Jessica Jones e a possibilidade de se enxergar em uma heroína

Como o seriado Jessica Jones ajudou a colocar o abuso em debate e fez surgir uma heroína com problemas reais tão representativa

por Aline Valek, do Carta Capital 

Já se foi o tempo em que se usava o argumento de não fazer histórias protagonizadas por mulheres porque “não dá audiência” ou porque “são ruins”.

Este ano tivemos Mad Max, uma das grandes franquias de ação no cinema, com Furiosa literalmente conduzindo a história; tivemos a última parte de Jogos Vorazes, a saga de uma jovem mulher desafiando o poder, sendo sucesso de bilheteria; e agora temos Jessica Jones, mais um acerto da Marvel e Netflix, provando que histórias com super-heroínas podem sim fazer sucesso e ter uma qualidade excepcional.

Fora do circuito de heróis mais famosos que enfrentam ameaças cósmicas, formam o grupinho de elite mais poderoso desse universo ficcional e ainda levam filmes com seus nomes, como Capitão América, Homem de Ferro, Hulk e Thor, há os heróis sem tanto prestígio tentando levar a vida e combater bandidos lá nas quebradas de Hell’s Kitchen, e que têm rendido histórias cheias de profundidade que podemos acompanhar em casa, na nossa TV, em vez de numa sala de cinema.

Um deles é o Demolidor, um advogado que abre uma pequena firma e, não bastasse a encrenca que isso por si só representa, ainda sai mascarado à noite para combater o crime, frequentemente levando porrada (e não é pouca não) de capangas do Rei do Crime.

Agora conhecemos Jessica Jones, uma investigadora falida que por acaso também tem super poderes. Assim como Matt Murdock, ela tem um humilde escritório em Hell’s Kitchen, mas as semelhanças param por aí. Diferente do “homem sem medo”, Jessica não é nada certinha: alcoólatra, rude, egoísta e capaz de escolhas moralmente questionáveis, “boa moça” é um atributo que passa longe dela.

A história do seriado é sobre essa personagem de vida atribulada – e super-força no nível parar-carro-em-movimento-com-as-mãos – enfrentando um dos vilões mais perigosos que já conheci: um ex abusivo com o poder de controlar mentes.

Depois de Kilgrave, nem Thanos, vilão que ainda vai dar trabalho para Os Vingadores, parece tão assustador. Kilgrave tem aparência inofensiva, se veste bem, é charmoso e educado, mas é um psicopata que não se importa em machucar e matar em nome de seus interesses. A sua maior motivação, no caso, não é o clichezíssimo “dominar o mundo”, mas dobrar a vontade da única mulher que fugiu ao seu controle: Jessica.

Kilgrave é assustador porque é real. Tirando a parte do controle mental, claro (e o estranho gosto por ternos roxos), não é difícil achar caras com esse nível de obsessão por uma mulher, capazes de persegui-las, ameaça-las e tortura-las. Caras que usam seu poder numa relação para manter a mulher sob controle. Caras que não aceitam a rejeição e fazem de tudo para punir a mulher que lhes disse “não”.

A forma que Jessica o enfrenta – com a ajuda das outras mulheres da trama – ajudou a manter o tema do abuso no centro das discussões, em tempos de hashtags como #PrimeiroAssédio e #MeuAmigoSecreto, que ganharam destaque e estimularam as mulheres a denunciarem violências que sofreram.

A cena em que Jessica fala com todas as letras que Kilgrave a estuprou, já que ela não consentiu em nenhum momento em ter relações com ele, é um bom exemplo disso. Na ficção e fora dela, as mulheres sinalizam para a impossibilidade de continuar em silêncio sobre esse tipo de violência.

Muito já se falou e se escreveu sobre como a primeira temporada de Jessica Jones é sobre abuso e controle. Cada texto que leio sobre a série acaba se tornando parte da experiência do seriado, porque eles ajudam a explorar a riqueza e maturidade de questionamentos da história, que acerta em cheio ao conseguir fazer com que a ficção dialogue tão intensamente com a realidade.

Essa é a prova de que preencher a ficção com mais diversidade (tanto em personagens, quanto em responsáveis por criar e produzir essas obras) vai muito além de dar espaço para as histórias contadas e protagonizadas por mulheres, negros, trans, lésbicas, pessoas fora do padrão dominante; fazer isso é abrir a ficção para a possibilidade de ser maior, de conseguir, de fato, refletir o que somos e como nos relacionamos no mundo – ainda que coloquem alguns super poderes no meio.

A qualidade de Jessica Jones mostra que diversificar a ficção acaba resultando em subir o nível das produções, não só em visual e efeitos especiais, como em profundidade de conteúdo. Diversidade na ficção resulta em histórias mais humanas – e, consequentemente, mais divertidas, emocionantes, chocantes.

Em Jessica Jones tem heroína durona. Tem Trish, mulher sem super-poderes mas com a vocação para a heroína que Jessica não tem, mostrando outras facetas de “ser forte”. Tem mulheres sendo donas de seu corpo e de suas vidas sexuais. Tem advogada lésbica bem sucedida. Tem mulher salvando mulher. Tem heroína declarando amor não para o mocinho, mas para a melhor amiga. Tem a sensibilidade de Luke Cage, apesar de sua pele indestrutível.

Mas tem, sobretudo, Jessica e uma imensa identificação com ela. Porque se o Homem-Aranha, outro herói sem recursos e com problemas reais de adolescente, conseguiu inspirar gerações de leitores de quadrinhos que passaram a se identificar com ele por estar tão próximo de suas realidades, Jessica Jones segue o mesmo caminho de super-heroína “gente como a gente”.

É fácil se enxergar como Jessica não só porque ela tem problemas reais, não usa um uniforme colorido e um nome engraçado. Não é preciso muitos episódios para sacar que ela não é perfeita, mas talvez seja preciso um olhar mais atento a toda série para perceber que ela é uma personagem que não pode ser resumida a uma coisa só.

Porque sua história, por mais que tenha o abuso no centro da trama, não pode ser resumida a um seriado sobre abuso. Da mesma forma que ela não pode ser resumida como “forte” mesmo levantando com facilidade um homem do tamanho do Luke Cage, se ela também tem suas fraquezas – e não faz questão de esconder suas vulnerabilidades. Ela é uma mistura às vezes contraditória, e é justamente isso que a torna tão humana.

Sua recusa a aceitar o papel de heroína é de certa forma uma recusa a ser resumida. A se adequar. A ser “certinha”. A ser uma coisa plana, um rótulo, um estereótipo. E aí está o espaço para dar “match”, para nos identificarmos e sentirmos que Jessica nos representa.

Porque todos os estereótipos que por tanto tempo foram usados para tentar nos resumir e nos achatar de forma tão grosseira, acabaram nos deixando em segundo plano nas histórias, contando a mentira que somos todas iguais, roubando nossa profundidade e humanidade.

E que maravilhoso é ver que Jessica Jones tem super-força não só para combater vilões perversos, mas para entortar todos esses estereótipos, quebrar no meio e ainda arremessar contra a parede.

Porque se tem uma coisa que Jessica nos ensina, não é a dar socos e a voar (habilidade que ela definitivamente não domina); mas a firmeza em dizer que não, você não pode nos obrigar.

Então ela pode até não se enxergar dessa forma, mas ela é sim minha heroína.

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