Indígenas, negras, trans, periféricas: mulheres contam desafios para sonhar

Muita coisa mudou desde o início da pandemia em março de 2020, e sonhar parece cada vez mais desimportante. Mas será que é? O Nós, mulheres da periferia perguntou para algumas mulheres de diferentes regiões do Brasil o que as faz apostar no amanhã.

O sonho ocupa um lugar estratégico na vida da cozinheira Priscila Rezende, 35: “é meu remédio, minha terapia”. Do bairro de Perus, região noroeste da capital paulista, ela diz entender que nas periferias muitas mulheres deixam de sonhar por falta de oportunidades, mas que é lá que deseja realizar seu maior sonho: ter seu próprio restaurante.

Criada pela avó Iracema, Priscila aprendeu a cozinhar aos oito anos. Nessa época, além do gosto pelas invenções de sua mais velha, gostava de ouvir as histórias da matriarca na beira do fogão. “Minha inspiração vem dessa mulher. A paixão pela culinária é minha herança ancestral”, diz.

Adepta de religião de matriz africana, Priscila ainda não possui um espaço físico, mas já tem o nome para o local: Tempero de Oyá, em referência à Orixá dos eventos climáticos, também conhecida como Iansã.

A cozinheira Priscila Rezende 35, moradora de Perus, região noroeste da capital paulista. Imagem: Arquivo pessoal

“Oyá é símbolo de mulher forte, guerreira, poderosa, sagrada, dona dos ventos raios e tempestades, Iansã venceu batalhas guerras e não desistiu de nada que almejou para sua vida”, conta, reforçando que o espaço também será uma homenagem à avó.

Entre os fatores que mais desafiam Priscila a alcançar seu desejo é a condição econômica e política do país. As mulheres empreendedoras negras foram o segmento mais afetado no início da pandemia, segundo pesquisa do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) em parceria com a FGV (Fundação Getúlio Vargas), divulgada em agosto de 2020. A pesquisa mostrou que 36% das empreendedoras negras tiveram a atividade interrompida temporariamente – 30% foi a proporção para empreendedores homens negros, 29% para as empresárias brancas e 24% para os homens brancos.

Enquanto o Tempero de Oyá não se materializa, Priscila planeja os detalhes do local. “Sonho em levar conhecimento através da culinária. Alimento não é só pra encher a barriga. O alimento é sagrado e cada preparo traz uma história”, diz.

“Se tem uma coisa que não deixo de fazer é sonhar, pois alimenta minha alma e acalma o coração”
Priscila Rezende, 35

Realidade paralela

“Ah, eu sonho por todo mundo”, diz a ex-auxiliar de limpeza Raimunda Boaventura, 58, moradora de Taboão da Serra, município da grande São Paulo. Mulher negra, ela diz que a dificuldade de conseguir um emprego é antiga. “Eu entreguei muito currículo, mas o descaso era tão grande”, conta.

A ex-auxiliar de limpeza Raimunda Boaventura, 58, moradora de Taboão da Serra, município da grande São Paulo.
Imagem: Semayat Oliveira

Durante a pandemia, a distribuição de cestas básicas pelas organizações locais foi fundamental para a sobrevivência de sua família. Mesmo com a inconstância nas prateleiras do armário da cozinha e a redução no consumo de carne e outros alimentos, Dona Raimunda, como costuma ser chamada, encontrou na escrita um jeito de criar uma realidade paralela. “Eu viajo e entro no mundo da história. É assim quando leio: dou risada sozinha, choro, canto. Faz parte de mim mesma, vem de dentro”, conta.

Dona Raimunda explica que os dias de chuva tendem a deixá-la mais deprimida. Seu quintal, como está hoje, fica com muita lama e, dentro de casa, as goteiras surgem. “Pra não ficar triste, vou escrever. Aí surgem coisas que dá pra sonhar”, enfatiza.

Nos sonhos, ela deseja uma casa “acabadinha, bonitinha, onde a claridade é como a luz de um belo dia de sol “, com sala, cozinha e três quartos. “Sendo um deles com um banheiro meu, claro”, diz aos risos.

Depois vem o desejo de publicar seus textos e ser reconhecida por seus escritos. “Sei que consigo fazer as pessoas sorrirem, viajarem e terem boas ideias”, reforça. Se comunicar os desejos para o mundo for um passo importante antes da realização, etapa concluída.

O sonho precisa da democracia

Débora Garcia, 38,é poeta e escritora e moradora da zona leste da cidade da cidade de São Paulo.
Imagem: Divulgação

Débora Garcia, 38, também é do mundo das letras. Moradora da zona leste da cidade da cidade de São Paulo, é poeta e escritora, e faz parte do Sarau das Pretas, coletivo de artistas negras que realizam apresentações poéticas e musicais, além de organizar publicações literárias.

Ela deseja viver exclusivamente de seu trabalho como escritora, o que não é possível hoje em dia, pois ainda precisa conciliar a rotina das atividades culturais com o trabalho como assistente social para arcar com as contas básicas da casa. Não à toa, ela sonha com um futuro em que os artistas sejam mais valorizados, fato que, como ela mesma diz, está bem distante dada a falta de apoio do governo.

“Meu maior sonho hoje é que a gente volte a viver num governo democrático, de fato. A gente não consegue fazer planos, né? Não sabemos como estará amanhã”
Débora Garcia, poetisa

Até agora ela já realizou dois grandes sonhos. Um deles foi viajar para Moçambique e conhecer um dos países do continente africano. Antes disso, se formou assistente social pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), profissão que traz seu principal sustento.

“Foi algo que eu lutei e me dediquei de corpo, alma e coração durante três anos até conseguir [passar no vestibular]. Tenho a convicção de que a possibilidade de me formar foi um divisor de águas na minha vida”, explica.

O sonho da universidade não foi algo particular. Dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) de 2020, mostraram que, entre 2009 e 2015, houve um crescimento de 25% de pretos e pardos no ensino superior.

Sonhar é “esperançar”

Mais de 817 mil pessoas se autodeclaram indígenas no Brasil, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Kunã Yporã, 38, é uma delas. Também conhecida como Raquel Aguiar Tremembé, da Articulação da Teia de Povos de Comunidades Tradicionais do Maranhão, ela trata o sonhar como um “direito” e uma “forma de resistência”.

Kunã Yporã, 38, é conhecida como Raquel Aguiar Tremembé, e integra a Articulação da Teia de Povos de Comunidades Tradicionais do Maranhão.
Imagem: Arquivo pessoal

Não à toa, quando fala sobre sonhos, a coletividade para Kunã se sobressai. Entre seus maiores desejos está o reconhecimento e homologação de seu território, a comunidade indígena Tremembé do Engenho, no Maranhão. “Essa luta só existe porque sonhamos e acreditamos nessas conquistas em prol do bem viver coletivo. Eu sonho alto”, diz.

Aos poucos, alguns sonhos pessoais vão sendo alcançados. O maior deles, ser mãe, chegou há pouco tempo em sua vida. “Aparentemente seria algo impossível, mas, após minha persistência, eu consegui. Superei esse desafio e hoje tenho um casal maravilhoso”, comemora, relembrado os diagnósticos que de não poderia ter filhos.

Na lista de desejos de Kunã também está a vontade de concluir o curso de especialização em Educação Indígena e o fortalecimento na militância diária pelo direito à terra.

“Nós, povos indígenas, somos um dos segmentos mais atacados e violentados historicamente. Muitos dos nossos ancestrais deram a vida pelos nossos direitos. Portanto, é nosso dever carregar a resistência em nossas veias e propagá-la de geração para geração”
Kunã Yporã, 38, da Articulação da Teia de Povos de Comunidades Tradicionais do Maranhão

Sonho como antídoto

A ativista e publicitária Neon Cunha.
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Em uma publicação feita em suas redes em maio de 2021, a ativista Neon Cunha compartilhou a frase “sonhar é o único antídoto para o medo”. Sua própria trajetória é o resumo dessa mensagem. Em 2016, a ativista pediu à Justiça o direito à morte assistida caso não pudesse mudar de nome e gênero. Além disso, reivindicou o seu direito de não ser “patologizada”. Isso porque, em 1990, a transexualidade foi considerada um transtorno mental, o que só mudou em 2019. Foi com esta firmeza que ela se transformou na primeira mulher trans a mudar de nome sem diagnóstico de patologia no Brasil.

Entre os seus trabalhos atuais está a Casa Neon Cunha, que promove a inclusão, diversidade e atende a população LGBTQIA+ em São Bernardo do Campo e no ABC Paulista, região metropolitana de São Paulo. Hoje, aos 51 anos, o que ela deseja é que, com o tempo, as mulheres e homens transexuais mais jovens encontrem uma realidade segura para suas vidas e sonhos.

Seu desejo parte do diagnóstico da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), que mostrou que a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos. Além disso, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo.

Como sonhar diante desses números? Neon insiste: “Não há espaço pro sonho, mas, ao mesmo tempo, não há tempo para desperdiçar com a ausência do sonho. É preciso alimentar os sonhos, nem que sejam os sonhos das jovens. É urgente que elas possam sonhar”.

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