Infelizmente, é o que parece

Em novo artigo, Dennis de Oliveira alerta: “Bolsonaro é o que parece. E as mulheres perceberam isto ao tomar a frente do grande movimento que vai as ruas no dia 29. Mais perigoso que Bolsonaro, é relativizá-lo”

Por Dennis de Oliveira no Revista Fórum

 

O meu colega professor Pablo Ortellado tem um histórico de contribuição para o debate democrático na sociedade, particularmente na discussão sobre o papel das redes sociais, da emergência de novos movimentos sociais e de suas agendas. Entretanto, não posso deixar de manifestar minha discordância com as ideias que ele apresenta no artigo intitulado Não é o que parece, publicado na edição de 25/09/2018 da Folha de S.Paulo.

O centro da argumentação do professor Ortellado é que Bolsonaro não pode ser classificado como um “fascista” ou “nazista” e sim como um “soldado” do que ele chama de “guerras culturais”. Por “guerras culturais”, Ortellado entende como este momento em que há um conflito entre as agendas da diversidade social e cultural com uma reação conservadora, que reafirma as concepções tradicionais relativas a comportamentos, expressões artísticas e culturais, entre outros.

A primeira divergência que tenho com esta concepção de Ortellado é justamente o conceito de “guerras culturais”. O que motiva a mobilização dos setores que apresentam a agenda da diversidade (movimentos negros, feministas, LGBT) não é apenas contra uma normatividade cis-hétero-branca-masculina (embora ela também esteja presente). Mas, principalmente, o fato de que esta normatividade legitima desigualdades sociais e políticas que afetam estes grupos.

Basta verificar a sub-representação feminina e negra nas esferas de poder, tema repisado por grande parte das lideranças destes movimentos. Nestas eleições, inclusive, candidatos e candidatas negras a cargos proporcionais reclamaram da distribuição desigual de recursos do fundo eleitoral para as suas campanhas.

Esta pressão dos movimentos fez com que quatro candidatos presidenciais – Fernando Haddad, Ciro Gomes, Geraldo Alckmin e Guilherme Boulos – colocassem mulheres como vices nas suas chapas. Duas mulheres negras são candidatas a presidente – Vera Lúcia (PSTU) e Marina Silva (Rede). Também fruto da pressão dos movimentos sociais, existe a cota de gênero nas listas partidárias. Apesar disto, a sub-representação feminina ainda permanece.

E tal sub-representação é a expressão do caráter patriarcal e racista da sociedade brasileira, herança dos períodos de escravismo. E, para quem acha que o escravismo é coisa de passado, lembramos que dos 518 anos de existência do Brasil, quase 350 anos (2/3) foram sob a ordem escravocrata. E a abolição de 13 de maio de 1888 não foi uma ruptura com a ordem anterior, conforme mostram pensadores como Clóvis Moura e Florestan Fernandes.

O caráter patriarcal e o racismo, por sua vez, legitimam as desigualdades sociais, base do tipo de capitalismo dependente brasileiro. Por isto, uma questão comumente colocada no debate eleitoral em relação a gênero é a desigualdade salarial desfavorável à mulher – situação que o candidato do PSL já se manifestou claramente a favor desta desigualdade. E o mesmo se aplica à postura do candidato da extrema direita contra as ações afirmativas. O resultado prático do seu discurso de intolerância radical é a manutenção de clivagens raciais históricas no Brasil.

Diante disto, o que temos é a expressão radical da defesa de privilégios de setores que, historicamente, dominaram o cenário político, social e econômico do país e que, para tanto, necessitam da disseminação de narrativas de inferioridade essencializada de setores que são vítimas desta opressão: é nesta perspectiva que o racismo e o machismo se encaixam. E como a sustentação destas narrativas se centram em “senso comum” ou mesmo em narrativas que já foram desmascaradas historicamente (como, por exemplo, a essencialidade da classificação “racial” humana ou ainda as proposições da segunda onda do feminismo, que coloca gênero como uma categoria socialmente construída), ele se direciona a um anti-intelectualismo, mas não como forma de “questionar privilégios”, como afirma Ortellado, mas para reafirmar privilégios.

Outra divergência com o artigo do professor é quanto ao uso do termo “guerras”. Guerra pressupõe uma condição de conflito entre polos em uma mesma instância e em situações relativamente equivalentes. Os movimentos sociais que agendam a diversidade atuam no campo da esfera pública. Reivindicam direitos ou, como afirma Nancy Fraser, atuam nos 3Rs – Reconhecimento, Representação e Redistribuição. Enfim, o que sintetiza estes movimentos é o alargamento do arquétipo de cidadão. Mulheres, negros, LGBTs e suas pautas devem ser reconhecidos como membros do contrato social, da esfera pública. Qual tem sido a postura do candidato do PSL? Não é apenas negar estas pautas, mas negar o seu reconhecimento. E como mulheres e negros são a maioria da população brasileira, o candidato de extrema direita simplesmente age em dissonância dos princípios democráticos: não só agride estes sujeitos (lembrem-se das agressões à deputada federal Maria do Rosário e das atitudes violentas dos seus apoiadores contra opositores na campanha) como questiona a própria ordem democrática quando seu candidato a vice propõe que se faça uma Constituição sem pessoas eleitas. Ao propor “metralhar a petralhada”, no dia 2 de setembro no Acre, ele mostra que não está disposto a enfrentar o debate democrático.

Portanto, não estamos diante de um “soldado das guerras culturais”. E, sim, diante de um inimigo público da democracia. Um que defende que se mantenham os privilégios historicamente assentados sobre o racismo e o machismo, por meio da supressão da democracia e imposição da violência como prática. É um artífice do extermínio dos oprimidos.

Finalmente, quanto a não caracterização de Bolsonaro como fascista, o professor Ortellado tem razão quando diz que a proposta política do candidato do PSL se difere do nacionalismo que caracterizou as vertentes nazifascistas no período da II Guerra. Porém, fascismo não se reduz a um discurso nacionalista. O fascismo é um arranjo institucional perpetrado por setores das classes dominantes no sentido de garantir plenamente os seus interesses; conter, brecar qualquer avanço dos segmentos subalternizados e se expressar por uma narrativa totalizante e integrista.

No caso de um país de capitalismo dependente, como o Brasil, as classes dominantes tendem a preferir uma associação subalterna à burguesia transnacional e, por conta disto, a bandeira nacionalista tende a se colocar no campo da esquerda. Os golpes militares na América Latina nos anos 1960 e 1970 foram impostos a partir dos interesses estadunidenses.

O candidato Bolsonaro preenche estes requisitos: propõe um arranjo institucional que protege os privilégios (as propostas econômicas de Paulo Guedes mostram claramente isto); quer conter os movimentos sociais defendendo a intensificação da repressão e se expressa por um discurso totalizante e integrista demonstrado, por exemplo, com sua proposta de militarização da educação.

Infelizmente, Bolsonaro é o que parece. E as mulheres perceberam isto ao tomar a frente do grande movimento que vai as ruas no dia 29. Mais perigoso que Bolsonaro, é relativizá-lo.

 

Foto: Marcos Santos/USP

Dennis de Oliveira
Jornalista e professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).

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