A afirmação das identidades dentro da diversidade tem dado um nó na cabeça de muita gente. Na ponta de lança, mulheres e trans brigam por direitos
Por Luana Ribeiro, do A Tarde
Viviane Vergueiro tem 31 anos, vive em Salvador, é economista e nasceu em um corpo que a sociedade definiu como de homem. “Mas seu corpo faz de você uma mulher?”, questiona, olhos oblíquos de Capitu afiados feito lâminas. Viviane é mulher e feminista – ou melhor, transfeminista. Sua existência já é um ativismo. Os cabelos longos e lisos emolduram o rosto fino e anguloso, adornado com batom rosa. A fala meio rouca vai desfiando conceitos, desafiando lógicas: “São transfeminismos, no plural, porque a treta é grande”.
A treta vai além do fato de alguns grupos feministas não aceitarem a presença de mulheres trans e diz respeito também a questões de inclusão social, afetividade, saúde pública e emancipação do corpo. “Isso é uma demanda feminista, e pensar na autonomia corporal das trans inclui pesquisas mais aprofundadas. Os hormônios que a gente toma não trazem informações sobre os efeitos particulares em nosso corpo”. Os dela, por exemplo, são destinados a quem está na menopausa.
Para a pesquisadora Cecília Sardenberg, uma das fundadoras do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim) da Ufba, em 1983, a multiplicidade de pautas nos diversos setores da população feminina é uma das marcas dos feminismos praticados por jovens. Ela aponta que os esforços de sua geração trouxeram avanços na área de políticas públicas, o que culminou em um “feminismo de estado”, com um ministério, a Secretaria de Políticas para Mulheres, secretarias estaduais, superintendências, conselhos e conferências nacionais. “Mas são as jovens feministas que vêm trazendo essa energização das ruas”.
Para Cecília, as mulheres trans devem ser incluídas nas discussões. “Mulher trans é mulher. É uma questão de identidade de gênero. Não é a ausência ou a presença da vagina que nos torna mulheres, embora na sociedade se identifique assim, por esse fator biológico”. Viviane acredita que essas tensões não são sinal da “inimizade” que se supõe natural entre as mulheres, mas de uma relação que também é política. “Muitas dessas colocações não são agressivas, mas questionam lugares de poder. Se mulheres trans ocupam esses espaços, podem disputar vagas de conselhos de mulheres, o que pode incomodar quem não vê mulheres trans como mulheres. Podem achar, agora, que o movimento não é tão feminista, que a teoria queer contaminou o feminismo”.
A briga em torno das mulheres trans é parte de um feminismo cheio de recortes, que tenta, depois das primeiras ondas históricas do movimento, abarcar as reivindicações das mulheres. Trans (binárias ou não), bi, lésbicas, héteros. Negras, brancas, indígenas. Liberais, socialistas, ricas, pobres, classe média. Gordas, magras, halterofilistas. “O feminismo surgiu para a conquista do voto. Não se pensava nas diferenças, era uma mulher universal, singular. Com o tempo, outras identidades querem participar, até porque acham o feminismo emancipador. O acolhimento faz parte do movimento que é utópico”, explica a antropóloga Suely Messeder.
Redes sociais
Negra e moradora do Cabula, a estudante Aíla Oliveira, 17, demorou muito para encontrar o feminismo. “Até novembro do ano passado, eu tinha um discurso bastante retrógrado. Dizia que não fazia sentido nos organizarmos porque os direitos eram colocados para todo mundo, bastava só seguir o discurso meritocrático”. Os trejeitos e gírias adolescentes pontuam a fala sofisticada enquanto ela lembra de ter sido “bombardeada com os discursos do sensacionalismo midiático que a televisão introjetou”. As amigas mostravam textos em blogs e grupos de discussão no Facebook. “De uns anos para cá, a maioria das pessoas de movimentos veio pelas redes sociais. Ver que um amigo compartilhou alguma foto com uma mensagem legal, perceber que alguma movimentação em algum estado gerou um resultado satisfatório”.
Cecília Sardenberg vê a internet como um espaço ativo para os feminismos – aos 67 anos, ela mesma se tornou ciberfeminista, por não poder participar de marchas e eventos com tanta frequência. “Faço meu ativismo pelo Facebook, um espaço superimportante, jovens estão com seus grupos, falando, brigando. Há um grupo muito interessante de blogueiras feministas”.
As discussões pela internet não eram suficientes para Aíla que, apesar de ter saído do mundo dos contos de fada, ainda via unicórnios e castelos. “Era um feminismo clássico, liberal, que pauta a liberdade individual”. Em fevereiro deste ano, ela conheceu uma integrante do coletivo ao qual pertence hoje, o Enegrecer, e começou “a concatenar esse recorte de raça dentro do recorte de gênero”. Ela é praticante do que se denomina feminismo intersecional, que pretende enxergar os desníveis existentes dentro de um grupo que sofre opressões.
Sororidade
Para a professora de letras Tatiana Pequeno, 35, feminismo é uma luta que se inscreve no corpo das mulheres. Foi com essa ideia que ela resolveu tatuar nas costas, com tinta vermelha, um dos símbolo do movimento. A junção de uma imagem de luta, a mão, e do feminino, representação do planeta e da mitologia de Vênus. Carioca, Tatiana viveu por três anos na Bahia e aqui ensinou na UFRB. Hoje, dá aulas na Federal Fluminense.
“Essa luta é também um texto ambíguo com o qual lidamos, já que dela precisamos. É uma lembrança que dói, porque tem a ver com um enfrentamento que não cessa seja nas abordagens misóginas nas ruas ou nas instituições em práticas que validam machismos institucionais”. A tatuagem é, em sua explicação, a metáfora e a metonímia de uma luta por direitos. Algo inicialmente dolorido, mas que pode se tornar sólido e belo. “É difícil porque o feminismo questiona a tradição de uma economia que procura o homem mesmo numa relação lésbica, por exemplo”.
A nova palavra de ordem entre os grupos feministas é sororidade (do latim “sóror”, irmã), termo que começa a ser registrado entre os anos 1960 e 1970 e passa a ser usado no Brasil nos anos 1980. Os conflitos, porém, mostram que ele é banalizado e que essa grande “família”, como todas as outras, é cheia de problemas a resolver. “Não acredito em sisterhood, não existe isso, porque a desigualdade entre as mulheres é grande. Temos que trabalhar as possibilidades de alianças. Saber que temos lutas em comum contra o patriarcado, mas somos diferentes”, diz Sardenberg.
A antropóloga prefere acreditar em solidariedade. “Isso não implica igualdade entre todas as mulheres, mas comprar as lutas das outras mulheres. Daí meu feminismo ser antirracista, anticapitalista e anti-homofobia”, explica. Para quem não se sentia capaz de “fazer fala”, Aíla mudou bastante em menos de um ano. Ao participar de um seminário organizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) nos 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, foi chamada para escrever um artigo sobre o ECA na perspectiva de jovem negra e de periferia.
“Frisei o genocídio da juventude negra, de como a maioria dos direitos, senão quase todos, nos é ceifada ou entregue de uma forma bastante depreciada”. O texto integra o relatório lançado em julho deste ano pelo Unicef com um balanço sobre o período a partir da vigência do estatuto.
Apesar da força do ativismo virtual que desenha os movimentos feministas hoje, Suely Messeder ressalva que nem tudo se resolve em um clique. “Isso é muito das nossas redes”, diz, sobre uma raiz acadêmica do movimento. “Você vê ainda algumas meninas completamente alienadas”.
Hip Hop
A Rede Mumbi – Mulheres Militantes do Bairro à Internet – é uma auto-organização feminista que, como insinua o nome, propõe uma ponte entre a internet e a realidade dos bairros da periferia de Salvador. “Virou um desafio, que é aliar as mulheres dos bairros, que muitas vezes não têm acesso à internet, às universitárias ou já graduadas, que fazem mestrado ou são doutoras. Como elas se empoderam e ganham mais autonomia, inclusive financeira, a partir do uso da internet?”, explica Joanna Paroli, 30, integrante da Mumbi.
Para trazer a discussão às ruas, o grupo organiza oficinas nas quais ensina a utilizar as redes sociais e ferramentas de produção de conteúdo, como fotografia e vídeo, em uma espécie de “guerrilha virtual” para disputar valores nos espaços da web. “Quando você olha os compartilhamentos nas redes, ainda são das mídias mais tradicionais e conservadoras”, ressalta Joanna.
Em locais onde as mulheres nem sempre se anunciam como feministas, apesar de muitas serem a chefe da família, se desdobrando em dupla jornada, o feminismo também pega pelo ouvido: das funkeiras Valesca Popozuda e MC Carol, às cantoras pop Rihanna a Nicki Minaj, todas embaladas em suas contradições. “Muitas mulheres se identificam mais com o feminismo agora, por causa de várias artistas que têm se colocado como referência de empoderamento e de autonomia, seja no funk ou no pop dos Estados Unidos”.
Mais conhecida como Sista Kátia, Kátia Araújo, 29, exerce seu feminismo no hip hop e em outros espaços onde homens ainda predominam: o rap, o grafite e o skate, que a levaram a ter o primeiro contato com os feminismos, aos 13 anos. “Foi na cultura punk hardcore, que tem muita discussão anarquista, de combate ao racismo, à homofobia, que o feminismo chegou para mim de uma maneira bem política”. Ela passou por diversos grupos até formar, em junho deste ano, o coletivo Rima Mina, junto com outras três mulheres: a DJ Nai Sena e as rappers Mirapotira e Cíntia Savoli.
No hip hop, onde milita, também minimiza a ação do machismo, mas quer evitar diferenciações. “Os caras veem sempre as minas como ‘rap feminino’. A gente faz rap! Eu faço grafite, não faço grafite feminino”, sentencia. Situações machistas são resolvidas com “papo reto”. “Na sequência a gente já escracha logo, então já intimida também. A gente tem conquistado muito espaço com essa atitude mais proativa”.
Recentemente, um produtor pediu seu apoio a uma festa. Na grade, porém, não havia mulheres. “Querem como público, mas não querem no palco, protagonizando a cena. Ou, senão, coloca como cota, para fazer um vocal melódico, ou dançar. Não que isso seja menor, mas a gente grafita, faz o rap pesado. As minas são DJs”.
O coletivo realiza oficinas de freestyle, grafite e técnicas de autodefesa. “A gente fez esse treino pensado no assédio, situações de roubo”. Descerrados os punhos, é preciso cruzar outros campos de batalha. “Infelizmente é necessário a gente saber se defender, assim como se armar de argumentos para se defender das opressões”, resume Kátia. É que dizem – ainda – que a mulher é um “sexo”. E frágil.