Médica, juiz e polícia obrigaram gestante gaúcha a fazer cesárea a força. “A grávida é um serviço prestado”, parece pensar sociedade
POR MARÍLIA MOSCHKOVICH
Não poderia escrever sobre outra coisa esta semana que não o episódio de autoritarismo da justiça sobre o corpo de uma mulher. Na terça-feira passada, às 42 semanas de uma gestação, Adelir Carmem Lemos de Goes foi levada à força pela polícia para um hospital para fazer uma cesárea, contra a vontade dela. Uma ordem judicial forçou a cirurgia desnecessária, arriscando a vida de Adelir. A justificativa dada pelo juiz? Preservar a vida do bebê.
Depois de escrever sobre como o corpo das mulheres não lhes pertence, e sobre gravidez e maternidade, não tenho muito mais o que racionalizar. Preferi escrever um poema. Quem sabe dizendo de outra maneira as pessoas passem a entender, já que falar em política, liberdade, conceitos, antropologia, sociologia, poder, feminismo e gênero não está adiantando muito.
A GRÁVIDA NÃO VALE NADA
(por Marília Moschkovich)
A grávida não vale nada,
A grávida não vale uma vida,
Não vale a vida que gasta.
A grávida não é exatamente uma mulher.
A grávida é uma transição.
A grávida assim segue.
A grávida deixa de ser grávida.
Toda grávida se torna ainda mais mulher.
Toda grávida deixa de ser mais uma mulher.
A grávida não tem que querer.
A grávida obedece.
A grávida diz que sim ao médico,
à moral,
aos bons costumes.
A grávida não diz.
A grávida não trepa.
A grávida nem tem tesão.
A grávida não decide.
A grávida não sabe nada.
A grávida não sente nada.
A grávida é frágil e delicada.
A grávida engravida por instinto.
A grávida tem mesmo é que se foder.
Não foi bom na hora de fazer?
A grávida é ninguém.
A grávida não tem história.
A grávida não tem planos.
A grávida não é um ser humano.
A grávida é um cálice sagrado.
Toda grávida é um serviço prestado.