Racista ontem, hoje e sempre? A branquitude e o racismo dos voozinhos e vozinhas brasileiros

A velhice pode ser usada como passaporte de tolerância em relação ao exercício de práticas racistas ou manifestações de preconceitos? 

É uma indagação(*) aparentemente absurda, mas que se justifica quando se verifica nos últimos tempos, os inúmeros casos no Brasil envolvendo senhores e senhoras de idade(**), para além de seus 60, 70 anos que destilam livremente, sem pudores, seus pensamentos nada humanistas. Muitos destes com aquela aparência de “voozinhos/vozinhas” as quais somos condicionados a relacionar com ludicidade, inocência e amorosidade. Pessoas que, em nosso imaginário coletivo, jamais fariam algum tipo de mal a qualquer outro ser humano. Um conjunto de atos racistas cada vez mais comuns, como se percebe através da circulação de vídeos e postagens pelas redes sociais, além de inúmeras reportagens, oriundos desse segmento populacional. Jogando luz a um traço de nossa sociedade, que muito nos revela sobre as nuances e particularidades que nos caracterizam estruturalmente e historicamente como um país discriminatório e racista.

Em outras palavras, vivemos numa sociedade em que ser idoso lhe dá salvo conduto para expressar-explicitar os seus preconceitos, em geral sempre entonando o discurso de “liberdade de expressão”, é “a minha opinião”, ou os famigerados “no meu tempo isso não era racismo”, “mas sempre falei (brinquei) assim e nada acontecia”. Numa postura como que salvaguardando a memória, os valores de um modo de vida que consideram sobre risco e que por isso podem agir em sua legitima defesa, utilizando de todas as suas armas possíveis, inclusive sendo, enfatizamos, publicamente racistas.

É a prevalência de uma negação de todo um conjunto de conhecimento que destaca, analisa e combate os fatos de que a sociedade brasileira é e sempre foi racista, desde seus primeiros momentos coloniais. De não se aceitar ou reconhecer as historicidades e saberes negros – ou indígenas – que colocam em xeque e desafiam nosso status quo dominante elitista e preconceituoso e o ideário ilusório de que somos uma sociedade socialmente harmoniosa e racialmente democrática. É uma presunção de se estar acima do bem e do mal, que ´para essas pessoas não se faz necessário nem debater suas concepções, pois a “sua opinião” vale mais do que qualquer outra “coisa”. Sendo “coisa” aqui utilizado não por acaso, mas sim para destacar o processo de coisificação que estes destinam à aqueles que por eles são considerados e tratados enquanto inferiores, eternamente subalternizados por sua característica étnico-racial.

Assumem uma postura bélica, agressiva e depreciativa, de total desprezo e ojeriza, quando vociferam seu ódio – digital ou presencialmente – em suas práxis de taxar enquanto inumanos e sem valor os que não se adequam aos seus padrões racialmente constituídos de normatividade social. Não sendo incomum desdenhar e desprezar as reações em contrário. É a branquitude que desde sempre ensina aos seus a certeza da impunidade de seus atos, ainda mais em uma época em que tais expressões de ódio e intolerância se fazem balizadas e apoiadas por grande parte de nossa população, inclusive por setores intelectuais, políticos e das grandes mídias.

Esses “racistas da melhor idade”, quando confrontados, tem uma rede de suporte, de apoio que os ‘perdoam’ por suas ações, sempre evocando a sua condição de pessoas idosas, de “outro tempo”, de “outra época”, que devem ser entendidos e compreendidos por esse recorte, por esse olhar contemplativo. E nunca, ou dificilmente, esse mesmo olhar e parcimônia é destinado aos alvos da intolerância perpetrados pelos voozinhos(a)s racistas.

As dores, os medos e a solidão e dos vitimados são ignorados ou relegados, pois empatia e solidariedade no Brasil não é destinada a “qualquer um”, mas reservado para aqueles que se escoram nos privilégios de raça e classe típicos das nossas sociabilidades. Uma realidade que se faz raiar toda vez que manifestações antirracistas ou pró negritudes, em oposição a experiências de discriminação, são classificadas como desproporcionais ou desmedidas. Em que as pessoas racialmente injuriadas ou discriminadas não podem “passar dos limites” em suas reações, não podem “aflorar” as suas emoções, pois precisam compreender e relevar a condição de idosos de seus detratores. Como se houvesse um manual de boas práticas, de boas maneiras para se comportar devidamente e educadamente perante as pessoas que lhe fizeram o mal, que lhe fizeram sofrer. Mas quem é que define essas regras não escritas, quem baliza como se dão esses comportamentos? Creio que já sabemos a resposta… 

Na lógica “não racista e socialmente harmoniosa” da sociedade brasileira, não cabe ao oprimido, não cabe a vítima expressar livremente e como lhe convir suas dores, revoltas e indignações, mas sim aos seus algozes. E quanto mais idoso, mais a licença de exercício racista se faz por aumentar. O que acaba criando uma realidade em que se releva o racismo em si, buscando compreendê-lo no sentido de sua convivência e respeito, em vez de se buscar combater o mesmo de todas as maneiras e formas possíveis. Pois não pode haver tolerância ou apaziguamento em relação ao racismo, ou qualquer outra forma/ato de discriminação ou preconceito, não interessando quem o praticou, pois do contrário estamos normalizando o inaceitável. Mas esse fundamento civilizatório primário, parece não ter vez no Brasil, terra sempre benevolente e honrosa para os opressores e dominantes, mas sempre cruel e impiedosa com relação aos explorados e dominados.

Uma sociedade que gera empatia pelo racista e não por suas vítimas já se revela doente e sórdida. Nesse sentido, com o corpo negro sempre subalternizado, marcado e estigmatizado pelo olhar torpe, enviesado e estereotipado de viés eurocêntrico, sendo a mulher negra sempre rotulada pela irracionalidade e o homem negro pela periculosidade. Como aqueles que não sabem se comportar em espaços de convivência coletiva e de poder, que por isso reagem naturalmente de maneira extremada e desmedida quando se consideram atacados/discriminados, para que assim possamos ser rotulados de vitimistas, racistas reversos. O que ao final atesta nosso padrão social hegemônico, em que pessoas negras, não são vistas nunca como seres humanos, mas sim, sempre, enquanto corpos coisificados, sem particularidades, subjetividades e direitos… Coisas sem alma ou vontades… 

O Brasil é tão cruel em suas contradições e privilégios, que o racista é visto e compreendido em sua humanidade, mesmo perpetrando suas ações desprezíveis, por toda a sua vida. Enquanto, o negro não tem sua humanidade reconhecida, nem quando é comprovadamente vítima de nossas mazelas estruturais, nem quando é vítima de racismo pois é sempre condicionado, direcionado a perdoar quem lhe fez mal, a sempre pensar e compreender o mundo pelos olhos de quem lhe oprime, pelas perspectivas e normativas de nossa branquitude e nunca por suas próprias premissas.

E “ai” se ousar não seguir esse script, pois será aquele que não sabe o seu lugar, o insolente, o intolerante que por “razões pessoais” ousa ir contra “nossa” cordialidade social, ao não perdoar as ações racistas de nossos bonzinhos anciões.

Querer justiça e combater o racismo? Desde que de acordo com as regras e sentidos dos que promulgam o racismo, fora isso é querer combater intolerância com intolerância, é ser tão preconceituoso quanto a quem lhe gerou tal mal, mas com o adendo que você se negou a perdoar tal ato, preferindo dar continuidade a tal situação… Essa compreensão, hipócrita e canalha, que busca equalizar e equipara as ações-reações entre agressor e vítima, entre racista e o discriminado, ao final imputando todas os males sobre os ombros de quem não pode ser culpabilizado pelas agruras que acaba por sofrer é o paraíso geriátrico dos racistas! Vemos, portanto, a cristalização de um novo fenômeno social, a da salvaguarda do racista de terceira idade proferir e realizar suas barbaridades, pois sua faixa etária lhe dá salvo conduto para tal e ainda combate e condena quem se opor contra isso, ao final, ainda, o transformando na verdadeira vítima de todo esse processo. 

No Brasil se pode ser um racista desde sempre, passando pela juventude, vida adulta, maturidade e velhice, pois sabe que quando preciso o sistema não falha em lhe oferecer salvaguarda para apaziguar possíveis males e relativizar os seus erros. Enquanto aos corpos negros, como o meu, se faz ratificar cotidianamente o seu nada servir ou valer, a não ser receber, sem retrucar, toda a violência sistêmica de nossa sociedade. Afinal de contas, branquitude serve, dentre outras coisas, para isso também, o de se perdoar e compadecer aos racistas, mas de ser impiedosa e inescrupulosa com as suas vítimas!


Nota:

(*) Reflexões desenvolvidas a partir de postagem “O mito do ‘Velho Branco Bonzinho’ e a condescendência com o racismo na velhice.” de Thaíse Mendes Farias, https://www.facebook.com/658022136/posts/10160086342427137/, ao qual me solidarizo e expresso o meu mais profundo respeito. 

(**) Exemplos de casos de racismo praticados por idosos a pelo menos nos últimos dois anos:

CARLETO, Valdir. Funcionários de loja homenageiam gerente humilhado por casal de idosos racistas. In: https://www.clickguarulhos.com.br/2020/11/18/funcionarios-de-loja-homenageiam-gerente-humilhado-por-casal-de-idosos-racistas/, acessado em 12/11/2021.

MARRA, Pedro. Mulher presa por injúria racial contra idoso se recusou a pedir desculpas. https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2021/07/4940633-mulher-presa-por-injuria-racial-contra-idoso-se-recusou-a-pedir-desculpas.html, acessado em 12/11/2021.

Diarista denuncia moradora de condomínio por crime de injúria em Uberaba. In: https://g1.globo.com/mg/triangulo-mineiro/noticia/2021/08/14/diarista-denuncia-moradora-de-condominio-por-crime-de-injuria-em-uberaba.ghtml, acessado em 12/11/2021.

Idosa é acusada de racismo após evitar enfermeiro negro em vacinação. In: https://istoe.com.br/idosa-e-acusada-de-racismo-apos-evitar-enfermeiro-negro-em-vacinacao/, acessado em 12/11/2021.

Idosa é conduzida à delegacia após suspeita de ofensa a cabelo de funcionário de farmácia em Uberaba. In: https://g1.globo.com/mg/triangulo-mineiro/noticia/2021/04/14/idosa-e-conduzida-a-delegacia-apos-suspeita-de-ofensa-a-cabelo-de-funcionario-de-farmacia-em-uberaba.ghtml, 12/11/2021.

Idoso chama mulher de “macaca” em ponto de ônibus e é preso em BH. In:  https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2021/08/05/interna_gerais,1293328/idoso-chama-mulher-de-macaca-em-ponto-de-onibus-e-e-preso-em-bh.shtml, acessado em 12/11/2021.


Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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