Ilê Aiyê meio século de luta, beleza e resistência

FONTEPor Fernanda Meneses
Imagem de desfile do Ilê Aiyê no Carnaval de Salvador (BA), cidade onde o bloco afro foi fundado em 1º de novembro de 1974 — Foto: Milton Guran / Divulgação Editora 34

O mais belo dos belos está aniversariando. São 50 anos de história. Meio século de luta, resistência, dança, música, arte e negritude. O Bloco Ilê Aiyê deixou de ser apenas um bloco afro carnavalesco e se tornou patrimônio cultural brasileiro. 

É impossível não se embalar com os batuques do primeiro bloco afro de Salvador que desde 1974 vem embalando o carnaval baiano. A história do Ilê Aiyê começou na famosa Ladeira do Curuzu, situada no bairro da Liberdade, bairro mais negro do Brasil, segundo o IBGE. Foi ali, no terreiro Ilê Axé Jitolu, sob a liderança de Mãe Hilda Jitolu, que seu filho Antônio Carlos dos Santos, o Vovô do Ilê e Apolônio Souza Filho, criaram o grupo. “A ideia foi criar um bloco afro onde os negros seriam os protagonistas. Porque antes do Ilê Aiyê os negros aqui da Bahia, de Salvador, saíam nos blocos como carregadores de alegorias, tocando tambor”, conta Vivaldo Benvindo, irmão de Vovô do Ilê e um dos diretores do bloco.

No final dos anos 1960 e início dos 1970, o Brasil sentia os reflexos do movimento negro dos Estados Unidos. O auge do Black Power, com figuras como Malcolm X e os Panteras Negras, inspirou jovens ao redor do mundo a lutar contra o racismo e por representatividade. O movimento atravessou fronteiras chegando entre os jovens baianos que buscavam transformar o cenário de exclusão para pessoas negras no Brasil em meio à ditadura militar. E foi com esse pensamento que em 1975, o Ilê desfilou pela primeira vez ao som de “Que Bloco é Esse”, composição de Paulinho Camafeu.

Cores e símbolo 

Colorindo a avenida com o vermelho, preto, amarelo e branco, o Ilê Aiyê logo se tornou uma presença marcante no carnaval baiano. Os jovens na faixa etária de 18 e 19 anos, que desfilaram naquela primeira vez em 1975 não imaginavam a repercussão. “Nós não tínhamos a menor ideia de que íamos provocar essa revolução social e cultural que nós provocamos nesse país”, compartilhou Vivaldo, que faz parte da primeira formação junto com suas outras duas irmãs Dete Lima e Hildelice dos Santos. Ele ainda revelou que quando a ideia surgiu sua mãe perguntou “as meninas vão desfilar também?” e com a afirmativa, ela decidiu se juntar. 

Cada cor do bloco carrega um significado que expressa a ancestralidade e a força do povo negro. O preto simboliza a raça; o vermelho, a luta e o sangue do povo negro derramado; o amarelo traz à beleza e riqueza cultural; e o branco, a paz. Essas cores ajudaram a criar uma identidade cultural e política que perdura por gerações. Atrelado às cores, aos trajes e às estampas até hoje utilizadas pelos integrantes, o bloco ganhou em 1978 mais um elemento importante para compor a identidade: o perfil azeviche. 

Criada por Jota Cunha, a máscara carrega quatro búzios abertos na testa, formando uma cruz, e possui um simbolismo poderoso. Conhecida por outros nomes em diferentes etnias, a máscara é um objeto ritualístico importante em diversas culturas africanas, representando a natureza, a humanidade, a coletividade e a transcendência espiritual.

Musicalidade e carnaval 

E como contar a história do Ilê sem falar das letras das músicas e do toque dos tambores que automaticamente te leva para a Senzala do Barro Preto, para a noite da Beleza Negra, ou te transporta para a saída do bloco na terça-feira de carnaval? Sempre com letras que denunciam o racismo e exaltam a beleza negra, as músicas fazem refletir sobre a importância da identidade afro-brasileira. E foi o compromisso com a resistência que levou o Ilê a gravar seu primeiro álbum em 1984, consolidando suas canções como hinos da luta e do orgulho negro. 

Mesclando o samba com batuques oriundos do Candomblé, o ritmo dos tambores da banda Aiyê, invadiu o cenário musical brasileiro com o samba afro, e as regravações das músicas do bloco nas vozes de artistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Margareth Menezes, Daniela Mercury e Ivete Sangalo fazem sucesso e são cantadas até hoje. 

“Oh não me pegue e não me toque. Por favor, não me provoque. Eu só quero ver o Ilê passar”, imagine só essa frase sendo ecoada por milhares de pessoas? Difícil para alguns imaginar, mas sentido por quem tem o privilégio de acompanhar a saída do bloco lá da Senzala do Barro Preto. “São mais de 50 mil pessoas aqui para assistir a saída do Ilê. É um negócio que me deixa impressionado, todo mundo vem aqui com o intuito de cantar e dançar”, Vivaldo.

E se a saída do mais belo dos belos já emociona e é um dos momentos mais esperados do carnaval soteropolitano, a Noite da Beleza Negra também representa uma celebração importante e essencial para a cultura afro-brasileira. Criada em 1979, essa noite acontece 15 dias antes do carnaval e é o momento de escolher a Deusa do Ébano – a Rainha do Ilê.

Para além de um concurso, para muitas mulheres negras, essa noite é uma oportunidade de resgate e afirmação de sua autoestima em uma sociedade que historicamente negou e marginalizou a beleza negra. A Noite da Beleza Negra simboliza um espaço de acolhimento e reconhecimento, onde elas podem sonhar em ser vistas, valorizadas e exaltadas em toda a sua grandiosidade. 

Ilê para além da arte

Todos esses anos de luta, resultaram em um impacto que vai além do bloco. O Ilê Aiyê está impactando também a educação de jovens no bairro da liberdade. Na sede, funcionam três escolas que têm sua base na afirmação da negritude, no autoconhecimento e no enfrentamento do racismo, incluindo a Escola Mãe Hilda, que oferece ensino fundamental e teve seu início quando mães do bairro procuraram Mãe Hilda para ajudar seus filhos com dificuldades escolares. 

Além da Escola Mãe Hilda, há a Escola de Arte e Educação, que funciona como uma instituição complementar no contraturno, atendendo cerca de 100 jovens e oferecendo atividades que enriquecem a formação cultural e artística. Também existe uma escola profissionalizante, que já ofereceu cursos como auxiliar de cozinha, eletricista predial, dança e muitos outros, capacitando os jovens para o mercado de trabalho e ampliando suas perspectivas profissionais. 

Durante esses 50 anos, o Ilê conseguiu formar muitos jovens, inclusive dentro da própria família e isso é sem dúvidas, motivo de orgulho, mas apesar do belo trabalho e de todo o reconhecimento mundial, o bloco ainda sofre com a falta de apoio do governo e da iniciativa privada para manter esses projetos e Vivaldo ressalta que apesar de estar resistindo há tanto tempo, o objetivo ainda não foi totalmente cumprido. “Nosso objetivo é chegar no poder dessa cidade e chegar no poder do país. Aqui no Ilê tem uma música que diz: Lindo é subir o Curuzu, difícil é chegar na cidade”. E chegar na cidade pra gente é chegar no poder […] ver negro assumindo o poder desse país onde nós somos a grande maioria”.

Vida longa ao Ilê Aiyê!

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