Igualdade no Brasil miscigenado

por Eliane Oliveira

Ser preto no Brasil é não existir, o discurso gritado aos ventos de que somos um povo miscigenado, que temos orgulho da nossa mistura é uma mentira tão bem dita que, como toda boa mentira, de tão repetida, se tornou uma verdade. Mas não, não é verdade. Essa fala deveria se resumir a nossa cultura e, neste caso, ao uso restrito ou particularista do termo cultura, pois é muito legal exaltar a influência do molejo do povo preto na dança, na musicalidade, nos esportes, espaços em que as “glórias” são compartilhadas pela maioria da população. Está internalizado e naturalizado, pela maioria, que nossa cultura sofreu essa forte influência, que somos essa mistura gostosa das raças, sim porque nesse momento o termo “raça” é perfeitamente aplicável. Mas para por aí, pois raramente alguém olha para esses exemplos enxergando apenas a presença do negro, pelo contrario, muitas vezes ao legitimar nossa antropofagia cultural, tendem a invisibilizar a população preta, no sentido de algo que foi apropriado, transformado e, pronto, o negro já pode sair de cena, já cumpriu seu papel.

Dessa forma, o que se percebe no restante do quadro social é que o negro brasileiro não existe e o contrario disso, ele é um incomodo que precisa deixar de existir. Quando o assunto são números, dados estatísticos, políticas públicas aí a população preta passa a ser inimiga numero um de uma sociedade brasileira que vive encastelada e paga seus impostos e acha que por isso é diferenciada (como se morador do morro fosse isento pelo Estado). Esse povo que morre todos os dias vitimados pelas balas “perdidas”, pela “guerra” entre traficantes (?), que (sobre) vive nas favelas, na periferia, que pegam quatro conduções para ir para o trabalho, esses não fazem parte do Brasil que todos querem, cantado em verso e prosa.

Então que mistura é essa, que deu formato a esse país e violenta seus próprios geradores? Que tende a invisibilizar os sujeitos? Que apaga identidades? Que julga comportamentos e caráter a partir da cor da pele? Que reconhecimento é esse que delimita espaços de atuação? Que sociedade miscigenada é essa que repete um mantra de igualdade inexistente? Não somos iguais, nem na cor da pele, nem nas condições de acesso aos mais diferentes espaços, muito menos perante a Lei. O que temos visto na mídia sobre a violência contra a população preta é só um pequeno exemplo daquilo que ocorre todos os dias, mas o que mudou? Por que temos presenciado tantas notícias sobre pretos mortos, agredidos, vitimados nos telejornais?

 Talvez seja porque a internet faça movimentar uma mídia televisiva acomodada e amarrada dentro da sua própria realidade brancocentrada, afinal como ficar alheio a acontecimentos que bombam nas redes sociais, é preciso buscar esse público, ok? É inegável o poder que a rede tem em contribuir com essa discussão, pois dá visibilidade aos sujeitos periféricos, mas as vítimas que aparecem no noticiário raramente são anônimas, quando os “invisíveis” aparecem no jornal da noite é porque já ouve uma grande mobilização nas redes sociais (como no caso de Amarildo e da Márcia). Mas é claro que o papel da grande mídia deve ser destacado, pois em casos como os que têm noticiado com tanta veemência ultimamente no seu noticiário é inegável o “favor” que determinados programas prestam para a formação de caráter dos sujeitos sociais. Basta observar a representação estereotipada dos negros nas telenovelas, nos quadros de humor, minisséries, etc.. Matar negro é natural, todo preto é vagabundo, todo favelado é traficante, o cabelo afro deve ser ridicularizado, a miséria humana é motivo de piada. O comentário “engraçado” sobre o cabelo, cor da pele ou formato do nariz de uma mulher/homem pode parecer despretensioso, mas carrega toda uma carga de preconceito e violência simbólica sobre o povo preto, mas não pode ser considerado ofensivo, pois foi apenas uma brincadeira, não é mesmo?

Não existe brincadeira aceitável quando essa legitima a violência, da mesma forma que esse tipo de coisa fomenta a negação das características próprias da maioria da população preta por parte de um grande numero de meninas e meninos, quando o publico vê um personagem negro na novela como ignorante e violento, a reprodução é automática, por que será que produtores e apresentadores não conseguem enxergar isso? O espaço destinado à população preta na TV é a mesma que a sociedade branca elitista quer determinar no plano real, afinal a vida imita a arte ou a arte imita a vida? No caso da TV, quem manipula o quê? Com certeza essa dominação não conta com a participação dos negros, a ideologia midiática televisiva é branca, elitizada e masculina. É a cultura dominante que é aceita, a que banaliza os preconceitos e naturaliza a violência. Vão me dizer que sim, que há negros atuando nesses espaços, e eu pergunto em que numero e em que posições?

Choramos nossos mortos todos os dias a muitos anos, faz parte da formação histórica negra brasileira, a espetacularização do sofrimento visto na TV serve como consolo para alguns, sei o quanto é doído perder alguém e o quanto precisamos de conforto nessa hora, talvez fosse ainda mais doloroso se nem ao menos nesse momento houvesse o reconhecimento da vida, da pessoa, do ser humano, do trabalho realizado, enfim, se não houvesse a visibilidade da dor sofrida pela perda irreparável da dignidade e da vida. Porem não redime ninguém da culpa, da conivência silenciosa, das piadinhas de bastidores, da ausência de cobranças, da passividade que entorpece. A sociedade precisa repensar suas práticas e reconhecer as mudanças sociais ocorridas, pois essas promoveram alteração de posições na estrutura que deu forma ao Brasil, ou pelo menos ao que sempre vigorou no pensamento coletivo, sair da zona de conforto, parando de repetir frases feitas que não convencem mais ninguém.

Pregar miscigenação como símbolo de igualdade social/racial é uma mentira tão vergonhosa que só mostra o quanto a elite brasileira tenta nos enfiar goela abaixo um discurso para justificar as mazelas que ela mesma produz. Sim, somos um povo misturado, mas qual não é? Somos um país preconceituoso e racista, não somos diferentes do resto do mundo, somos sim reprodutores das mazelas sociais presentes nas sociedades que se desenvolvem sem planejamento e que se pautam na lógica do mérito individual. Não somos a nação paradisíaca, com clima tropical e “bonito por natureza”, essa beleza esta na letra da musica e nas paisagens naturais, a realidade social de determinados grupos esta mais para o “Funk da felicidade”, pois o pouco que ainda podem querer é “andar tranquilamente na favela” onde nasceram e nem isso conseguem!

A igualdade não se dá nos discursos bonitos tão pouco em lágrimas midiáticas. É preciso mudar as práticas, as posturas, assumir responsabilidades, mais que falar sobre é preciso agir. Precisamos de políticas efetivas, repensar a formação dos sujeitos sociais, é preciso olhar pro eu e enxergar o outro, além de cobrar de quem comanda, reconhecer direitos e cumprir deveres. Ah, mas isso dá muito trabalho e é praticamente impossível mudar algo que já está “culturalmente” legitimado me dirá alguns, então vamos sentar em frente à TV e aplaudir o espetáculo?!

Eliane Oliveira

Mestre em Ciências Sociais, professora, mulher, negra, mãe, feminista e briguenta.

Fonte: Blogueiras Negras

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