Invasão do terreno da Casa Branca ameaça o santuário de Omolu

FONTEPor Lisa Earl Castillo, enviado ao Portal Geledés
A Casa de Omulu em 2021, com a invasão no fundo, indicada pela seta vermelha. (Foto: Lisa Earl Castillo)

Uma obra irregular, de 5 andares, ameaça a Casa Branca, um dos mais antigos terreiros da Bahia e o primeiro monumento negro tombado pelo IPHAN. Construída em cima de uma ribanceira, sem acompanhamento arquitetônico ou alvará, a obra invadiu o terreno tombado por mais de 2 metros, logo em cima da casa que guarda os assentamentos dos orixás Omolu, Nanã Buruku e Oxumarê. Por sua natureza irregular e pelo terreno acidentado, corre risco de desabamento. Desde o início da obra, a liderança do terreiro implora sua demolição, sem nenhuma providência.

Quando a obra começou, no final de 2019, foi logo denunciada ao IPHAN pela associação civil do terreiro. Houve uma vistoria e a obra foi interditada, mas sem efeito. Pouco depois, estourou a pandemia, interrompendo muitas atividades governamentais, inclusive a fiscalização de construções irregulares. Na ausência de medidas punitivas, o dono da obra estava à vontade para prosseguir com a construção e fez, a pleno vapor. Em 2021, a obra foi denunciada ao Ministério Público Estadual, logo gerando outro embargo. O MPE ainda pediu uma análise técnica, o que identificou risco de desabamento. 

A área em torno da Casa de Omolu em 1981, quando o processo de tombamento estava tramitando. À direita, o barracão; à extrema esquerda, a Ladeira Manoel Bonfim. A elipse vermelha indica a Casa de Omolu, parcialmente ocultada pela vegetação e sem nenhuma construção adjacente. (Fonte: Acervo do IPHAN.)

Não obstante tudo isso, a construção permanece, ameaçando os assentamentos seculares de vários orixás e pondo em risco a vida de quem transita pelo local. Mas essa invasão não é a primeira, nem a única que engoliu o terreno tombado. Faz parte de um problema crônico de construções que vem roendo pelas beiradas o território do terreiro há mais de 20 anos. As invasões anteriores também foram denunciadas ao IPHAN, mas em vão. A construção na ribanceira, a mais recente, o quadragésimo imóvel que invadiu o terreno tombado, é o mais ousado e grave, pelo risco de desabamento.

A invasão de terreno é um problema enfrentado por muitas comunidades religiosas afro-brasileiras, desde casas pequenas até as grandes casas tombadas, apesar de que essas últimas na teoria gozem da proteção do poder público. Pois a extrema lentidão dos órgãos competentes em tomar providências acaba impedindo a salvaguarda do patrimônio público afro-brasileiro. Para acabar com esse quadro, é preciso ainda implementar um sistema de fiscalização permanente. Um abaixo-assinado digital em solidariedade com a Casa Branca, lançado há poucos dias, já conta com quase dois mil assinaturas. 

Reunião recente no barracão da Casa Branca, convocada pela Sepromi (Secretaria da Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia) e reunindo a liderança do terreiro, membros de outras casas de candomblé e representantes de vários órgãos do governo estadual e municipal. O encontro tinha o intuito de agilizar a tomada de providências contra as invasões do terreno. (Foto: Willys Andrade)

Matriz de inúmeras outras comunidades de candomblé, a Casa Branca, também conhecido por seu nome iorubá, Ilê Axé Iyá Nassô Oká, foi tombado pelo IPHAN e pela Prefeitura de Salvador nos anos 1980, em meio de uma luta contra outra invasão de seu terreno, por um posto de gasolina. Com aproximadamente 6.800 m2, o terreiro e suas adjacências foram tombados e ainda designados como área de proteção paisagística rigorosa. A julgar pelo número de invasões, porém, esta forte medida protetiva evidentemente não saiu do papel. 

O descaso com o território físico do terreiro é apenas uma manifestação do racismo religioso que a comunidade enfrenta desde seus primórdios. Foi fundada por volta de 1830, por Iyá Nassô, alta sacerdotisa de Xangô do Reino de Oyó, na Iorubalândia, que chegou à Bahia escravizada. Segundo a tradição oral, Iyá Nassô teria voltado à África com sua filha de santo e sucessora, Marcelina Obatossi, também devota de Xangô. Pesquisas recentes confirmaram a veracidade dessa memória, ainda revelando que a volta para a África aconteceu em 1837, motivada pela repressão depois da revolta dos malês (1835). As cerimônias para Xangô realizadas na casa de Iyá Nassô foram confundidas com reuniões para planejar a rebelião e seus filhos de sangue foram condenados a oito anos de prisão. A mãe, no entanto, recorreu a várias instâncias da justiça, até o próprio Imperador, pedindo a comutação da sentença para deportação à África. Ela acrescentou que iria acompanhar os filhos, pelo amor que tinha por eles e ainda mais por não querer permanecer num país com tanto preconceito contra africanos. Nessa viagem, Iyá Nassô foi acompanhada por vários agregados, entre eles Marcelina Obatossi. Esta, no entanto, retornou à Bahia poucos anos depois, onde assumiu a liderança da comunidade religiosa, hoje conhecida como o Terreiro da Casa Branca. 

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