Crianças que já nascem abortadas: Eu abortei, nós abortamos. E eles, abortam todos os dias!

No mês em que o Brasil comemora o dia das crianças, me inspiro para falar de aborto. Muitos dirão: mas que brincadeira é essa? Bem nessa data tão sagrada! Pois, lhes respondo em alto e bom tom: HÁ MUITAS CRIANÇAS NESSE MUNDO, QUE FORAM OU AINDA SÃO ABORTADAS COTIDIANAMENTE!

por Naeli Simoni de Castro via Guest Post para o Portal Geledés

Foto: Zave Smith/Getty

Há uma questão que intriga nessa história do aborto e na imputação da responsabilidade da ação às mulheres, melhor dizendo, na impossibilidade da mulher de não fazer, assim resta a única via possível: a obrigatoriedade da ação – ABORTAR clandestinamente.

Porque o aborto se torna tão condenável, mas ao mesmo tempo presente e aplicado de diversas maneiras? Abortar pode ser entendido também como fazer falhar, interromper, tolher o sucesso, frustar, malograr (HOUAISS). São sob esses signos que as mulheres vivem cotidianamente, assim fico a pensar que: A legalização do aborto só ainda não é permitida porque é vagina quem pari!

Porque se pinto parisse, o aborto seria regra aceita e estimulada.

Sim, porque eles são maioria quem pensa as leis, quem ‘discute’ e as votam, as leis se tornam um grande falo que interdita a autonomia da vagina.

Eles são maioria quem leva e discute informação no lugar de poder, no lugar de saber. São eles em maioria que estão com microfone nas mãos, altos níveis de audiência, com diploma de pós-doc. São deles que ouvidos sobre moral e bons costumes. Eles são maioria como formadores de opinião: na educação, na saúde, na religião, em casa. Seja na vida pública, seja na vida privada – os legitimamos por diploma, ou só por ser homem.

Está na hora de ouvir o pedido de socorro dessas mulheres. Está na hora de ouvir o drama dessas vidas que “levam a culpa de não serem fálicas”. Está na hora de entender porque afinal, mulher é mais dramática.

O que vocês entendem por gravidez? O que fazem quando se descobrem “gravidos”?

Deu positivo e dai? Dai que a mulher renegocia férias, renegocia roupas, renegocia com o patrão, renegocia com os estudos e se cancela muitas vezes.

O homem? Sai bebemorar.

É por isso que aborto é tabu, que aborto não se discute, que sobre aborto só se fofoca.

Porque são elas. As abortistas… As mal-amadas, as mal comidas – as bruxas, detonadoras de criancinhas!

As meus caros? AS?

Afinal o que é aborto? Será que é só interromper uma gravidez indesejada, num momento indesejado e/ ou até com pessoas indesejadas?

Porque não falamos então daquelas gravidezes que não foram interrompidas, e das mulheres interrompidas por não interromperem sua gravidez?

Todos nós conhecemos gravidez não interrompida, não é mesmo?

Não interrompida por quem? Pela mulher obviamente!

E quantos de nós não conhecemos aquelas tais mães solteiras e tão taxadamente putas, pela sociedade?

E pai solteiro, será que é tão falado quanto?

Mãe solteira, pai ausente/ inexistente. Quem não conhece?

Quem não tem um amigo que não sabem sequer quem é afinal o pai? Quem não tem amigos que sequer tem registro do sobrenome?

Sabe o que são essas histórias? São histórias de aborto. São histórias de aborto que são cotidianamente praticados. São abortos que eles cometem, são direitos que a eles não seriam dados, mas eles se dão e não sofrem punição.

Aliás, sabem o que significa mãe solteira? Era e poderia ser perfeitamente aquela mulher que teve filhos só não quis casar. Acontece que para essa sociedade que impõe a família tradicional, a mãe solteira é, via de regra, taxada como “puta”. O que tem as putas a ver com isso, não é mesmo?   Aliás, uma das mais antigas profissões, e que como algumas outras profissões presta serviços. Mas aqui um detalhe: presta serviço principalmente àqueles “pais de família”, tão marcadamente defensor da tradicional família brasileira!

Pois nesses termos, digo logo, se mãe solteira tiver que ter uma interpretação patriarcal que impõe que mulheres com filhos tenham um “homem” para chamar de pai, então não confundamos: Mãe solteira é aquela que apesar das circunstâncias contra a concepção ela não abortou. ELE ABORTOU, abortou a vida da mulher para viver a sua.

Mãe que levanta cedo, leva os filhos pra creche, sai debaixo de chuva, do frio, e se preciso for até de neve. Trabalha o dia inteiro para ter o mínimo para os filhos. Voltam cansadas, exaustas e ‘estrupiadas’ daquele serviço que em sua maioria é manual (porque mulher no trabalho intelectual ainda é raridade).

Pegam os filhos e levam muitas vezes a pé, nos braços. Chegam em casa, limpam, passam, fazem comida, banha os filhos, fazem o dever de casa com os filhos, educam os filhos, fazem a mamadeira, os põe para dormir.

Tudo isso. Enquanto eles abortam.

Nos abortam ainda na barriga de nossas mães.

Nos abortam quando as deixam a sós para gerar.

Nos abortam quando as deixam a sós para criar.

Nos abortam quando se negam a participar de nossa educação.

Nos abortam quando se negam a dar a comida da boca.

Nos abortam quando se negam a lavar nossa bunda, e a limpar o cocô.

Nos abortam o tempo todo, e o Estado endossa: Teve filho? Pois 6 meses mulher, para aprender a ser mãe, para ficar em casa, aprender como é que você tem que cuidar agora, aprender como é que você tem de limpar a bunda, porque é toda sua essa criança, é de você que nós e toda sociedade vai cobrar. E assim, só por ter duas características que nos diferenciam deles: gerar e amamentar, somos colocadas como únicas responsáveis pelo cuidado!

E o pai? Como é que o Estado lida? Ah, teve bebê homem? 5 dias – para ele sair bebemorar.

Somos todos filhos abortados. De uma sociedade machista, sexista, essencialista, fundamentalista.

Nós que somos.

Nós que existimos.

Eles nos abortam o tempo todo. E ai vem a justiça (o judiciário), impondo um dinheirinho por mês para não serem encarcerados, para não abortarem seus modos de vida. Um mísero dinheirinho por mês para dizer: “Estou a fazer a função de pai!”, reforçando assim, toda a cultura falocêntrica do Pai como o detentor da subsistência da prole e da mulher, a cuidadora do lar e dos filhos.

O Estado está de brincadeira e acha mesmo que vai continuar gozando na nossa cara? Somos mulheres, e pensantes meu bem, e função de pai vai além depositador de esperma e a miséria de um terço de seu salário! Ser pai é educar, é levar pra escola, é fazer a comida, preparar a mamadeira, dar colinho pra dormir, acordar no meio da noite, limpar a merda, trocar a frauda! E não venha com a história de que ao fazer isso está a nos AJUDAR (mas eles não ajudam as mulheres, eles ajudam, mas a si mesmos).

Nos ajudar? Então fazer a mamadeira do filho que eu não fiz sozinha com meu dedo é me ajudar?

Então fazer o dever de casa com o teu (também) filho é me ajudar?

Aí eu te pergunto – Porque será que muitas mulheres pensam e repensam sobre interromper a gravidez, não é mesmo? A vida da mulher nem é tão difícil assim… Eles até nos AJUDAM (para que não tenham sobrecargas futuras, ajudam para evitar consequências desagradáveis, de terem que cuidar)!

Depois nos chamam frágeis. E que fazemos drama. Não, meus queridos, há muitas vidas que são verdadeiros roteiros para um drama com fim nada romântico.

E digo mais, não me venha com essência feminina para cuidar. Isso que vocês nos fazem engolir goela abaixo é só para tirar vosso corpinho de fora do cuidado. Isso que vocês chamam de essência foi nos obrigatoriamente ensinado e passado de geração à geração.

E elas quando abortam é que são encarceradas? Onde estão os pais abortistas? Quem são os pais abortistas (que nos abortam até o desejo de abortar)? Eles não tem codinome, eles não precisam fofocar suas atitudes e intenção de abandono, eles não precisam viver na ilegalidade, eles não correm risco de morte ao abortar, eles estão em todos os lugares, eles riem alto sobre seus abortos na mesa do bar, no escritório, nos tribunais onde trabalham.

Legalizar o aborto (que pode ser um passo importante para romper com a prática abortista de modos de vida não normativos em nossa sociedade) é muito mais que entender que o meu corpo a mim pertence, mas é promover igualdade de gênero. Direito que o homem sempre gozou.

Termino me condoendo por vocês, mulheres. Eu não sou mãe, mas tenho mãe, convivo com mães, converso com mães, trabalho com mães – que são abortadas, foram abortadas. Mães cujos maridos são abortistas. Mães que arregaçaram a manga da blusa e se dedicaram à casa, à família, aos filhos, à educação, às intermináveis reuniões escolares, à ensinar bons modos e bons costumes, mães que sempre vão ter a cobrança se fizeram certo ou se fizeram errado, porque é sempre culpa da mãe: “Onde estão as mães daquelas meninas?”

Mães que relatam seu cotidiano, e que tendo os ditos ‘pais’ presentes ou não, são mães sós, cuidadoras sós, vivendo com maridos abortistas.

Por quê?

Por que a sociedade patriarcal nos fez crer que existem funções sociais exercidas a partir do sexo. Homens trabalham, são provedores, do esperma, da comida, do aluguel, das contas, das decisões, e nas horas vagas ir ao bar, jogar bola, jogar bilhar com os amigos. Mulheres reproduzem, dão continuidade à espécie, à prole, providencia os cuidados com a família, com o marido e com filhos. E SE horas vagas, providenciar um encontro reservado, com poucas amigas, no espaço que lhe convém sempre ficar: privado, em casa. Porque não lhe cai bem, mulher casada e com filhos sair a beber com amigas.

Pais perdem nessa sociedade patriarcal. E mães perdem na sociedade patriarcal. Pais perdem ao terem de se afirmar machão. Pais perdem filhos abortados por eles mesmos. Pais perdem o direito de exercer, DE FATO, o tal papel paterno. E só ficam na “ajudação”, como se exercer tal papel de verdade lhes desse o adjetivo de homem fofo, dedicado. É só obrigação, #&*$@!

Mães também perdem. Perdem o direito a ter direitos de ser, ou não, mãe.

Eu quero também o meu direito de ter, ou não, filho.

De exercer, ou não, o meu papel materno.

Eu também quero o direito, legítimo, de não ter filhos abortados pelo pai ou ainda forçada a abortar clandestinamente.

Mas não queremos parir e jogar pra sociedade criar – para crescerem abortados como eles têm abortado. Queremos poupar crianças do abandono e do desprazer de vir ao mundo onde não é bem vindo. Queremos poupar adultos que entram na justiça requisitando ser amados, reivindicando do Estado-Pai ser menos abortista. Não meu bem, função de pai e função de mãe não é só dar um terço do salário. Não meu bem, amor de pai e amor de mãe, Lei/ Estado/ Justiça nenhuma pôde me oferecer.

E para isso, eu quero o meu direito de abortar com dignidade.

Pais e mães deveriam todos de ser feministas.

Pais e mães deveriam lutar juntos pelo direito a serem pais e mães quando quiserem, pela guarda compartilhada, pelo cuidado compartilhado.

Homens e mulheres deveriam requerer o direito de abortar com dignidade.

Porque mulheres abortam e quase nunca sobrevivem. Enquanto eles abortam todos os dias, com o consentimento do Estado!

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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