Ícaro Silva || Créditos: Reprodução/ Instagram
Ícaro Silva fala. Basicamente sobre tudo que norteia sua vida. Bota o dedo na ferida do racismo e diz que – apesar do respeito que conquistou como artista – não faz muito TV porque não é um veículo “convidativo” para negros. Diz por que não gostaria de ter exposto em rede nacional [no ‘Domingão do Faustão’] que sua mãe foi vítima de bala perdida quando dormia ao seu lado – ele ainda bem pequeno – explicando que essa é a realidade de todas as crianças de comunidade, que não existe nada de especial na história dele e que teme que seu exemplo de sucesso estimule a crença na meritocracia, que, na opinião dele, não existe nas favelas e periferias. “Tive sorte”. Ele também toca no machismo ao comentar sobre quando postou uma foto abraçado a outro ator, com um poema de amor na legenda e deduziram que os dois formavam um casal. “Teve esse lado bonito, sim, das pessoas abraçarem o casal, incentivarem. Mas mostrou também esse bloqueio na questão da afetividade masculina. Vai logo para a homoafetividade. Isso porque, teoricamente, homem não troca carinho com homem. E isso é velho”. Vem ler até o final esse textão porque o rapaz aqui tem muito a dizer, glamurette! (por Michelle Licory)
Da Glamurama
Glamurama: Você está em cartaz no Rio com “Ícaro and The Black Stars”, uma homenagem à música negra de várias gerações e países. Paolla Oliveira aparece no material de divulgação, convidando para o espetáculo, e contou pra gente que botou dinheiro para ajudar a levantar a produção. Como foi realizar esse projeto nesse momento de crise econômica?
Ícaro Silva: “Já trabalho cantando em musical há muito tempo [interpretou Jair Rodrigues e Simonal, por exemplo], sabia que queria fazer algo relacionado à música, mas não queria apenas chegar em um palco e cantar. Queria juntar outras ferramentas como ator e rolou essa confluência de pensamentos com o Pedro Brício, que escreveu o texto. Conseguimos juntar uma equipe brilhante em tempo recorde – e não é fácil fazer teatro no Brasil, ainda mais de repente. Então foi muita coisa na base da parceria. Não temos um patrocínio enorme, e sim gente que acreditou no projeto, como a Paolla Oliveira [que investiu na ideia, como ela explicou pra gente], minha amiga há muitos anos. Unir forças é uma realidade do cenário brasileiro atual. A gente está em crise e ninguém está liberando dinheiro – pra cultura muito menos. Nosso objetivo foi montar algo que fosse mega, mas na imaginação do público, sem demandar uma estrutura mega. E que fizesse os olhos brilharem, que divertisse e fizesse pensar”.
Glamurama: O espetáculo é muito alto astral, uma delícia, mas faz críticas pontuais – sociais e políticas. Isso sem perder a leveza em nenhum momento. Pra você, é essa a melhor forma de se posicionar?
Ícaro Silva: “A melhor forma de se posicionar é artisticamente. É esse o meu caminho, como sei fazer. E preciso me posicionar. É totalmente função do artista. Não tenho como não falar sobre o que é ser artista negro no Brasil e participar de uma desigualdade social, não tem como não falar de política. Nosso espetáculo é vibrante, leve, divertido e por isso as críticas ficam nesse clima também. O texto é vanguardista, fala como a cultura negra se desenvolve ou não na sociedade e consegue misturar tudo. Críticas precisam ser ditas de forma direta e clara, mas sem ter que entrar numa bad, num lugar negativo”.
Glamurama: Na semana da estreia, conversamos com muita gente sobre você. Paolla, Nathalia Dill e outras pessoas… Por que todo mundo quando vai falar de você antes abre um sorriso? O que você faz que cativa tanto seus colegas?
Ícaro Silva: “Olha, o que eu tenho na verdade, meu segredo… [brinca Ícaro, visivelmente sem graça com o elogio] Bom, sou muito comprometido com o que eu faço, com o meu trabalho, com o que é ser artista no Brasil. Não nasci comprometido, fui me tornando porque sei que essa é minha ferramenta de mudança social. Tenho 31 anos, não sou velho, mas já vivi muita coisa. Entendi que a gente precisa viver comunitariamente, ajudando o próximo, por mais religioso e místico que isso possa soar. Se as pessoas sorriem quando vão falar de mim é porque estou fazendo uma boa contribuição e porque mergulho, me dedico ao que faço, já que não sei fazer nada além disso”.
Glamurama: Você é um artista bastante respeitado dentro do seu meio, também por conta de sua bagagem no teatro e no cinema. Mas ainda não teve um grande papel na TV, uma oportunidade de mostrar todo o seu potencial para o grande público, as massas. O que falta?
Ícaro Silva: “Busco ter contato com o maior número de pessoas possível. A TV é um atalho poderosíssimo nesse sentido. O ‘Show dos Famosos’ [quadro do Faustão] me mostrou isso. A televisão é vista como uma plataforma respeitável, mas isso é muito mais midiaticamente falando. Estou interessado em grandes personagens, independente da plataforma. E o lance da TV é que não escrevem personagens para atores negros. Dá pra contar nos dedos quantos atores negros de 20 a 30 anos estão na TV: não é um lugar muito convidativo pra gente. Não me convidam muito. Então busco lugares que me convidem. Sei fazer várias coisas. E quero dividir a exaltação da cultura negra. Espero conseguir através do meu espetáculo”.
Glamurama: A gente comentou algo parecido com o Fabricio Boliveira, que conquistou antes um respeito fora da TV até ter a chance de mostrar sua grandeza artística no horário nobre de um veículo do tamanho da Globo. E ele disse que deixou de aceitar papeis menores porque queria um protagonismo, e não apenas “ser pano de fundo para os outros”, o que ele conseguiu agora em “Segundo Sol”. Você pensa assim também?
Ícaro Silva: “A TV não me cria nenhuma responsa… Sou uma criatura bem mais dos palcos que do set. O Fabricio foi se construindo onde havia papeis. É assim que o ator negro faz. Ele é genial, estupendo, o máximo que ele pode ser em cada trabalho que faz e agora de fato conquistou uma plataforma que atinge muita gente e as pessoa começam a falar sobre isso. Que bom. Nem sempre temos essa chance, então a gente vai passo a passo. E sem dependência de trabalhos na TV. Um bom personagem pode ter um espectador só – isso é lindo no teatro”.
Ícaro Silva || Créditos: Reprodução/ Instagram
Glamurama: E se nada acontece nesse sentido na Globo, existem outras alternativas, como o Netflix. O que você pode falar sobre sua parceria com eles?
Ícaro Silva: “Vou fazer ‘Coisa Mais Linda’ [que fala sobre a Bossa Nova], mas não posso dizer mais nada. Estou onde estiverem os bons personagens. Fui chamado para o teste, fiquei encantado com o personagem e acho que vai ser um barato”.
Glamurama: No Faustão, sua mãe revelou que foi vítima de bala perdida dentro de casa, quando dormia ao seu lado, em uma comunidade… Você ainda era uma criança. Durante o programa, você pareceu incomodado por estar falando sobre essa história ali, ao vivo. Por quê?
Ícaro Silva: “Acho que a gente precisa tomar cuidado ao incentivar a crença na meritocracia… Essa ideia de que qualquer pessoa pode conseguir vencer, que o garoto da favela pode conseguir vencer. Não acho que funciona assim. Minha história é de exceção. Tive muita sorte. A realidade de todas as crianças da periferia não passa por aí. Não há nada de especial sobre o meu passado. A minha história é uma história de terror… Não vou dividir com ninguém, como se ela me diferenciasse. Essa é a história de todas as crianças marginalizadas. Marcos Vinicius em 2018 foi assassinado por um blindado da polícia perto de casa [na favela da Maré, no Rio]. Não fiquei feliz de abordar esse meu tema nesse lugar e não tenho essa pretensão de dividir essas historias… Até passa por esse lugar da vitimização: não quero me vitimizar porque já passou e não dialoga com meu presente… Não estou vivendo nada disso hoje, mas tem milhares de crianças vivendo essa realidade de morte, violência, marginalização… A meritocracia não funciona no Brasil. As oportunidades são muito distantes”.
Glamurama: Qual é o jeito Ícaro Silva de vencer adversidades como essa?
Ícaro Silva: “Tive esse insight como já te disse… Existe uma percepção que eu alcancei na vida graças à minha mãe, que é a face do altruísmo: essa importância de viver em comunidade. Então a gente não tem muito o que fazer: tem que acordar todos os dias e pensar o que pode fazer pra ajudar o mundo a seguir vivendo… Um mundo que está brutalizado, destruído, violentado. Não está fácil: o machismo e o racismo são muito grandes, o individualismo também. Você precisa fazer algo para o mundo melhorar e isso inclui ser uma pessoa feliz e sorrir apesar de tudo. Vamos seguir em frente. Não dá pra desperdiçar essa encarnação nesse planeta maravilhoso. As adversidades acabam assim”.
Glamurama: Queria aproveitar dois ganchos que você deu: machismo e racismo. Primeiro sobre racismo: esses dias uma verdadeira corrente avassaladora de celebridades com seus milhões de seguidores nas redes sociais se mobilizou para literalmente tentar desestruturar um jovem youtuber/ blogueiro que publicava conteúdo racista e um jornalista que escreveu um título considerado racista numa reportagem, e depois se defendeu dizendo que a expressão tinha saído do texto do João Emanuel Carneiro, autor de “Segundo Sol”, tema da tal reportagem. Gostaria que você comentasse esse movimento.
Ícaro Silva: “A gente precisa falar sobre isso. Racismo é uma das grandes sujeiras na nossa casa. Estamos finalmente olhando em volta e percebendo que temos um problema bem grande, que precisamos derrubar pra continuar existindo. Precisamos ouvir as vozes que não são naturalmente ouvidas. Achei maravilhoso o posicionamento do Danilo [Ferreira, intérprete de Acácio em ‘Segundo Sol’, personagem da tal reportagem, que se sentiu ofendido e se manifestou nas redes, começando essa corrente de ‘reposts’]. Estou totalmente com ele. Sou mais retraído nas redes, mas estou ambientado. A mídia no Brasil tem muito poder. As pessoas acreditam nas notícias, se informam através de grandes veículos, que precisam ter responsabilidade social. O posicionamento do jornalista soa mais racista ainda quando ele diz que a expressão vem da sinopse. Não sei muito sobre essa novela além das polêmicas que ela gera [como ter poucos negros no elenco mesmo se passando em Salvador], mas propagar uma discurso racista? O que estamos reverberando? Eu, com 300 mil seguidores, sei que já tenho um poder. Imagina esse cara com 11 milhões [o youtuber]. Nem sabia que ele existia e ele existe com essa força avassaladora entre jovens. E tem esse posicionamento racista tão absurdo… Me faz pensar o quanto isso está errado e o quanto não estamos preocupados. Você tem que se preocupar com a novela que vai apresentar, com o título da sua matéria… Isso tudo é muito leviano, grave. A mídia age com muita leviandade. Nós precisamos que a mídia esteja mais atenta a quem somos para que a gente evolua. Isso é básico. A mobilização é necessária. Vamos parar de nos justificar? Sendo um grande veículo de mídia ou tendo 11 milhões de seguidores. Sim, somos racistas. Vamos assumir e resolver o problema?”
Glamurama: Agora falando sobre machismo… Certa vez você postou uma foto abraçando o ator Bernardo Mendes, junto com uma poesia sobre amor. Muitos de seus seguidores deduziram que se tratava de um casal e apoiaram. Não vi hater por lá. Depois você negou, mas me impressionou essa postura desses seguidores…
Ícaro Silva: “Acho que tem uma comunidade da internet que está se comunicando de uma maneira mais evoluída já. E acho que é por isso que temos também esses casos de extremismo, preconceito, machismo, racismo. A gente tem essa ferramenta de articulação digital e pode reunir pessoas com o pensamento mais alinhado com o nosso. Vai ficar pedante isso, mas acredito que quem me segue são pessoas com um pensamento mais evoluído. O Bernardo é um dos meus melhores amigos e foi muito engraçado tudo isso. A gente se zoa pra sempre com esse assunto, e se vê com muito amor e poesia. Teve esse lado bonito, sim, das pessoas abraçarem o casal, incentivarem. Mas mostrou também esse bloqueio na questão da afetividade masculina. Vai logo para a homoafetividade. Isso porque, teoricamente, homem não troca carinho com homem. E isso é velho. Prefiro acreditar no caminho do amor. Mesmo que achem que somos um casal, preferem apoiar o amor, e acho que esse é o caminho. É preciso desconstruir esses padrões machistas, como o que vimos quando a Manuela D’Avila foi no ‘Roda Viva’. A gente assiste a aquilo, identifica logo o problema, luta contra, reposta na internet. Tem que ver onde está sujo para poder limpar”.
Glamurama: Por fim, queria que você falasse um pouco sobre o filme “Legalize Já”, que estreou ano passado em festivais, mas ainda não entrou em circuito.
Ícaro Silva: “Esse filme fala de amizade, de enfrentar adversidades pelo caminho do amor. Fala da relação do Marcelo D2 com o Skunk [papel de Ícaro], de como no momento mais sombrio da vida dos dois eles se uniram para mudar seu entorno. E nos anos 90, de ressaca da ditadura militar, de repressão policial, mais ou menos como está hoje. Eles se articularam politicamente e socialmente a partir de uma articulação artística e esse personagem é muito querido pra mim. Deve estrear nos cinemas agora no segundo semestre. É um belíssimo filme para ser visto neste momento do nosso país porque fala desse senso comunitário, de vencer o seu entorno, de não acreditar que é você que está errado. A gente muitas vezes é vencido pelo sistema, por essa ideia de que não somos o suficiente por conta da nossa realidade de favela, de periferia marginalizada. Quanta gente capaz, boa, com tantas habilidades é marginalizada pelo sistema?”