Marco Aurélio Luz*
Depois que o reino do Ndongo (Angola) da Rainha Ginga, e o Palmares de Ganga Zumba e Zumbi, desestruturaram o tráfico escravista e a produção de açúcar no eixo Angola – Pernambuco da Companhia das Índias Ocidentais, a exploração deslocou-se para o Caribe, concentrando-se no Haiti, ou Aiyti, terras altas na língua aborígine de então na época que lá chegou Colombo.
Depois que a ilha passou para as mãos da França, o Haiti tornou-se a colônia mais lucrativa, reaquecendo o tráfico escravista e a produção e circulação de açúcar.
Na ilha habitavam pouquíssimos franceses a quase totalidade da população era de africanos e seus descendentes, sofrendo o peso da escravidão e do tráfico escravista, uma colônia de exploração.
Logo começaram as lutas pela liberdade e então ao largo dos latifúndios da monocultura foram se constituindo territórios em que se restabeleciam as tradições africanas que embasavam as comunidades aldeãs com seus valores característicos.
No início do século XIX os bafejos da Revolução Francesa chegaram a Porto Príncipe, a capital colonial.
Escravizados e libertos seguraram essa chama iluminista e reivindicaram e exigiram o fim da escravidão e a independência da nação.
Toussaint “L’Ouverture” liderou o processo até que foi traído nas negociações com Napoleão Bonaparte, sendo morto nas gélidas prisões do Jura nos Alpes.
Napoleão delegou a seu cunhado L’Éclerc o comando das tropas da repressão armada com a missão de restabelecer o status quo da escravidão.
Para surpresa do mundo colonial as tropas de Napoleão foram derrotadas. Dessa vez pela gente de Dessalines que emerge das comunidades aldeãs assumindo o processo de libertação dando continuidade ao legado do ougan Makandal, de Boukman, Derance e tantos outros.
A Companhia das Índias Ocidentais perdia a colônia mais lucrativa, e via o modelo de exploração baseada no tráfico escravista começar a desabar.
Em sua derrocada Napoleão se auto-criticou: “Tenho de me censurar pela tentativa feita junto à colônia, durante meu consulado. A intenção de fazê-la render-se pela força foi um grande erro. Devia ter ficado contente em governá-la por intermédio de Toussaint.”
A Inglaterra, então rainha dos sete mares, tendo ao lado a colônia da Jamaica, dentre outras, ouviu a lição e pôs as barbas de molho; logo mudou de estratégia tentando transformar as colônias de exploração, para exploração e povoamento, incrementando para isso as políticas de fim do tráfico escravista para cessar a vinda de africanos para as Américas, de abolição da escravatura acompanhada de estímulo a imigração de europeus, e ainda de independência com “ajuda” financeira que causa dependência.
A independência de 1.804 do Haiti muda a face do mundo.
Uma vez os latifúndios da monocultura da cana nas mãos das sociedades aldeãs a terra será revestida de outra dimensão simbólica e de outros valores. Na cosmogonia tradicional negra africana a terra possui uma dimensão sagrada, o ciclo da vida, o ritmo do universo está ligado à fertilidade da terra e à fertilidade dos grãos, constituindo o mistério do renascimento, da restituição, da gestação. A floresta, inesgotável fonte de vida, e a terra trabalhada, que proporciona múltiplas colheitas, fonte dos alimentos, não estão dissociadas do culto aos ancestrais e voduns. A terra contém o mistério do além: é para seu interior que caminhamos e seremos restituídos, completando nossos destinos.
Cada família extensiva se constitui também numa unidade de produção e anseia pela terra. Certas ações promovem a cooperação entre as famílias que conhecemos com o nome de mutirão.
A política do tempo de Dessalines é a de menor comércio possível com o exterior. Dessa forma pouco afetou aos anseios do povo haitiano a política de isolamento do mercado internacional imposto pelo sistema colonial.
No entanto há uma pequena “elite” de Porto Príncipe, que usufruía de privilégios com o modelo colonial exportador de riquezas que tudo fará para realizar alianças com uma burguesia externa que lhe dará sustentação militar para impor ferrenhas ditaduras que manterão o Haiti numa situação de total divórcio entre o Estado e a nação.
* Autor do livro DO TRONCO AO OPA EXIN, dentre outros.
Fonte: Írohín