Intocáveis, Spike Lee e o racismo dos estereótipos

por Jeanne Callegari

Era pra ser um filme emocionante, engraçado, sensível. Foi o que me disseram. E de certa forma era. O que ficou, porém, foi outra coisa. Uma ponta de dúvida, uma ponta de tristeza para a invisibilidade que algumas questões ainda têm.

O filme: Intocáveis. Comédia francesa que trata da amizade entre um milionário tetraplégico e um jovem negro, que é contratado como seu cuidador. Driss é um jovem que acaba de sair da prisão por tentativa de assalto. Ele vai a uma entrevista de emprego na mansão do milionário Philippe, não porque realmente acredite que pode conseguir a vaga, mas porque a assinatura dizendo que compareceu é necessária para que receba o seguro-desemprego. Porém o tetraplégico Philippe gosta do rapaz, que não o trata com condescendência e paternalismo. Decide contratá-lo, apesar dos protestos da família. E os dois se tornam amigos.

Cena do filme francês Intocáveis (Intouchables, 2011).

Há, no filme, momentos belos. Há cenas engraçadas, tocantes. A história, em si, não é o problema, até por ser baseada numa história real, inspirada no livro escrito pelo verdadeiro Philippe. Porém – e há sempre um porém: por que insistimos em contar sempre as mesmas histórias sobre as relações entre brancos e negros? Por que os mesmos estereótipos?

O negro não-versado na cultura clássica e canônica, porém cool, estiloso, “street smart”. O branco fã de música erudita que se deixa levar pela alegria e espontaneidade do negro. O negro que não quer saber de trabalhar e está saindo da cadeia. O branco milionário, que do alto de sua magnanimidade decide “dar uma chance” ao negro. O negro ignorante, meio bobão, que não sabe nem mesmo aplicar um xampu corretamente. O branco inteligente, que é tocado pelo bom coração do negro. O negro profundamente agradecido pela chance de poder usar roupas bacanas, de dirigir carros caros, de ter melhores oportunidades, enfim, por conta da benevolência do branco. O branco feliz por ter feito algo de bom para o mundo, consciência apaziguada, e por se sentir mais rebelde e transgressor que os outros brancos.

A associação com o branco confere respeitabilidade ao negro. A associação com o negro confere estilo e aventura ao branco.

Nada de errado em uma única história ser assim. Mas com uma visão de conjunto, é preciso pensar: por que a mesma, sempre?

Os mesmos tipos

Nos anos 1970, o pesquisador americano Donald Bogle escreveu o livro Toms, Coons, Mulattoes, Mammies e Bucks – An Interpretative History of Blacks in American Films, em que disseca os cinco tipos de negros que aparecem no cinema. Ele fala do cinema americano, mas não é difícil reconhecer os tipos nesse filme francês ou mesmo em alguns filmes, livros e personagens de comédia brasileiros.

“Toms” são os “Uncle Tom”, o Tio Tom – traduzido no Brasil como Pai Tomás, negro servil, que concorda alegremente em servir seus patrões; geralmente era o escravo que trabalhava dentro de casa, próximo aos senhores, e que por isso tinha mais regalias e benefícios que os que trabalhavam no campo.

“Coons” são os palhaços de olhos esbugalhados.

“Mammies” são as tias negras gordas, benevolentes, quase parte da família. Umas almas lindas e generosas. Tia Nastácia é uma, no Brasil. A criada de “E o Ventro Levou” é outra.

“Bucks” são os negros fortes e hipersexualizados. Seres brutais, indomáveis e irrefreáveis, a grande ameaça às donzelas brancas.

“Mulattoes” são os tipos simpáticos e agradáveis, muitas vezes mulheres, fadados a destinos trágicos, pois tentam esconder sua origem negra e buscar casamentos interraciais, por exemplo. Quando toda a verdade é revelada, elas se dão mal.

O simpático Driss é uma mistura de alguns desses tipos. É sexualizado e forte como um Buck, mas ao mesmo tempo palhaço como um Coon. Mas o que o mais caracteriza, certamente, é o Tio Tom. Driss trabalha junto ao patrão e recebe inúmeros benefícios e regalias por conta de sua proximidade com ele, do afeto que ele lhe dedica.

Funciona muito bem no filme. Mas na vida real, é preciso lembrar: esses privilégios não são direitos conquistados. Não são algo comum a todos os negros. É algo que o branco tem o poder de dar, e também o poder de tirar, caso o funcionário não mais lhe agrade. As regalias estão condicionadas ao afeto do branco. À capacidade do negro de entreter e cuidar. Não são resultado de mudanças na sociedade, de mudanças na estrutura.

Certamente nem toda relação entre um branco e um negro se caracteriza em uma relação entre Tio Tom e servo. Certamente não são todos os negros que se encaixam em um desses cinco estereótipos. Certamente não podemos baratear o afeto que o verdadeiro Philippe sente pelo seu ex-cuidador argelino Abdel Sellou, afeto que o levou a escrever o livro Você Mudou a Minha Vida (Ed. Record).

Mas, se não é sempre assim, por que, então, é tão difícil ver histórias que fujam a isso?

P.S.: Os franceses não consideram a obra racista, pois, sendo a França uma nação racista, a aproximação de um branco e um negro, ainda que pela via do contrato de trabalho, é um avanço. O filme foi aplaudido e virou febre, irá representar a França no Oscar, e teve nove indicações ao César. É o filme estrangeiro mais assistido nos Estados Unidos em 2012. Não é ruim. É belo, despretensioso, e certamente bem-intencionado. Mas ao mesmo tempo, é aquilo: não traz nada de novo.

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Faça a coisa certa

Eu talvez tenha sido um pouco dura com Intocáveis. É que a obra foi mais difícil de engolir por eu ter assistido, logo antes, Faça a Coisa Certa (1989), clássico do Spike Lee.

É um filme sensacional.

Narra um dia em um quarteirão de Bedford-Stuyvesant, bairro predominantemente negro da região do Brooklyn, em Nova York. Lá, negros, italianos, coreanos e brancos convivem em um estado de tensão amigável, que vai esquentando junto com a temperatura de um dia de verão.

Os personagens são complexos. Não há heróis nem vilões (exceto, talvez, a polícia). Mookie, interpretado pelo próprio Spike Lee, é um cara bacana, que não quer confusão, mas está sempre fugindo no trabalho para cuidar da própria vida. O bonachão e simpático Da Mayor, um senhor de meia idade que insta Mookie a “fazer a coisa certa” e arrisca a vida para salvar uma criança, é um bêbado que se arrasta pelas ruas. O italiano Sal, dono da pizzaria onde Mookie trabalha, nutre respeito e amizade pelos vizinhos negros, mas não coloca foto de nenhum homem não-branco em seu mural da fama na parede. Os dois filhos de Sal têm atitudes opostas em relação aos negros: Pino, o valentão, é racista e odeia trabalhar ali; Vito é amigo de Mookie e acha que está tudo bem. Radio Raheem é um jovem negro caladão que anda sempre por aí com seu enorme rádio tocando eternamente “Fight The Power”, do Public Enemy. Os negros caribenhos que ficam sentados na rua fazendo hora não gostam dos coreanos que abrem um negócio no bairro. Buggin’ Out é o negro consciente que luta contra o racismo, e é absolutamente chato e insistente na maneira de fazer isso. Mother Sister é a senhora que olha o quarteirão a partir de sua janela, legal com todos, mas dura com Da Mayor. Jade é a irmã de Mookie, amiga de Sal, com quem provavelmente vive um clima de romance. E fora toda essa turma, há os adolescentes arruaceiros, que criam confusão, a comunidade latina, o locutor do rádio, que pontua a tensão da história com sua narrativa e comentários sobre o calor.

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Cena do Filme Faça a Coisa Certa (“Do The Right Thing”, 1989), de Spike Lee.

Ao longo de um dia, a tensão entre todas essas pessoas aumenta até o ponto em que uma tragédia acontece.

No filme, Spike Lee debate uma de suas eternas questões: na luta anti-racista, deve-se seguir o caminho pacífico de Martin Luther King Jr. ou o caminho da auto-defesa, com uso de violência se preciso, proposto por Malcolm X? O filme não chega a uma conclusão. O que fica claro é que, mesmo quando todos estão errados, os negros é que levam a pior. A tragédia deles é institucionalizada e estruturada, chegando ao ponto da banalidade com a sugestão, no fim da história, que depois de um dia como aquele, tudo volta ao normal – afinal, a tragédia não é fora do comum; é a rotina de quem vive sob o signo da discriminação.

Talvez ainda mais relevante para a discussão de Intocáveis, porém, seja o outro filme de Spike Lee: A Hora do Show (2000), em que ele aborda os estereótipos com que a mídia retrata os negros – com base nos cinco tipos da pesquisa de Bogle, que citei no texto sobre o filme francês. Pierre Delacroix é um roteirista de TV que tenta escrever personagens negros que fujam aos clichês. Mas a emissora insiste em que ele escreva shows sobre negros “com negritude”, dentro dos estereótipos. Rappers, jogadores de basquete, a coisa toda.

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Em protesto, Delacroix decide fazer um show de variedades com “blackfaces”. As blackfaces surgiram no começo do cinema, quando os negros não podiam atuar; com a cara pintada de preto, atores brancos faziam o papel dos personagens negros. Por retratar os negros de forma caricata e estereotipada, as blackfaces eram (e ainda são) extremamente ofensivas aos negros. A sacada de Delacroix é colocar atores negros para fazer as blackfaces. Esses atores negros, suprema ironia, devem pintar seus rostos de preto e os lábios de vermelho para interpretarem os papéis. A ideia é que, ao mostrar os negros como caricaturas de si mesmos, as pessoas percebam o absurdo que é esperar que façam sempre o mesmo tipo de personagem, que sejam mais “negros”, até, do que realmente são.

É para ser um show irônico, uma sátira. Só que ninguém saca. O show vira um sucesso. Os personagens viram febre. Com a crítica inicial perdida, o show acaba perpetuando ainda mais estereótipos, em vez de denunciá-los. Delacroix não entende o que está acontecendo e fica confuso. E aí coisas acontecem.

É, enfim, um chute no estômago.

Os filmes de Spike Lee não são tão novos assim. Mas, ao ver outros filmes com personagens negros de hoje, fica a impressão de que os debates que ele retratou e propôs não foram incorporados pela indústria do cinema, ou mesmo pela sociedade.

Podemos fazer melhor, bem melhor.

 

 

Fonte: Blogueiras Feministas

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