Era uma tarde de domingo dos anos 70, como outra qualquer. Crianças brincavam em uma das travessas da avenida Kennedy, em São Luís. A diversão escolhida era cantiga de roda, brincadeira comum na época, em que meninas dançavam e cantavam rodando em círculo de mãos dadas.
no Assembléia Legislativa do Maranhão
“Eu sou uma viuvinha que vem de Belém, quero me casar, mas não acho com quem…”. O único menino do grupo entrou no meio da roda, dançando e cantando a estrofe da música, mãos na cintura, rebolando os quadris. Feliz e desenvolto na pureza do seu universo infantil.
Mas, pelas regras impostas pela sociedade de então, aquela brincadeira de roda não era para meninos, e sim, exclusivamente de meninas. E o garoto de seis anos pagou caro pela ousadia de dançar daquele jeito.
“Meu pai, de longe, me viu cantando e dançando igual às meninas, tirou o cinto e me deu uma surra no meio da rua, na frente de todos. Ele me arrastou pra casa aos gritos de ‘viadinho’ e dizendo que eu tinha que aprender a ser homem”, conta o cabelereiro Kléber Silva, hoje, com 45 nos.
Quase quarenta anos depois, este episódio e tantos outros que vieram em seguida, no próprio ambiente familiar, ainda estão presentes na memória de Kléber. “Papai me espancava muito e quase todos os dias. Não aceitava o fato de eu me comportar como menina”.
Kleber conta que, desde muito criança, se sentia diferente e desconfortável por ser menino. Queria se vestir como menina. Desejava vivenciar o universo feminino, sentia que fazia parte dele. “Eu sonhava em fazer balé e caminhava dentro de casa, e também nas ruas do bairro, na ponta dos dedos dos pés, imitando as bailarinas. Na escola, eu assistia aulas de ginástica rítmica e via a professora ensinando passos de balé. Ao chegar em casa, ficava repetindo os pliês em frente ao espelho. Quando meu pai via aquilo, me enchia de taca”, relata.
Mas o pai jamais permitiu que ele concretizasse o sonho de estudar balé. Kleber lembra que a intolerância e violência eram tão presentes em sua infância e adolescência, que sofria espancamento até quando já estava dormindo. Isso acontecia nas ocasiões em que o pai chegava em casa, no meio da noite, alcoolizado, invadia o quarto e arrancava o garoto da cama, sob cintadas. E de nada adiantavam os apelos da mãe.
Ele relata que apoio emocional encontrou apenas na mãe, que sempre o apoiou, dando-lhe todo amor. Hoje, Kleber é transformista e se apresenta em shows artísticos. “Quando eu estou montada, me chamo Pamela”, acrescenta.
A violência sofrida pelo cabelereiro Kléber no ambiente familiar, durante toda a sua infância e adolescência, não difere muito da realidade vivenciada por grande parte dos LGBTs. Em muitos casos a homofobia começa dentro de casa em forma de pai e mãe, mas fora dela o preconceito não tem forma, rosto, nem gênero.
A psicóloga Artenira Silva esclarece que, na infância, por volta dos quatro a seis anos, começa a ser construída a identidade de gênero da criança – se ela se identifica como menino ou como menina. Já no início da adolescência começa a ser definida a orientação de gênero. O garoto e a garota vão começando a ter desejo sexual e descobrem o que atrai sexualmente – se o sexo oposto, o mesmo sexo ou se têm atração por ambos os sexos.
Artenira Silva ressalta que os pais e mães precisam ler e se informar mais sobre o assunto para entender que a sexualidade humana é extremamente complexa. “Reprimir a identidade de gênero e humilhar o filho ou a filha só vai destruí-lo”.
“Mãe, não me deixe morrer”.
O preconceito no âmbito familiar é, sem dúvida, a mais dolorosa das homofobias. E a mais indiscutível. São poucas as pessoas homossexuais que passaram incólumes a essa triste experiência que marca, às vezes, de forma indelével, toda uma vida.
Diferente do preconceito e da discriminação que vem de estranhos, a homofobia familiar vem de quem deveria amar e proteger e em relação a quem os homossexuais são mais vulneráveis emocionalmente. Há casos em que a violência dos pais alcança níveis extremados.
“Mãe, não me deixa morrer”. A frase em tom de desespero foi a última tentativa do adolescente Itaberli Lozano, de 17 anos, permanecer vivo. Mas seu clamor não foi atendido.
Sites de notícia informam que aprisionado em um quarto de sua casa, o rapaz foi morto com golpes de faca no pescoço, que teriam sido desferidos pela própria mãe, Tatiana Lozano Pereira, de 32 anos, com a ajuda de mais duas pessoas. O crime aconteceu em dezembro do ano passado em Cravinhos (SP), ganhou ampla divulgação na mídia e mobilizou a opinião pública. Itaberli era homossexual.
O corpo do adolescente foi encontrado quatro dias depois, carbonizado em um canavial próximo a Cravinhos. Além das facadas, havia muitas marcas de espancamentos. A mãe relatou à polícia o apelo que lhe foi feito pelo filho, mas atribuiu a autoria das facadas mortais a dois jovens que ela contratou para dar uma lição no filho.
O advogado de Tatiana, que se encontra presa, tenta atenuar e afastar a homofobia como motivação do crime: “ela não queria matar, apenas dar um corretivo no filho”.
O crime que chocou o país aconteceu em São Paulo, mas, fato semelhante por pouco não ocorreu também em São Luís, em 2013. Uma mãe, revoltada por não aceitar que o filho de 14 anos tivesse se assumido gay, contratou três rapazes para ‘dar um corretivo’.
O jovem de 19 anos, que preferiu não ter sua identidade revelada, conta que passou por uma sessão de tortura, com muito espancamento e foi jogado de uma altura que quase lhe levou a óbito.
“Eu estava andando na rua quando apareceram três homens na minha frente e me disseram: trouxemos um recado da tua mãe, ‘viadinho’. Um deles me derrubou com uma rasteira e os outros começaram a me espancar com muita violência. Foi quando outro me agarrou pela camisa e me jogou de cima para baixo. Bati a cabeça muito forte e desmaiei. Quando acordei já estava no hospital Socorrão. Fiquei internado alguns dias e por pouco não morri”, relata o jovem.
Para deixar marcas profundas, a homofobia intrafamiliar não precisa ser apenas física. Palavras e atitudes intolerantes vindas de pai ou de mãe não ferem o corpo, mas machucam a alma.
Foi o que aconteceu com o jornalista Jock Dean, que se assumiu gay há 10 anos. A frase que ouviu da mãe, na ocasião, até hoje não foi esquecida. “Eu tomei a decisão de contar para a minha mãe e, naquele momento, ela me disse que tinha vergonha de mim. Doeu muito e posso garantir que de todas as situações vivenciadas em função da minha homossexualidade essa foi a mais pesada ”, afirmou.
Jock Dean assume sua expressão de gênero por inteiro. Usa maquiagem no dia a dia, sombra, batom vermelho e mantém as unhas longas, bem cuidadas e pintadas com cores escuras. “Quando entro em banheiro de shopping, para dar a retocada básica na maquiagem, alguns homens me olham de forma torta, risinho no canto da boca, expressão de escárnio. Preconceito em locais públicos, isso está presente no meu cotidiano”.
Jock Dean afirma que quando percebe alguma atitude preconceituosa parte para o enfrentamento. Diz que primeiro tenta entender se a pessoa está agindo daquela forma por ser ignorante, sem informação, ou por maldade e puro preconceito. Confirmando a segunda hipótese, aí sim, ele altera a voz e fala mais alto.
Na rua, Jock relata ser muito comum ouvir piadinhas de homens que param os veículos, gritam e dão buzinadas. “Uma vez contei dez pessoas fazendo isso só enquanto eu esperava o ônibus para ir para o jornal. Aí, a gente se pergunta: por que uma pessoa para alguns segundos do seu tempo para se importar com alguém só porque esta pessoa não é igual a ela?”.
Atualmente, o jornalista Jock Dean integra o grupo ‘Curta Diversidade’, um coletivo LGBT que se reúne no Cine Praia Grande para exibir e debater sobre filmes, também promove rodas de diálogos com pais e participa de eventos para discutir o tema, quando convidado.
Jock é um militante da causa LGBT. “Quando se é LGBT a militância é perene, desde a hora que se acorda até a hora que vai dormir. O simples fato de estar na rua, ser um LGBT assumido em um cenário atual com o conservadorismo avançando absurdamente é um movimento de militância”.
Ele afirma que “viver sem medo é uma forma de ativismo e o principal ato politico que um LGBT pode fazer por si é se assumir e viver sua sexualidade, livre de qualquer amarra”.
Homofobia está presente nas ruas e deixa rastro de sangue
A homofobia é a repulsa ou aversão aos homossexuais. O preconceito em muitas sociedades impede que gays possam exercer livremente a sua cidadania ou viver em segurança. Alvo de discriminação, são constantemente ameaçados com insultos ou agressões físicas que, muitas vezes, levam à morte.
A Rede Trans e o Grupo Gay da Bahia divulgaram dados preocupantes. Só nos quatro primeiros meses deste ano, 53 transgêneros foram mortos – um aumento de 18% em relação ao ano passado. Transgêneros são as pessoas que se identificam com o sexo oposto ao atribuído quando do nascimento.
Os dados confirmam a intolerância contra a comunidade LGBT no país. Segundo o Grupo Gay da Bahia, no ano passado, foram registrados, no país, 343 assassinatos de gays, travestis e lésbicas, vítimas de agressões físicas.
O mesmo grupo afirma que a cada 25 horas, uma pessoa com uma dessas orientações sexuais é morta no Brasil. É o maior índice desde que o grupo começou a fazer este levantamento, em 1979. Os números apontam que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo.
No Maranhão, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos identificou 67 assassinatos, entre janeiro de 2008 e fevereiro de 2017, relacionados à orientação sexual ou identidade de gênero das vítimas. Deste total, 49 assassinatos foram de gays (73%); 15 mortes de trans (22%); 1 morte de bissexual (2%) e 2 mortes de lésbicas (3%). Em 2016, segundo a SMDDH, foram registrados 15 homicídios relacionados à homofobia. Em 2017 já há registro de 13 assassinatos.
Mesmo com todos os indícios de que os crimes têm motivação homofóbica, a falta de previsão legal no Código Penal para homofobia dificulta a punição mais rigorosa dos autores da violência.
O delegado Guilherme Campelo esclarece que os crimes que envolvem preconceito de gênero têm características próprias, pois deixam marcas de ódio e grande rastro de sangue. Nos corpos das vítimas há mutilações que evidenciam tortura e, na maioria das vezes, são utilizadas armas brancas, pauladas e asfixia.
“Pela própria cena do crime em que as vítimas são deixadas, durante a investigação confrontamos as circunstâncias com a orientação sexual da vítima e o autor tomado por um ódio muito grande”, explicou.
A subnotificação pode estar mascarando a maioria dos casos, o que faz com que as mortes envolvendo LGBT sejam registradas como homicídios simples.
Em São Luís, pelo menos um caso recente se enquadra nestas características. No dia 31 de maio deste ano, o adolescente Lucas Carvalho, de 17 anos, foi assassinado a golpes de faca no bairro da Divineia, em São Luís. Seu corpo foi encontrado com sinais de tortura, várias perfurações a faca no abdome, pescoço cortado e sinais de violência sexual.
Depoimentos de vizinhos e alguns familiares confirmam que o rapaz era homossexual. Cinco meses depois, o crime continua envolto em mistério e não há suspeito da autoria. A mãe de Lucas, até hoje sofre pela falta de punição para os culpados e busca compreender os motivos que levaram à morte o filho. “Meu menino não tinha inimigos, não procurava confusão, não andava errado. Ele só pensava em se divertir. Não entendo porque fizeram isso”.
Movimento LGBT luta pela criminalização da Homofobia
O presidente do Conselho Estadual LGBT do Maranhão, Airton Ferreira da Silva, confirma a tese de que os casos de homicídio com motivação homofóbica não são notificados por falta de criminalização da homofobia no Brasil. “O fato de não criminalizar esta prática, como é o racismo, o feminicídio e a violência contra a mulher, impede que tenhamos dados importantes para que o Estado possa investir em políticas públicas nesta área”, esclareceu.
O Movimento LGBT quer que uma lei parecida com a do Feminicídio seja sancionada para punir com mais rigor quem comete crimes contra gays e lésbicas
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA, Rafael Silva, afirma que falta vontade política para compreender que a homofobia é uma realidade na sociedade brasileira, mata e violenta pessoas.
“E esta violência acontece fisicamente e simbolicamente, ao longo da vida e todos os dias, em relação apenas a pessoas que estão lutando pelo direito de ser. Estão lutando para expressar os seus afetos e por valores que são positivos para a nossa sociedade”, ressalta Rafael.
Ele explica que o movimento LGBT tem uma luta que é importante a todas as pessoas, mesmo as que não se inserem no grupo LGBT, porque é uma luta pela liberdade existencial, pela liberdade dos afetos, a luta pelo amor. “Evidentemente que a OAB faz parte dessa luta, ela não apenas apoia, é uma luta da OAB porque é uma luta da democracia”, conclui.
O secretário de Direitos Humanos do Estado, Francisco Gonçalves, disse que a Secretaria vê com preocupação e tem criado campanhas para barrar a violência, apoiando e incentivando a população LGBT, os encontros, as paradas gays, os seminários e as articulações regionais e nacionais para fortalecer a agenda deste segmento.
A Secretaria de Direitos Humanos também está avançando na consolidação do Conselho Estadual de Direitos da População LGBT e na construção de agendas de politicas públicas com as Secretarias de Saúde, Educação e Segurança Púbica. Francisco Gonçalves afirma que há o enfrentamento das práticas violentas contra a população LGBT e a maioria dos crimes foi apurada e espera-se a punição dos acusados