Glotofobia: da discriminação linguística ao racismo pelo sotaque

A minha professora disse que era preciso dominarmos bem a língua francesa1

Por Graça dos Santos, no Buala

A minha professora disse que era preciso dominarmos bem a língua francesa | 1985 | Imagem Alain Le Saux

“Na nossa sociedade a linguagem é um instrumento de dominação e de discriminação poderoso e desconhecido. Impor a sua língua como a única aceitável, estimável, razoável e menosprezar, desqualificar, rejeitar uma pessoa pela sua maneira de falar, o seu sotaque ou o seu vocabulário é tão ilegítimo como rejeitá-la pela sua religião, a cor da sua pele ou a sua orientação sexual – as várias discriminações mais ou menos reconhecidas e punidas pela lei em França”2.

As discriminações fundamentadas na língua são no entanto ainda largamente ignoradas, embora afetem milhares de pessoas. Estão evidentemente relacionadas com a xenofobia, o racismo ou o menosprezo social, mas a proposta do sociolinguista francês Philippe Blanchet permite enfim denominá-las e assim, neste ato fundamental, também denunciá-las e combatê-las. Trata-se da glotofobia, uma forma de discriminação linguística aplicada às pessoas cujo vocabulário ou pronúncia não corresponde à norma dominante da língua. Como um bilhete de identidade, a língua que falamos e o modo como a falamos revela algo sobre nós. Diz a nossa situação cultural, social, étnica, profissional, a idade, a origem geográfica… Diz a nossa diferença. Ao falar desvendamo-nos, e o ato de elocução que deveria ser afirmação de si próprio pode transformar-se numa forma de denúncia, de não pertença  ao grupo dominante.

Em vez de considerar tanto o plurilinguismo como a pluralidade linguística no interior duma mesma língua como sinais de vitalidade e de riqueza do mundo e da sociedade onde vivemos, a glotofobia nega-os, menospreza-os e procura aniquilá-los. É uma rejeição que não se limita a negar uma característica (real ou suposta) de alguém: é a rejeição da pessoa. O que é muito preocupante é a naturalidade com que esta forma de racismo que é a glotofobia, se expande sem verdadeiros filtros manifestando-se de modo mais ou menos visível como uma prática social à partida inevitável. Procede de uma exclusão que nega um locutor não só por este não se exprimir numa língua em vez de outra (porque não fala na língua esperada, valorizada e considerada como a língua que deve ser falada) mas também por utilizar no seio de uma dada língua uma variedade considerada como inferior ou incorreta (um sotaque, uma maneira de falar ou de escrever, um determinado vocabulário ou registro).

Philippe Blanchet ilustra o seu estudo com exemplos franceses, mas que são transponíveis para todos os outros espaços nacionais. Assim, em Portugal são inúmeros os comentários depreciativos usados para qualificar os falantes das várias regiões em que não se pratica unicamente o português de Coimbra ou de Lisboa. São frequentes também as anedotas referentes à prática linguística dos emigrantes e de seus filhos quando regressam nas férias. Produz-se assim uma forma de humor construído a partir dum olhar estereotipado à custa de falantes negados física e vocalmente.

A reflexão sobre a glotofobia também permite questionar os imaginários linguísticos e culturais numa perspetiva pós-colonial ou descolonial. Devem ser novamente pensados os discursos apoiados numa territorialização política ou ideológica e sustentados por referências à pureza da origem, da língua, da religião ou do dogma ideológico3. Tal implica uma imprescindível reflexão sobre o papel do imaginário e do poder na prática e na circulação quotidianas das línguas na sociedade, mas também sobre o ensino destas num mundo regido por relações de dominação herdadas e reproduzidas se não forem desconstruídas.

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  • 1.Ma maîtresse a dit qu’il fallait bien posséder la langue française, título de um livro marcante de Alain Le Saux, autor / ilustrador de edições juvenis, publicado no n° 227 de La revue des livres pour enfants en fevereiro de 2006, na série « Francophonies ».
  • 2.Philippe Blanchet, Discriminations : combattre la glotophobie, Editions Textuel, 2016, Paris. Esta situação não se limita, evidentemente, ao caso da França.
  • 3.Émilienne Baneth-Nouailhetas, « Le postcolonial : histoires de langues », Hérodote Nº 120, 2006, p. 48-76.

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

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