva e “mãe” do grupo; Ross, muito inteligente; e Phoebe, amiga ingênua.

Em Living Single, Khadijah James(Queen Latifah) compartilha as características com Monica; Regine Hunter(Kim Fields) com Rachel; Synclaire James(Kim Coles) com Phoebe; Overton Wakefield Jones(John Henton) com Joey; Kyle Barker(Terrence C. Carson) com Chandler; e Maxine Shaw(Erika Alexander) com Ross. E não são apenas as características dos 12 personagens que se parecem, as situações em que vivem são, se não forem iguais, extremamente semelhantes.

Ambas as séries acontecem em Nova York, principalmente no prédio dos apartamentos, e os dois shows são formados com uma dupla de familiares – Monica e Ross Geller em Friends, assim como Khadijah e Synclaire James em Living Single.

Além disso, Kyle e Monica eram acima do peso quando mais novas, Max e Monica não podiam ter filhos e Monica e Chandler esconderam a relação dos amigos e depois se casaram, assim como Maxine e Kyle e Synclaire e Overton, respectivamente.

Há ainda mais semelhanças, como dois pares de amigos de infância em ambas as séries – Rachel/Monica e Ross /Chandler em Friends, Regine/Khadijah e Kyle/Overton em Living Single.

Cópia ou inspiração?

Pouco tempo antes de Friends ir ao ar, Warren Littlefield, vice-presidente da NBC, emissora da série, revelou em entrevista qual produção gostaria de ter em sua emissora. A resposta foi certeira: Living Single, da FOX. A informação foi divulgada em 2017 no talk show de James Corden por Queen Latifah, que interpretou Khadijah James na série.

Queen Latifah também se pronunciou em 2017 em outro talk show, de Andy Cohen. O apresentador perguntou: “Quando Friends foi ao ar, vocês pensaram ‘espere um pouco, nós já estamos fazendo isso?'” A atriz não hesitou, e respondeu: “não, nós sabíamos que já estávamos fazendo isso.”

O racismo no audiovisual

É difícil as produções do audiovisual serem sempre 100% originais, principalmente devido à universalização da informação. No entanto, o sucesso de uma, seguido pelo evidente enfraquecimento da outra, leva-nos a refletir a respeito da formação da própria sociedade midiática, assim como do consumo e da reprodução de padrões preconceituosos.

A série Living Single, além de apresentar protagonistas negros, oferecia debates a respeito da comunidade afro-americana, assim como sobre o feminismo. Em contraposição, Friends não abordava essas questões, muito pelo contrário: os personagens tinham atitudes machistas, e nenhum dos protagonistas da série era negro.

A falta de representatividade foi abordada, inclusive, pelo escritor de Friends, Saul Austerlitz. Segundo ele, os executivos da NBC tinham medo da reação do público, temendo falta de identificação de pesssoas que não fossem brancas – e, portanto, uma audiência baixa.

E foi exatamente assim o que aconteceu. Em 1998, o New York Times publicou um texto com dados obtidos pela Nielsen Media Research. A pesquisa analisava a audiência de diversas séries de televisão; o critério de separação eram famílias negras e brancas. Descobriram que, nos dois meses analisados, Friends foi a série mais vista nos lares de famílias brancas – mas, entre as famílias negras, ocupava o 91º lugar.

E assim, Friends ficou no ar por 10 anos, reproduzindo preconceitos ao seu público majoritariamente branco. Espectadores estes que consumiam (e até hoje consomem) produções preconceituosas, racistas e machistas. O público acaba sendo alimentado por esse “medo” – presente nos executivos da NBC -, tornando a falta de representação algo normal no cenário audiovisual.

Foram 10 anos de série em que gordofobia, homofobia e racismo eram implícitos nos roteiros. Período este, pelo menos no começo, em que Living Single lutava por notoriedade e via o sucesso ser transferido para a outra produção. Afinal, quem não ama Friends?

Quando se trata de produções e marcas, o plágio é um medo sombrio e sempre presente. No entanto, quando Friends imitou grande parte da estrutura de Living Single, nenhuma mobilização foi levada a sério, o que nos faz pensar: se a série de atores negros copiasse a de brancos, será que a reação do público e dos produtores seria a mesma?

Entramos aqui, em um assunto importante: o racismo estrutural propagado pelo audiovisual. O racismo presente não só em roteiros e falas, mas no modo de produzir e consumir o audiovisual.

Produções assinadas por negros

Pessoas negras costumam ser desprezadas no showbusiness – tanto os artistas como as produções na qual trabalham. Tal “hábito” preconceituoso gerou, inclusive, mobilizações nos principais eventos do meio, como o Oscar. Em 2015, a falta de representatividade nas premiações da Academia influenciou o movimento #OscarSoWhite, com atores pedindo mais diversidade nas indicações (que, historicamente, abrange basicamente pessoas brancas).

No entanto, mais do que indicações e premiações, a produção artística e audiovisual negra não recebe o devido investimento e, na maioria das vezes, precisa competir com trabalhos de orçamentos bem mais caprichados.

Por isso, além de apontar o plágio de trabalhos de pessoas negras, é importante enfatizar outro motor do racismo na produção cultural: as oportunidades. O acesso à arte, assim como distribuição das mesmas, não pode ser comparado ao de projetos de brancos, consequentemente privilegiados.

De acordo com a Escola Annenberg, da Universidade da Carolina do Sul, entre 2007 e 2015, dos 1 mil filmes de maior bilheteria, apenas 5% foram produzidos por diretores negros, e o número é ainda mais baixo quando falamos sobre cineastas asiáticos: 3%.

Portanto, não é invenção falar que produções de negros, como Living Single, são vítimas da sociedade cujo preconceito está intrínseco à estrutura. Falando de oportunidades ou representatividade, tanto faz: a produção audiovisual está repleta de racismo, impossibilitando que artistas, produtores e diretores negros ganhem a merecida evidência por seus trabalhos.

Mobilizações pedindo por igualdade de oportunidades e reconhecimento de artistas negros podem ser alguns dos caminhos a serem seguidos, mas a mudança precisa ser estrutural. Vale ponderar se, por meio de uma modificação do pensamento artístico, seria possível driblar valores conservadoramente preconceituosos que regem a forma de pensar de instrumentos culturais, como a própria Academia.

Sem uma reeducação artística e auto-reflexão a respeito da produção de arte, corremos o risco de continuar a desvalorizar trabalhos de alta qualidade devido apenas pelo tom de pele.

Foto em destaque: Reprodução/ Rolling Stone 

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