Gabriel Sampaio: “Democracias fortes controlam suas forças policiais”

Enviado por / FontePor Clara Cerioni, do Exame

A repercussão internacional dos protestos nos Estados Unidos contra a brutalidade policial, após o assassinato de George Floyd, impulsionou esse debate também no Brasil. Nas últimas semanas, diversos vídeos de violência de agentes de segurança pública contra a população negra têm tomado conta das redes sociais e ganhado destaque no horário nobre da televisão.

Essa realidade, na análise de Gabriel Sampaio, coordenador do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos, tende a se repetir em sociedades que têm o racismo estrutural enraizado, como é o caso tanto do Brasil como dos EUA.

Em entrevista exclusiva à EXAME, Sampaio faz um resumo sobre o histórico de violência policial no Brasil e aponta caminhos para que a sociedade civil faça sua parte e pressione os agentes públicos por mudanças. Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

O número de assassinatos segue altíssimo no Brasil. E casos de violência policial seguem tomando o noticiário. Qual panorama você traz sobre o cenário atual?

Hoje, no Brasil, os dados de mortes violentas no geral são muito altos. Em 2017, chegamos a mais de 60 mil homicídios. Os últimos dados, de 2019, apontam para 55 mil assassinatos. Então já temos uma conjuntura preocupante, e soma-se a isso a violência policial [em 2019 foram ao menos 5,8 mil mortes cometidas pela polícia].

E nesse cenário há um problema nas entranhas, que é o racismo estrutural. No contingente de pessoas mortas num geral, 70% delas são negras. Já nos assassinatos por policiais, 75% das vítimas são negras.

Existem estudiosos brasileiros que inclusive classificam essa situação como genocídio da população negra, por se ter um marcador de raça tão expressivo. Isso é um problema que toda a sociedade precisa refletir para a estruturação de políticas públicas que revertam esse cenário.

Existe uma legitimação do Estado em relação às mortes por policiais?

O uso da força por agentes do Estado em uma sociedade democrática precisa de altíssimo controle. Em toda a história, há o entendimento de que o uso da força tende a ser arbitrário e deixar consequências graves para as populações vulneráveis. É por isso que democracias consolidadas e fortes discutem com naturalidade o controle do uso da força.

No Brasil, infelizmente, temos um cenário muito defasado por parte das autoridades. O controle externo do Ministério Público é muito deficiente e as instâncias internas de corregedorias das polícias e outros órgãos administrativos têm dificuldade em realizar um controle desses atos abusivos.

Além disso, não temos transparência para participação da sociedade na elaboração e fiscalização dos protocolos de atuação desses setores. Assim, o Brasil acaba sendo deficiente no controle da atividade, o que contribui para a alta letalidade. Sem a devida responsabilização e investigação das circunstâncias envolvidas na ação, o aparato do Estado acaba sendo leniente com o uso arbitrário da força.

Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que a letalidade policial em São Paulo cresceu 31% entre janeiro e abril deste ano, durante a quarentena. O que explica isso?

Parece incompatível, não é? Mas não é à toa que, no mesmo momento em que discutimos o aumento da letalidade nesse período de pandemia, também falamos sobre falta de apuração e responsabilização em casos que envolvem a violência policial. Não é uma mera coincidência.

Tenho sempre o cuidado em dizer que todo cidadão tem o direito de se defender. Não há aqui tentativa de afastar as garantias constitucionais, que também se aplicam aos agentes do Estado. Mas é necessário que se cumpram todas as medidas administrativas e processuais para reduzir a letalidade policial. E isso só é possível garantindo a transparência e a apuração rigorosa de casos desses agentes.

Nossa legislação não admite a pena de morte, nem mesmo sentenças proferidas por agentes públicos em contextos de uso de armas de fogo. Existe todo um sistema de justiça pronto e aparelhado para o julgamento e responsabilização de ações ilícitas.

Na agenda de debate sobre a letalidade policial, discute-se a necessidade de apuração de situações classificadas como “autos de resistência” [quando um agente de segurança alega legitima defesa em torno de casos de mortes em operações]. Ninguém afasta que isso, em uma circunstância real possa acontecer, agora o que é importante é que o Estado investigue e chegue nessa conclusão com base em elementos de apuração, e não simplesmente em uma narrativa incontestável dos envolvidos.

E é tão deficitária a apuração do Estado que existe há mais de oito anos no Congresso Nacional um Projeto de Lei que tem como intenção considerar que todos os casos que resultam em morte policial devam ter os mesmos critérios de investigação que qualquer outro caso de morte violenta. A narrativa da resistência é um dos elementos da investigação, mas não pode ser a investigação em si.

Surgiu nas redes sociais o movimento “celular em legítima defesa”, criado pela Ponte Jornalismo, que impulsionou a divulgação de vídeos de violência policial. Mas há relatos de intimidação de quem está gravando. A nossa legislação permite que ações policiais sejam gravadas?

Quero frisar mais uma vez que qualquer sociedade democrática precisa ter controle sobre o uso da força e isso não significa criminalizar a instituição, mas sim fortalecer a democracia. Isso porque não se pode presumir que sempre que o uso da força é aplicado, será em situações legais e legítimas, porque isso é contrariar a história.

Instituições precisam de transparência e é direito do cidadão cobrar por isso, inclusive fazer valer de instrumentos como gravar a ação policial. É claro que vivemos em uma realidade concreta, e que é difícil para o cidadão saber que se ele estiver com uma câmera na mão os limites serão respeitados. Mas é plenamente legal a gravação, principalmente se estiver nítida violações de direitos na abordagem.

Depois se pode discutir se isso está expondo a intimidade de alguém, mas essa é uma pauta posterior. O problema não é a gravação, é o policial pisar em alguém ou bater, aplicando atos de tortura. Além das gravações pela população, há também uma agenda importante que é a de instalar câmeras nas viaturas e, principalmente, nas roupas dos policiais. É preciso que tudo fique registrado, inclusive com punição administrativa em caso de o policial não gravar a operação.

A violência policial contra a população negra não é exclusiva do Brasil. Nos Estados Unidos a pauta toma cada vez mais dimensão. Quais são as semelhanças entre aqui e lá?

Para compreender isso, é importante entender o que é o racismo estrutural, uma categoria forte e que marca toda a história de nossas instituições. A principal contribuição do Prof. Silvio Almeida [advogado] é diferenciar o racismo estrutural do racismo institucional. Isso porque o racismo só reverbera nas instituições porque ele está moldado na estrutura da sociedade.

No Brasil e nos EUA isso se repete porque ambos têm uma formação escravocrata forte. É por isso que mesmo em escala internacional, o debate das pautas antirracistas dialoga diretamente com o tema da violência contra a população negra.

A luta antirracista acaba tendo como pauta fundamental — e que prova seu potencial transformador — a defesa de um novo modelo de sociedade. Uma historia que sempre conto para explicar esse histórico é que, quando a Inglaterra decreta o fim do tráfico negreiro pelos mares, a fim de pressionar o Brasil a parar de transportar pessoas escravizadas, o Brasil adotou uma estratégia para burlar essa legislação.

Ela consistia em sempre que algum navio era fiscalizado, lançar ao mar os escravos com âncoras enroladas no pescoço. Milhares foram mortos nesse processo. Isso marcou a nossa história e o país nunca acertou as contas. Até hoje, tivemos pouquíssimas políticas públicas desenhadas com o objetivo de enfrentar esse racismo estrutural.

O movimento negro aponta que a sociedade brasileira tende a banalizar a violência policial. No seu entendimento, como outros atores da sociedade civil devem participar dessa reivindicação?

Em relação a esse tema, eu sempre ressalto que o movimento negro está presente em todos os momentos da nossa história na luta antirracista. Não é algo novo. Não há nenhum caso de repercussão do uso abusivo na força que não tenha contado com mobilização de setores do movimento negro.

Agora, vemos uma ascensão dessa luta em escala mundial, que tem ganhado cada vez mais visibilidade e engajamento de outros atores da sociedade civil organizada. Esse ganho de consciência para a população branca, em relação aos efeitos nefastos que a branquitude tem gerado no sistema racista, tem permitido uma discussão com potencial transformador da nossa sociedade.

É importante ressaltar que esse debate sempre encontrou resistência ao longo da história, mas hoje temos uma oportunidade grande para alertar que a sociedade só vai superar as marcas do racismo com o envolvimento dos brancos na discussão. E cada vez mais isso se ganha consciência e corpo.

Pensando de forma prática, o que é possível fazer para denunciar casos de violência policial?

Reforço sempre o papel de órgãos de controle, como as ouvidorias das policias. Isso foi fruto da luta da sociedade civil para ter um espaço de denúncia e de controle das forças policiais. Temos atualmente um ouvidor negro em São Paulo, que é algo muito representativo. Também tem o Ministério Público, que tem a obrigação constitucional de fazer esse controle externo, apesar das dificuldades.

Por último, cito o trabalho das organizações do terceiro setor que têm uma agenda contra a violência policial. Em São Paulo, por exemplo, a Conectas tem buscado contato com o governador [João Doria]. Já enviamos dois ofícios sobre a preocupação e as consequências da atual agenda das forças de segurança.

A pauta da reformulação das polícias também entrou em debate. Como isso funcionaria?

É o que tenho reforçado ao longo dessa conversa: padrão democrático exige o controle do uso da força. A sociedade precisa se questionar sobre a necessidade dessa militarização e se ela atende aos padrões democráticos que queremos atingir.

Ou seja, chega um dado momento em que é preciso refletir se é saudável uma sociedade que investe tanto em proteção militar. Essa premissa pode nos levar a diversos campos de discussão, inclusive ao amadurecimento da população a um nível que se supere a necessidade do uso da força policial para controle social. Essa é a agenda que está posta em democracias avançadas.

Foto em destaque: Reprodução/ Exame 

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