Já tombou hoje? Nova geração de cantores “lacra” contra a caretice

Enviado por / FontePor Tiago Dias, do Uol

Quem reclama que não tem nada de novo e representativo na música brasileira é porque ainda não viu uma nova geração de artistas “tombar” à sua frente.

Mesmo sem discos completos, ou o talento já lapidado, a geração tombamento não se uniu necessariamente por uma unidade sonora. Seja no rap, no soul ou na MPB, algo maior tem fascinado um público jovem: o grito contra a caretice – na arte e na vida.

Para isso, vale se vestir como bem entender, amar quem der na telha e questionar as convenções de beleza e identidade de gênero. É o momento da “lacração”. Não sabe o que é? Nem tente o dicionário. “Lacração é quando a gente aceita na nossa vida um estado de maravilhosidade. É o momento de empoderamento”, explica Liniker Barros.

Prestes a completar 21 anos, e com apenas três músicas lançadas no EP “Cru” ao lado da sua banda Liniker e os Caramelows, o cantor tem tocado uma multidão por onde passa –seja nos views de seus vídeos no YouTube ou nos concorridos shows que tem feito.

Liniker Barros (Foto: Imagem retirada do site UOL)

[Lacração] é aceitar na nossa vida um estado de maravilhosidade. É o momento de empoderamento

Mais do que a voz rouca, que derrama em canções de levada soul, Liniker causa fascínio pelo batom na boca e a liberdade que exala no palco. Vindo de Araraquara, no interior de São Paulo, ele só tombou de vez quando ouviu da funkeira trans Linn da Quebrada: “Bicha, a senhora precisa parar de ser medrosa, bota logo uma saia, um batom”.

A inspiração que já vinha da mãe, dançarina nata de samba rock que criou Liniker sozinha, enfim, transbordou pelos poros. Ele não se esquece da sensação: “Foi uma descoberta de mundo”.

[Tombamento] é permitir que ninguém deixe a gente pra baixo, que a gente é feia, que a gente é inferior, porque a gente não é

as-bahias-raquel-virginia-e-assucena-assucena-descobriam-que-eram-trans-juntas-durante-curso-de-historia-na-usp-1464791556058_615x300
Raquel Virginia e Assucena Assucena, cantoras de As Bahias e a Cozinha Mineira, descobriam que eram trans ao mesmo tempo, durante curso de História na USP (Foto: Imagem retirada do site UOL)

Descobrindo o mundo

A cantora trans paulistana Raquel Virgínia, 27, descobriu o seu momento de “tombar” quando saiu de vestido na rua pela primeira vez. “Estava morrendo de medo. Fui xingada porque na época eu não usava base. Para aquelas pessoas era algo altamente bizarro”, relembra. “Foi a época mais difícil e solitária, mas foi meu momento”.

Mas não só de festa vive o tombamento. “Está acontecendo um movimento político, independente de nós. Muitos paradigmas estão sendo colocados para baixo. A sociedade coloca a travesti como se a única oportunidade dela fosse o programa. Muita gente acha que eu sou garota de programa. Quando descobrem que sou uma artista de MPB, ficam chocados”, conta Raquel.

Ela está à frente dos vocais e composições da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, junto com a amiga Assucena Assucena, 28, que conheceu no curso de História na Universidade de São Paulo (USP). O questionamento do próprio gênero aconteceu ao mesmo tempo para as duas. Foi natural que dividissem o período conturbado entre si, acompanhado de doses cavalares de Gal Costa.

Do período de depressão saiu “Mulher”, o primeiro álbum, lançado em dezembro de 2015, e dedicada ao gênero que, segundo elas, começou essa revolução. “Essa liberdade começa no corpo. Eu não preciso mais ser bela, recatada e do lar. Eu vou sair como eu quiser, meu bem. Eu vou ser do jeito que eu quiser”, explica Assucena.

Quando o lacre não acontece, Assucena volta ao pé da vitrola, assim como fazia quando criança em Vitória da Conquista, na Bahia. “Eu era aquele menininho viado, sabe? Ficava pela rua tentando dar aqueles agudos da Whitney Houston”.

tassia-reis-1464791744076_300x200
Tássia Reis (Foto: Imagem retirada do site UOL)

A parada dessa geração é a militância. E isso acontece toda vez que estamos em um momento político difícil, queremos mostrar que somos livres.

É com essa força feminina que Tássia Reis, 26, tem marcado presença no rap. Vinda de Jacareí, região metropolitana de São Paulo, começou na dança, mas descobriu um prazer escondido pela insegurança quando foi chamada, de surpresa, para rimar em um show de rap. “Aí eu senti o bafo do lacre”, conta. “Eu até queria cantar, mas não achava que eu tinha capacidade. Na verdade, eu não achava que era uma grande lacradora.”

Hoje ela integra coletâneas gringas e é apontada como o novo nome do rap jazz no Brasil. No palco, é uma referência fashion e de atitude, principalmente para o feminismo negro.

Será assim também nos próximos meses, quando todos eles saírem em turnê juntos. Sob o nome de “Salada das Frutas”, a trupe viajará para Salvador, Recife, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo. A primeira parada, no Vento Festival, em 10 de junho, em Ilhabela (litoral paulista), contará ainda com o rapper gay Rico Dalasam.

Com a lacração garantida, o tombamento no palco é consequência. “Esse fascínio da plateia vem dessa representatividade, de ser um espelho. Eu mesmo procurei durante muito tempo um espelho que parecesse comigo”, reflete Liniker.

“A parada dessa geração é a militância. E isso acontece toda vez que estamos em um momento político difícil, queremos mostrar que somos livres”, “lacra” Tássia.

+ sobre o tema

Whitney: Documentário abre a caixa de Pandora de uma das cantoras mais emblemáticas

Publicamente, todas as fases da emblemática cantora Whitney Houston foram vividas diante...

Humorista Jordan Peele ganha milhões fazendo filme de terror com protagonistas negros

Jordan Peele, o responsável por “Nós”, filme de terror...

Simonal: Fabrício Boliveira vive a fama e as dificuldades do cantor em primeiro trailer

A cinebiografia do músico chega aos cinemas em agosto. Por Amanda...

para lembrar

Milton Nascimento

Milton Nascimento (Rio de Janeiro, 26 de outubro de 1942)...

Para conscientizar – Artistas africanos gravam música para campanha de combate ao ebola

Alguns dos mais conhecidos artistas africanos gravaram uma música...

Nova encarnação do Chic, de Nile Rodgers, solta primeira faixa de novo disco

A nova versão do Chic, influente grupo de disco...
spot_imgspot_img

Somos o mundo

Faz quase 40 anos, uma ação entre artistas mudou a forma de celebridades e sociedade civil se relacionarem com agendas humanitárias urgentes. A ficha...

Morre atriz e cantora Denise Assunção, que atuou em peças de teatro e na televisão

Morreu, nesta quinta-feira, a atriz e cantora Denise Assunção, aos 67 anos, em decorrência de complicações de um câncer no intestino. A informação foi divulgada...

SZA lança edição especial de CTRL com 7 faixas inéditas; confira

SZA marcou época com seu álbum de estreia, o CTRL (2017). Para honrar o legado e as inúmeras vezes que o álbum foi para o topo da...
-+=