O carnaval já não é mais o mesmo, faz tempo!
Nos últimos anos as Escolas de Samba tem encontrado cada vez maior dificuldade para terem um número de negros em seus desfiles que não as deixem com cara de escola de samba do Brasil na Europa ameaçando a autenticidade do espetáculo por aqui.
O Carnaval do Rio é há muito tempo é uma festa para o turista nacional e internacional como acontece em Salvador que também transformou seu carnaval em espetáculo para o turismo.
O samba no Rio de Janeiro e as escolas de samba foram criadas como frentes de resistência política, de luta cultural e para o desenvolvimento social do negro contra o racismo no início do século XX. Desde logo, a mídia se transforma num aliado ambíguo que legitima o protagonismo negro e sua expressão social por meio do apoio e da divulgação dos desfiles, mas que vai também moldando as escolas de samba como espetáculo e mercadoria cultural.
O caso atual de “escassez” de negros entre tantas causas possíveis e prováveis carrega um duplo sentido e uma forte ambiguidade. Primeiramente, o tipo negro requerido é um estereótipo, busca-se um tom de pele para representar um enredo que pretende representar certas expressões da cultura maranhense de origem africana no caso da Beija Flor ou de Angola no caso da Vila Isabel. O segundo sentido, é o de que há uma ideia chave que reveste o pensamento dominante sobre as questões raciais e que é repetida pela mídia de massa, negar ou ocultar o racismo. E mesmo, quando certas mensagens parecem conter um sentido afirmativo da identidade negra, a forma pela qual a questão racial é representada, além do estereótipo como nesses casos, é a sua negação. A negação pode ser direta ou pode estar implícita, outras vezes a negação ocorre pela ausência da questão racial. Aliás, nesses dois casos o senso comum não enxerga o racismo.
A “Beija-Flor de Nilópolis” fez uma convocação à sua comunidade nos seguintes termos:
“A Beija-Flor está convocando negros, homens e mulheres, de qualquer tipo físico e com mais de 18 anos, para participação no desfile da escola no próximo Carnaval, quando a azul e branco tentará o bicampeonato com o enredo “São Luís – O Poema Encantado do Maranhão”.
O carnavalesco Fran Sérgio adianta que os inscritos terão garantidos lugares em carros alegóricos e alas.” (grifos meus)
A Escola de Samba Vila Isabel também saiu à procura de negros:
“convoca negros e negras que se identifiquem com a história da nação africana e desejem fazer diferença no desfile da azul e branca em 2012 (…) os inscritos serão distribuídos pela alegorias e alas” (grifos meus)
Mas qual é a situação que leva uma escola de samba a “convocar” seus integrantes baseados na identidade racial negra? Há alguma positividade nessa convocação que é também uma lacônica denúncia? Há algum sentido afirmativo da identidade negra nisso ou se trata de apenas de uma das evidências da falta de “negros” nestas escolas de samba? E ainda, isto é sintomático do ‘desvio total’ do sentido original em que foram criadas as escolas de samba?
A positividade de fato é ser sintomática de uma crise nas escolas de samba. Essa convocação tanto é uma denúncia como é irônica pelo que expressa de ambiguidade, porque precisa recorrer ao estereótipo do negro para representar o angolano e a cultura angolana que são as origens do samba. Precisam-se de negros para representar negros numa instituição cultural originariamente criada por negros. Irônico, não?
Não porque não hajam negros suficientes nas comunidades do samba, mas porque elas querem um “tipo de negro”. Os negros estereotipados pela cor da pele que atendem a um conceito estetizante e não a existência real do que seja a identidade negra e a realidade do negro no Brasil ainda que queiram representar uma África imaginada.
Porque faltam negros na escola de samba? Isto quer dizer que os brancos se tornaram predominantes entre seus integrantes e que ameaçam a autenticidade do espetáculo?
A transformação das escolas de samba em “empresas” afastou o negro do comando de um espaço onde ele já se tornara apenas figurativo com a necessidade de financiamentos que o “jogo do bicho” supria em parte através de seus “patronos” endinheirados com o dinheiro da próprio povo que o gastava nas bancas do jogo.
A transformação das alas das escolas de samba em agenciamento de componentes da classe média e de turistas com a venda de fantasias e promoções de eventos também contribuiu para que os interesses comunitários fossem substituídos por interesses de mercado. Além disso, os direitos de transmissão do espetáculo, os patrocínios e as subvenções do governo movimentam um volumoso capital e muitos interesses dos quais a sociedade acostumou-se a excluir dos negros.
O que restou de espaço de negociação para os negros numa escola de samba, além de ritmistas e passistas? Mesmo as alas das baianas e as velhas guardas do samba que representam a memória das escolas de samba se mantém sob ameaças com diversos casos de tentativa de sua eliminação. O próprio samba enredo esteve sob várias ameaças desde o encurtamento desmedido de suas letras e alterações no ritmo, sempre visando segundo os marqueteiros ao “bom andamento do desfile”.
O caso com a atual Miss Universo, a angolana Leila Lopes, é sintomático desse estranhamento que está ocorrendo. Do alto de seu prestígio Leila Lopes reclamou um cache de 50 mil dólares para participar do desfile, o que causou uma enxurrada de manifestações depreciativas por parte da mídia nas palavras de dirigentes da escola samba Vila Isabel.
As escolas de samba movimentam um rede de negócios e de interesses onde o lucro e a exploração predominam e ao negro cabe emprestar seu prestígio, doar seu trabalho e talento por “amor ao samba” e tantos outros eufemismos usados para mascarar os interesses empresariais e a alta exploração que se faz do negro e da sua cultura, na verdade uma expropriação da cultura do negro.
Leila Lopes, Miss Angola sendo coroada Miss Universo 2011 no Brasil
Outra possível causa do afastamento dos negros das escolas de samba é a mudança dos padrões culturais da juventude da periferia urbana que prefere outras formas de expressão cultural mais contemporâneas ou que expressem melhor suas expectativas e inquietações. Apesar de ser umas das primeiras manifestações de cultura urbana, moderna e popular, as escolas de samba deixaram de representar um espaço e um símbolo do desenvolvimento social do negro para se transformarem num símbolo da cultura nacional mas onde o negro cada vez mais aparece como um contribuinte e da qual se afasta cada vez mais.
Há ainda a ameaça das igrejas evangélicas que demonizam todas as manifestações de cultura negra e que vem atraindo uma quantidade expressiva de jovens que passam a negar as tradições culturais negras em nome de um obscurantismo religioso reacionário e racista.
Fonte: Beleza Negra