A hipocrisia e a sexualidade da mulher negra – Por Paula Libence

Bonde das Maravilhas, a sexualidade da mulher negra e a hipocrisia nossa de cada dia

Há algum tempo, tenho visto algumas repercussões nas redes sociais extremamente ofensivas e incômodas em relação a um grupo de jovens dançarinas do Rio de Janeiro, o chamado Bonde das Maravilhas. As meninas, adolescentes na faixa dos 13 aos 20 anos de idade, vieram a público mostrar o inacreditável. Danças tão cheias de contorcionismos que confesso que a primeira vez que assisti ao vídeo, julguei ser humanamente impossível se equilibrar na nuca para dançar. Tanto que vi outras vezes e, boquiaberta, não conseguia crer, enfim.

Mas o que tem causado tanta polêmica, se assim posso dizer, na mídia, não são os contorcionismos dançantes que as meninas do Bonde das Maravilhas apresentam ao seu público, e sim a estranheza social de ver garotas jovens, bonitas, negras e periféricas dançando e cantando de modo tão singular.

Fiquei a me perguntar por que o ataque ao grupo tem sido tão severo. Por que essa antipatia mordaz às garotas?

18851-bonde-do-recalque

Revirei e retirei do fundo do baú alguns grupos que fizeram sucesso com danças sinônimas ao do Bonde, o que não foi tão necessário, pois temos mulheres que dançam funk e põe seus bumbuns pra cima sem causar maiores estranhamentos por parte do público hoje. Mas creio que vale a pena relembrar de alguns.

Suponho que muitos ainda se lembrem do grupo É o Tchan!. O grupo ganhou fama e notoriedade em meados da década de 1990 com danças tão “insinuantes” e “pornográficas” executadas pelas dançarinas Carla Perez e Scheila Carvalho quanto as do Bonde das Maravilhas.

As dançarinas do É o Tchan! seguravam e amarravam o tchan ao seu bel prazer, e nem por isso ninguém as levou ao ministério público. Lembro que Gugu Liberato, no seu antigo programa Domingo Legal, explorou bastante a imagem do grupo e ainda criou um quadro chamado “Banheira do Gugu”, em que mulheres ficavam praticamente nuas em rede nacional e num horário em que as crianças ainda estavam na sala.

 

Até aqui, ninguém disse nada. Por que será? Perceberam a diferença?

Há também um grupo mais recente de funk, também do Rio de Janeiro, chamado Gaiola das Popozudas, formado só por mulheres e liderado pela funkeira Valesca Popozuda, que trazem a público ritmos dançantes e eivados de insinuações – do tipo “balança o rabo” e “late que eu tô passando” – e nem por isso caiu no desgosto popular. As garotas do referido grupo são mulheres brancas. Elas trazem consigo o patrimônio da cor, o que por si só é um fator extremamente favorável na busca pelos quinze minutos de fama na mídia.

Ah, tem mais uma figurinha cativa. Lembram-se da Gretchen? Lembram o sucesso que ela fez na década de 1980 com o Conga Conga, que inclusive a atual novela das nove remasterizou para a personagem de sua filha, Thammy Miranda? Pois bem, Gretchen ganhou fama e notoriedade com danças insinuantes para a época (afinal, estávamos falando de década de 1980, período em que o Brasil vivia os momentos finais da ditadura). E como os purismos do século XXI condenam o Bonde das Maravilhas, esse é um aspecto que vale lembrar. Não só fama e notoriedade na mídia alavancaram a carreira da cantora e dançarina Gretchen, assim como ela ganhou prêmios e mais prêmios com essa dancinha insinuante e com sonoplastia puramente sexy hot, porque era assim que Gretchen cantava. Parecia que estava gozando!

18851-quadradinho-e-gravidez

Não condeno nenhuma dessas cantoras e/ou dançarinas. Só parto do princípio que minha mãe desde cedo me ensinou: “o pau que dá em Chico tem de ser o mesmo que dá em Francisco”. Se for pra escrachar tem de ser geral, e não fazer o que essa mídia podre e asquerosa está fazendo, dando de cacetada no grupo do Bonde das Maravilhas. E o pior de tudo, é a participação popular de uma gentinha hipócrita nas redes sociais.

E pra não dizer que sou insuportável (porque sou mesmo), a mídia tem jogado pra debaixo do tapete as Panicats, assistentes de palco do Programa Pânico na TV.

Isso sem contar a Anitta, outra jovem cantora de funk que largou a faculdade de administração e um estágio numa transnacional pra seguir seu sonho de virar artista e ficar famosa. Aos vinte anos, ela é sucesso nacional. Sua trajetória artística e história de vida ganharam os louros da Rede Globo, exibido naquela medíocre revista eletrônica semanal.

quadradinho

Ah! E ela sabe dançar o quadradinho, só não o faz, pois tem de parecer fina. Quer dizer que Anitta largou a faculdade pra seguir um sonho de menina, ao tempo que as que são malhadas atualmente são piriguetes, burras e futuras prenhas solteiras? Muito bom. Adoro o contexto em que Anitta se insere, frente à análise que a mídia perfaz.

Difícil levantar esse debate sem trazer à tona os aspectos sociais e raciais imbricados nesse bojo teórico reflexivo que envolve o Bonde das Maravilhas.

Não há como não falar da sexualidade da mulher negra sem atentar aos detalhes sutis que emanam dos ataques ao grupo nas redes sociais. Pois, falar que fazer o quadradinho de oito traz como consequência direta uma barriguinha de nove é o extremo do julgamento que se possa deliberar sobre mulheres jovens negras e moradoras de periferia.

18851-quadradinho-de-grc3a1vidas

Afinal, só mulher preta e pobre transa casualmente e engravida nesse país, e ainda por cima tem o sacrilégio de tornar-se mãe solteira? As brancas de classe média e de boas famílias também fazem isso, oras!! Maria Rita, a filha da saudosa musa Elis Regina, transou casualmente sem o menor compromisso que uma mulher branca do nível social que ela representa possa “merecer”, e engravidou duas vezes, diga-se de passagem, de homens diferentes.

Volto à pergunta. Por que ninguém malha Maria Rita? Porque ela é branca, rica, canta MPB e não mora na favela? Ah, e mais, porque fora alfabetizada? Sim, porque fazer quadradinho de oito é impossível já que se fosse quadradinho de oito não seria quadradinho e sim octógono. Total coisa de quem não concluiu sequer o ensino primário. Não é o que proferem por aí? Ou só eu que estou vendo?

18851-quadradinho-octctogono

Ou melhor, as meninas do Bonde “emprenham” cedo porque o único destino de meninas pretas, pobres e faveladas é “abrir o rabo pra parir”, ao tempo que branquinhas de classe média alta, ricas e famosas enfileiram um filho atrás do outro e muitas vezes são mães solteiras porque curtem uma “produção independente”, ou até mesmo porque “são férteis”. Faça-me o favor!

Mulheres brancas de classe média têm filhos “do primeiro e do segundo relacionamentos”. Mulheres pretas e faveladas têm filhos “com um e com outro”. Já perceberam isso?

educacacao-digna-x-quadradinho-de-oito

Se for pra jogar na masmorra o Bonde das Maravilhas, tratemos de assegurar o mesmo valhacouto para todas as outras que as antecederam nesse processo provocativo e pornográfico.

Não estou deste modo a defender as representações pejorativas que possam surgir desse movimento musical e a representação que a mulher negra, por sua vez, está cerceada. Só defendo o direito dessa mesma mulher negra não ser condenada por suscitar ações que outras mulheres brancas, ricas e com formação escolar reproduzem sem passar pelo mesmo crivo midiático ao qual se expõe.

No mais, creio que muito ainda se tem para discutir. Isso aqui é só uma provocação.

Fonte: Escrevivência

+ sobre o tema

Samira Soares, a resistência no ato de (re)escrever a própria história

A estudante de História usa suas próprias experiências em...

Movimento Negro no Brasil: novos e velhos desafios, por Sueli Carneiro

Ao longo dos últimos 25 anos, são muitas e...

Meninos Bons de Bola, o primeiro time de homens trans do Brasil

Raphael é o idealizador do Meninos Bons de Bola,...

Semente de Marielle

No último dia 14 de setembro completaram-se 30 meses...

para lembrar

45% das mulheres já tiveram o corpo tocado sem consentimento, diz pesquisa

Uma pesquisa realizada pelo Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica)...

Casal homossexual é agredido em estação de ônibus na Bahia

Vítimas foram agredidas por seis homens quando retornavam de...
spot_imgspot_img

Lula sanciona lei que aumenta pena para feminicídio

O presidente Lula (PT) sancionou, nesta quarta-feira (9), a lei que aumenta do feminicídio para até 40 anos. O texto também veta autores de crimes contra mulheres de...

Nota Pública ao PL 4266/2023: Consórcio Lei Maria da Penha – 2024

O Consórcio Lei Maria da Penha pelo Enfrentamento a Todas as Formas de Violência de Gênero contra as Mulheres (Consórcio Lei Maria da Penha),...

Só sete estados têm leis específicas de proteção contra assédio sexual a servidores

Apenas sete estados contam com leis que visam ampliar a proteção contra assédio sexual de servidores. Nesses locais, os estatutos de profissionais públicos vão além do...
-+=