Bloco traz resistência da mulher negra frente a intolerância e o ódio por meio da ciranda da mestra pernambucana
Por Marina Duarte de Souza, Do Brasil de Fato

Ao som da cantiga de Oxalá, orixá das religiões de matriz africana que representa a paz e a criação do ser humano, o Ilú Obá de Min abriu o carnaval de São Paulo e inundou a Avenida Ipiranga, no centro da cidade, na noite desta sexta-feira (21). As mais de 450 integrantes vestiam azul e representaram o mar de Lia de Itamaracá, homenageada deste ano do bloco.
O grupo cujo nome significa “mãos femininas que tocam tambor para o rei Xangô” cantou e tocou para a compositora e cantora de ciranda brasileira, que nasceu na ilha metropolitana da capital de Pernambuco e de lá, se consagrou internacionalmente como a maior representante desse folguedo.
“É um reconhecimento de 500 anos, Lia está viva, mas quantas mulheres já foram e morreram no anonimato. Então, a gente tem que aproveitar nossa projeção e este movimento negro de agora para recontar esses 500 anos. Homenagear nossas mulheres negras vivas, bater cabeça para quem faz história num país tão racista e Lia faz histórias, ela e toda sua trajetória de vida são vitoriosas”, afirma Beth Beli, presidente, diretora artística, regente e uma das criadoras do bloco e instituição Ilú Obá De Min.

Nesses 16 anos de existência, símbolos como Rainha Nzinga, Leci Brandão, Raquel Trindade, Nega Duda, Carolina Maria de Jesus e Elza Soares já foram homenageados, esse ano a proposta é não só trazer um carnaval político, mas também de amor.
“Esse carnaval a gente vai navegar um pouco pelo mar, trazer nossas ancestrais e fazer uma grande ciranda, porque está precisando de muito amor”, destaca Beli na concentração do bloco na Praça da República.
Nessa travessia pelas ruas do centro, mestres e mestras tais como Tião Carvalho, Família Solano Trindade, Mestre Alcides, Toninho Macedo, Ya Sandra de Xadantã, compuseram a ala da cultura popular.
A mestra de capoeira angola Janja do grupo Nzinga foi uma delas e desta vez deixou de tocar alfaia, um dos instrumentos da bateria, para levar o estandarte do bloco em frente a marcha.
“Estar aqui significa o que nós precisamos fazer, mais do que nunca, que é ocupar as ruas. O Ilú Oba de Min é a organização que possibilita nós mulheres pensarmos essa ocupação de maneira criativa e contundente. É a primeira vez que eu estou na ala de frente e é uma emoção gigantesca porque adotar o tema das culturas populares é afirmar o lugar da cultura popular nesse contexto”.

Logo atrás, o corpo de dança composto não só por mulheres, mas também por homens, vestia, como já manda a tradição, representações dos 16 orixás das religiões de matriz africana. Ao som das cantigas do Xirê as ruas da capital paulistana viajavam pela história da cultura afro-brasileira e de Lia de Itamaracá, que pode, em pleno cortejo, reverenciar sua mãe Iemanjá.
Não à toa, a assessora Rosana da Silva, integrante do grupo há 5 anos, sente como se cada carnaval fosse o primeiro.
“Cada ano que passa eu percebo que é o coletivo que nós todas deveríamos estar, é um aprendizado novo, a cada ano a gente se fortalece mais. Aqui é onde a gente aprende a descobrir a nossa ancestralidade e nossa religiosidade.”
Lia chegou a descer do carro montado especialmente para o seu translado, e no meio dos tambores e danças pôde cumprimentar e abençoar seus irmãos e irmãs, griots da cultura popular, ao som de músicas compostas pelas integrantes especialmente para ela.
Mesmo já sendo reconhecida como Patrimônio Vivo de Pernambuco, recebido homenagens como a medalha nacional da Ordem do Mérito Cultural, a rainha da ciranda, como é conhecida, disse ao Brasil de Fato estar “maravilhada e muito feliz” com a homenagem do Ilu Obá de Min.
O sentimento de Lia estava nos olhos e nos acenos ao público que gritava entusiasmado ao ter honra de ver um dos símbolos da identidade brasileira. A alegria ficou completa quando o cortejo desembarcou no Largo do Paissandú, centro de São Paulo, e ao redor da menina de 76 anos se fez uma grande ciranda.
Mesmo com algumas tentativas de assalto e violência do lado de fora do cordão, que durante o trajeto não foi acompanhado pela segurança pública, a mestra agradeceu imensamente o convite e entoou a ciranda tradicional que dá seu nome artístico, além da música:
“Essa ciranda não é minha só,
É de todos nós,
A melodia principal quem tira
É a primeira voz
Pra se dançar ciranda
Juntamos mão com mão
Fazendo uma roda
Cantando essa canção”
Em seu discurso Lia ainda pediu amor e o fim da violência, como as mãos dadas da ciranda representam. E assim como o Ilú Obá de Min, ela trouxe ao carnaval de São Paulo, a partir da reverência a da história, a representatividade da Rainha da Ciranda.