Inquietações e utopias escritas

Entre os medos, ainda sinto o de escrever e falar. Creio que é um meio de participação política, passos de uma longa jornada em busca de reanimar a nossa luta, então escrevo. A memória que nos mantém em resistência, vivas e vivos, é também a que não nos permite esquecer as dores. Considerando subjetividades pessoais e conexões coletivas, segue o registro de Utopias, um modo esperançoso de expressar nossa raiva nessa sociedade em que as mulheres negras são as mais silenciadas!   

Entre as muitas tarefas e desafios, estou por aí e aqui, observando vivências de trabalhadoras e trabalhadores, interagindo por meio da escuta e escrita de seus relatos. Quero continuar com a nossa energia de inquietação, nessa esperança de que sejam nossos atos maiores que os medos, traumas, dores e silêncios. 

Minha escuta e oralidade já foi vivenciada de vários modos nos vários instrumentos de comunicação como rádio, televisão, jornais, pesquisas, artigos, mas os meus aprendizados se ampliam mesmo em escutar/ouvir/observar e denunciar. Desconheço a trajetória dos meus ancestrais, mas respeito e agradeço pela que estou seguindo. Creio que estamos nos conectando cada vez mais profundamente. 

Vejo que é preciso reafirmar-nos como Pessoas Negras. Não tenho como melhor dizer o porquê e o como seguimos existindo entre tantas intervenções genocidas. 

Não somos nós que vamos contar todas as nossas estratégias de resistência. No entanto, temos necessidade de manter o propósito afirmativo da presença da negritude que resiste. Faremos isso, aprendendo com as trajetórias, desconstruindo pensamentos e usando nossas expressões para afirmar nossas Identidades.

Existem muitas especificidades em nossas identidades políticas, que se constroem no dia a dia, pensando, por exemplo, como a cultura e a autoestima da Negritude sempre foram questionadas, negadas, mas permanecem vivas, estão ali, para que entre nós sejam fortalecidas. 

Não é tudo, mas é base, saber quem somos e por que querem nos destruir. Sei que não conhecemos de onde viemos, no entanto sabemos onde queremos chegar e temos muito respeito pelas nossas diversidades. Permanecemos presentes, fortalecendo a memória. O reconhecimento de nossa Identidade é ato político na batalha contra o genocídio, é um ciclo que não pode ser quebrado – conhecer, resistir e existir.

O Genocídio das Pessoas Negras é o objetivo do racismo. Quem pratica o racismo não sente as dores e os traumas. Sente quem manifesta questionamentos prevalentes diante do não aceitar nossa existência, identidades e modos de vida. Por exemplo, historicamente a negritude é a maioria populacional e não se aceita que possamos estar em crescentes movimentos, desconstruindo as máscaras do patriarcado, do colonialismo, da escravidão e do capitalismo. Atos genocidas contra os Povos Negros simultaneamente expandidos com o desenvolvimento do sistema capitalista, agravando suas expectativas de nós como uma “minoria”. Estamos em minoria nos espaços de construção e decisão das políticas, entre outros espaços dados como de Poder. 

O que mais vemos destacado é a nossa projeção nos índices negativos, presentes nas prisões, nos casos de trabalho escravo, no tráfico, ausentes das escolas e faculdades, dos cargos de decisão e outros, questionados se queremos fazer acordos ou se temos provas de que realmente sofremos racismo e discriminação, e chamados de exagerados ao considerar que é genocídio. Recebemos tantos questionamentos e condicionalidades que muitas vezes desistimos de denunciar. Crimes incorporados, vivenciados por nós todo o tempo.

Talvez essa seja a razão pela qual nos violentam, questionando tanto nossa Identidade, quando afirmamos o que somos. Infelizmente ainda querem analisar no papel para crer, separando-nos como dados e consequências, visualizados como casos. Algumas pessoas só se tornam importantes após a morte ou, quando chegamos onde estão, atribuem isso à sorte. 

Vejo que a democracia racial e o racismo estrutural e institucionalizado existem de acordo com quem opta. Talvez não seja a melhor comparação, é como o uso das máscaras na pandemia: elas foram usadas quando era conveniente para quem quis usar, mesmo diante de tantos decretos e recomendações. Muitos aceitaram, porém, várias pessoas deixaram de usar. Não temos como provar quantas pessoas foram vítimas e quantas foram protegidas pelo fato de existir a máscara, o mesmo ocorre com a democracia racial. Ela vem sendo usada por quem opta no seu momento por servir-se dela. O racismo está tão impregnado no inconsciente das pessoas que as atitudes acontecem, mesmo quando estão verbalizando não ser racistas. A permanência das desigualdades de classe e gênero não podem ser discutidas sem considerar a raça, pois as vítimas e os sobreviventes das violências e negações são, em sua maioria, negras e negros. Como nos relacionamos e como somos relacionados depende de quem responde, de quem está atendendo naquele momento. 

O racismo parte de quem se considera superior, com poder hierárquico aliado ao seu querer ser melhor e assim pratica violências. O racismo é, segundo Fanon, “a opressão sistematizada de um povo”. A não aceitação da nossa presença negra como ser humano é rotina. Consciente e inconsciente não reconhecem que somos seres humanos – as pessoas nos desumanizam e nos tornam o objetivo do genocídio. 

Quantos pensamentos e atitudes nos colocam e qualificam como indignas, devido a posturas de classe, sexismo, capacitismos, entre outros. Destacamos aqui a opressão e brutalidade que se intensifica com as mulheres negras e com as mulheres negras pobres, mulheres negras pobres trans, assim como com as mulheres negras pobres e com deficiências. Como indica Chimamanda Adichie: “o problema da questão de gênero é que ela prescreve como devemos ser em vez de reconhecer como somos. Seríamos bem mais felizes, mais livres para sermos quem realmente somos, se não tivéssemos o peso das expectativas do gênero”.

Em novembro, só se fala em Zumbi dos Palmares; esquecemos a Dandara e as muitas outras mulheres que estavam lá na luta pelos territórios quilombolas. Desafiar-nos a registrar a memória da resistência negra, as formas de luta e de organização, a cultura, as mulheres em luta, e não ter respostas únicas para o nosso sonho de permanecer vivos continuam sendo atos políticos de reconhecimento das nossas Identidades. 


Brígida, mulher, negra, mãe de Brithielly e Brenno Yan, assistente social, agente pastoral, referenciada no atendimento de pessoas submetidas ao trabalho escravo contemporâneo. Integra a Primeira Edição do Programa Marielle Franco do Fundo Baobá para Equidade Racial e a nossa Coletiva Negras que Movem, com escritos disponíveis aqui no Portal Geledés.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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