Incidência de Geledés na Convenção Tributária da ONU

13/11/25
Por Gabriel Dantas

O apoio verbalizado em plenário por um representante do Estado brasileiro — reconhecendo propostas recebidas da sociedade civil —, para além do óbvio gesto democrático e republicano que exige participação social em tais processos, não foi um acaso. Foi fruto de um percurso que começamos antes mesmo de embarcar. E essa, na verdade, é a atuação que Geledés aprendeu e reproduz em todos os espaços multilaterais em que participa.

Desde o início, adotamos uma estratégia de diálogo estruturado com quem tem papel decisivo na formulação da posição brasileira. Em geral, isso significa o Itamaraty. Mas, por se tratar de uma convenção sobre cooperação tributária, o processo é liderado pelo Ministério da Fazenda, com apoio da Secretaria de Assuntos Internacionais e a liderança técnica da Secretaria da Receita Federal. Em vez de tratar essa especificidade como obstáculo, tomamos isso como oportunidade: mapear os nós institucionais, entender onde estão as alavancas e falar a linguagem de cada ator.

Nosso primeiro movimento foi procurar o Departamento de Política Econômica e Financeira do Itamaraty. Mais do que “pedir apoio”, fomos para ouvir e compreender como o Ministério das Relações Exteriores estava lendo o processo, quais eram as margens de manobra e como as discussões do texto caminhavam. E vale o registro de que, em uma sociedade que não ouve o que as mulheres negras têm a dizer, o Departamento, por meio do embaixador Alexandre Peña Ghisleni e sua equipe, nos recebeu de portas abertas e esteve atento às preocupações de Geledés.

Com base nisso, apresentamos as nossas preocupações e propostas: inserir no debate tributário internacional os marcadores de igualdade racial e de gênero de forma substantiva, não como ornamento retórico. O objetivo não era “acrescentar uma frase bonita”, mas abrir ganchos normativos para que a Convenção dialogue com a realidade concreta de um sistema fiscal e econômico atravessado por legados coloniais, racismo e sexismo.

Em seguida, dialogamos com a equipe da Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda que acompanha a negociação — em especial a Subsecretaria de Finanças Internacionais e Cooperação Econômica, chefiada por um diplomata de carreira, o Antônio Cottas. O encontro foi republicano e direto: explicamos por que progressividade, mobilização de recursos domésticos e redução de desigualdades precisam sair do plano declaratório e entrar no plano operativo do tratado; por que sistemas de proteção social importam para a arquitetura tributária; e como referências explícitas à equidade, igualdade de gênero e igualdade racial fortalecem a coerência entre a Convenção e os compromissos internacionais e nacionais do Brasil. Lembramos, inclusive, do compromisso voluntário com o ODS 18, no eixo da igualdade étnico-racial, como norte político e programático.

Importa lembrar que, do nosso lado, tem havido uma defesa consistente da emancipação econômica da população afrodescendente como condição para o usufruto pleno de direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Não há justiça racial sem revisão séria das engrenagens econômicas, financeiras e fiscais que comprimem capacidade contributiva e corroem oportunidades — especialmente para as mulheres negras. A lógica de tributar excessivamente o consumo e de maneira insuficiente a renda, especialmente dos super ricos, precisa ser enfrentada. Esse diagnóstico não é exclusivamente brasileiro, nem apenas da diáspora: muitos países africanos vivem sob o peso de passivos históricos e de mecanismos contemporâneos que perpetuam assimetrias, o que torna a cooperação tributária um terreno central para corrigir rumos.

Por isso também consideramos simbólico — ainda que não explicitado como tal — que o processo tenha sido encampado pelo Grupo Africano. Há, nesse gesto, uma dimensão de justiça histórica que atravessa o debate técnico. Trata-se de colocar no texto compromissos que enfrentem desigualdades persistentes e que resguardem espaço de política e investimento público para que países desenhem sistemas tributários coerentes com seus projetos de desenvolvimento.

A nossa proposta, traduzida em termos práticos, tem três eixos: (i) sair do enunciado genérico e dar operatividade a princípios como progressividade e mobilização de recursos domésticos; (ii) explicitar que combater desigualdades — inclusive por meio de sistemas de proteção social robustos — é parte intrínseca da justiça tributária e fiscal; e (iii) reconhecer que equidade, igualdade de gênero e igualdade racial não são “temas sociais” à parte, mas critérios estruturantes da justiça tributária e fiscal, com abertura para medidas reparatórias e restaurativas, quando apropriadas e conforme os marcos legais nacionais.

Quando o representante brasileiro, já em plenário, registrou que recebeu sugestões de atores da sociedade civil sobre a inclusão desses elementos no Artigo 9, vimos ali a confirmação de uma aposta: o Estado democrático pode e deve ser permeável à incidência qualificada da sociedade civil. Não porque “concorda conosco”, mas porque a coerência entre os compromissos assumidos e a letra da Convenção exige esse passo adiante.

Nada disso significa que a batalha esteja vencida. Estamos na terceira sessão de um processo que deve atravessar 2026 e 2027. Haverá idas e vindas, tensões entre “declaratório” e “operativo”. Mas há um avanço político concreto: a pauta da justiça fiscal com lentes racial e de gênero entrou na mesa com legitimidade, método e voz. E entrou sem nos reduzir ao lugar de vítimas — e sim como sujeitos propositores de um projeto de desenvolvimento socioeconômico robusto, inclusivo e sustentável.

Seguiremos, portanto, na mesma toada: diálogo técnico, pressão pública responsável e construção de convergência. A Convenção Tributária pode nascer como peça importante de uma agenda mundial de justiça reparatória para africanos e afrodescendentes — e isso passa, incontornavelmente, por revisar políticas fiscais e tributárias que hoje reproduzem desigualdades que juramos combater.

 Leia a fala do diplomata Antônio Cottas.

Obrigado, Senhor(a) Presidente. Como esta é minha primeira intervenção aqui, permita-me fazer alguns comentários gerais preliminares. A UNFITC, consideramos um esforço oportuno e necessário para fortalecer a arquitetura multilateral da tributação internacional no contexto de desafios crescentes. Temos mobilizado nossos melhores recursos e engajado nossos especialistas em tributação para garantir que este processo seja substantivo e eficaz, de modo que convidamos outros membros a investir os recursos apropriados para o sucesso desta Convenção, considerando as diferentes circunstâncias e capacidades dos membros. 

O Brasil também permanece comprometido em participar das negociações de maneira pragmática e cooperativa, buscando soluções equilibradas que reflitam as perspectivas e realidades tanto de países em desenvolvimento quanto de países desenvolvidos. Gostaríamos de enfatizar que maior detalhamento dos compromissos será crucial para o alcance dos objetivos desta Convenção. Estamos buscando um texto que seja equilibrado, mas que ao mesmo tempo apresente elementos suficientes para que nossas discussões sejam substantivas e para a efetividade de tais disposições. Precisamos de ambição. 

Precisamos dar mais corpo e substância a esses artigos e aos protocolos e compromissos como um todo. Especificamente em relação ao Artigo 9, entendemos que ele posiciona adequadamente a cooperação tributária internacional dentro do marco mais amplo do desenvolvimento sustentável, reconhecendo suas três dimensões e ressaltando a necessidade de equilíbrio e integração. Esse reconhecimento é positivo e reflete a crescente consciência de que a tributação é a principal ferramenta para financiamento e desenvolvimento. 

A disposição, no entanto, permanece em grande medida de natureza declaratória, apenas repetindo a linguagem dos termos de referência. O Brasil considera que elementos-chave relacionados ao desenvolvimento sustentável, como mobilização de recursos domésticos, progressividade e redução de desigualdades, inclusive por meio de investimento em sistemas de proteção social, precisam ser acrescentados para ampliar a compreensão do artigo e seu alinhamento aos objetivos da Convenção. 

Portanto, o Brasil sugere o seguinte parágrafo adicional. Número dois, as partes estatais reconhecem que fortalecer a mobilização de recursos domésticos e a tributação progressiva é central para o financiamento e o desenvolvimento sustentável, reduzindo desigualdades, fortalecendo sistemas de proteção social e apoiando o crescimento inclusivo. Nesse sentido, as partes estatais concordam que a cooperação deve buscar aprimorar a capacidade dos países de gerar receitas justas e previsíveis, ao mesmo tempo em que salvaguarda o espaço de formulação de políticas para desenhar sistemas tributários que respondam às suas estratégias e necessidades específicas de desenvolvimento. 

Além disso, quando estávamos prestes a vir para Nairóbi, recebemos algumas sugestões de atores da sociedade civil de que talvez pudéssemos incluir neste Artigo 9 referência ao avanço da equidade, da igualdade de gênero, da igualdade racial, ao combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e à intolerância em geral, reconhecendo que desigualdades históricas e estruturais persistentes continuam a moldar os sistemas fiscais e econômicos, globais e domésticos. Há também uma demanda para incluir referência a medidas reparatórias e restaurativas quando apropriado, de modo que possamos ampliar o alcance do artigo e aderir a pedidos e demandas que nos parecem, a nosso ver, justos e adequados. Embora não tenhamos textos específicos para recomendar neste momento, sugeriríamos que os membros aqui e a Secretaria prestem cuidadosa atenção a essas questões que estão sendo propostas. 

Obrigado.

https://webtv.un.org/en/asset/k1p/k1pgau6j71

Gabriel Dantas é assessor internacional de Geledés – Instituto da Mulher Negra

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