Infância velha

Tenho cada vez mais certeza de que a essência do meu eu nasceu e se consolidou nos dez primeiros anos da minha vida. Talvez isso aconteça com a maioria. Foi na minha primeira década que tive contatos fundamentais com exemplos, os bons e os ruins. Crianças são observadores profissionais. Também tenho a sensação que foram anos com régua quase infinita. Ao pensar na minha última década, os acontecimentos passam como corredores da São Silvestre, já os primeiros dez anos assaltam minha memória com duradouras texturas, cores, frases. A risada de um tio, um beijo de boa noite da minha mãe, um passeio pela orla com meu pai. 

Por Fernanda Pompeu no Yahoo

Antes de me tornar uma mulher madura, sempre ouvia os mais idosos relatarem a “volta da infância” à medida que envelheciam. De fato, é uma surpresa escutar os velhos narrando seus primeiros tempos. Minha mãe, cuja memória recente foi para o espaço, consegue descrever a casa em que viveu a infância com riqueza de detalhes digna de um romance de Honoré de Balzac. Dona Nete, aos oitenta e um anos, descreve o carrilhão na sala de estar, o grande espelho em frente à mesa, as frutas do quintal. De tão rica a narrativa, ouço os sons do carrilhão, vejo meus bisavós (que não conheci) refletidos no espelho, sinto o sabor de cada fruta.

Água que rola, agora sou eu quem anda lembrado com intensidade  eventos da infância: a enchente de 1966 no Rio de Janeiro. O bonde batizado de Rita Pavone – por conta da buzina aguda. Os olhos enormes da Marita, mãe do meu amigo Dunga. Nem necessito esforço para ver jaqueiras no caminho para a Barra da Tijuca, a professora má me humilhando na frente da turma, a vizinha boa, Dona Ely, me oferecendo aipim com mel. Essas imagens vêm em alta definição e  som em dolby digital. Não cheiram a naftalina. Seu odor é da gota fresquinha ao tocar o asfalto escaldante.

Domingo passado, andei pelas bandas da Praça da República, aqui de Sampa. Foi então que vi a cena: meninas e meninos – desses que chamamos de rua – se esbaldando num laguinho da praça. Termômetros a mais de 30 graus. Daí chegaram dois guardas municipais acabando com a festa. Mas, é claro, as autoridades se afastaram e a garotada pulou na água novamente. Típico da infância: levar a sério a brincadeira. Recordei de mim mesma tirando o chiclete da boca, enfiando-o no pote de açúcar na cozinha de mamãe, voltando a pôr na boca. Para os adultos, uma nojeira. Para a menina, só louco prazer.

+ sobre o tema

Como dialogar com quem discorda de você?

Direitos humanos pressupõem consensos sobre como conviver em sociedades...

“Oportunista”, diz Jean Wyllys após Cunha estender cota aérea a deputado gay

Jean Wyllys: Cunha é “cínico e oportunista” ao estender...

Haddad: Serra deve um pedido de desculpas à periferia, aos pobres

Visivelmente cansado após uma campanha intensa no primeiro turno...

Lula apela ao líder do Irã para enviar condenada à morte por apedrejamento ao Brasil

Por: DIMITRI DO VALLE O presidente Luiz Inácio Lula...

para lembrar

Conteúdos alados

Por Fernanda Pompeu O mais divertido de ler oráculos e...

Me compadeço

Respeitar o medo do outro foi uma conquista da...

Futebol de letra

Gosto de futebol bem jogado. Futebol simples que resulta...

Cauby, Cauby!

A cena é tão boa que dispensa roteirista. Mamãe...

Fátima Oliveira dos 1000 Legados

Temos trabalho e prazer para muitas gerações Por Fernanda Pompeu em seu blog  Em 2005, tive a honra e o prazer de entrevistar a médica Fátima Oliveira (1953-2017)....

A vida é raçuda

Alvorada Acordar cedo é fonte de sofrimento para Celina Macunis. Toda vez que é obrigada a sair da cama antes das 10, vivencia a espantosa...

Luiza Bairros (1953-2016)

Morreu no 12 de julho 2016 a grande Luiza Bairros. Ela foi de tudo: ativista, professora, ministra. Gaúcha e baiana. O texto que segue...
-+=