Jovens negras do Brasil e a transmissão geracional do racismo e da desigualdade

O alto risco que se impõe diariamente sobre a vida das jovens mulheres negras aparece como uma condição que tem rebatimentos negativos diretos sobre a democracia brasileira, já que tal situação deve ser entendida como resultado histórico de condutas coletivas socialmente perversas.

Por Evanildo Barbosa da Silva e Rachel Barros Do Diplomatique

Historicamente, a população juvenil brasileira tem enfrentado um quadro extremamente desfavorável no que tange à garantia de direitos. Contudo, a situação a que está confrontada a população juvenil feminina, negra e pobre, além de ser dramática, tem se tornado insustentável nos dias atuais.

O alto risco que se impõe diariamente sobre a vida das jovens mulheres negras aparece como uma condição que tem rebatimentos negativos diretos sobre a democracia brasileira, já que tal situação deve ser entendida como resultado histórico de condutas coletivas socialmente perversas. O fato de a sociedade e o Estado brasileiro terem abdicado da possibilidade de difundir uma nova cultura política junto com os movimentos sociais organizados, com vistas a impedir que seguidas gerações de mulheres negras fossem submetidas a antigos processos de violações de direitos, é também um dos fatores que conformam o atual quadro para esse segmento juvenil.

Diferentes dados estatísticos apontam a condição precária à qual as mulheres negras estão submetidas. Representando 25% do contingente feminino da população brasileira (Pnad/IBGE, 2011), elas possuem em média cinco anos a menos na expectativa de vida em relação às mulheres brancas.1 São ainda as negras que ocupam os postos de trabalho mais precarizados, formando mais de 60% do contingente alocado no trabalho doméstico. Também são elas as mulheres que mais morrem, atingindo um percentual de 48% a mais de mortes em relação às brancas, de acordo com o Mapa da Violência 2010.

Quando consideramos esses e outros dados por faixa etária, vemos que essa condição se agudiza. No que diz respeito ao atendimento à saúde, as mulheres negras entre 15 e 19 anos engravidam mais que as brancas na mesma faixa etária, com taxas de 14,1% e 8,8%, respectivamente.2 Estudo realizado por Janaina Aguiar3 mostra que, quanto mais jovem, escura e pobre, maiores as possibilidades de a mulher sofrer violência no parto. No que diz respeito à violência, é importante destacar que o número de homicídio de mulheres negras é maior entre aquelas de 15 a 19 anos, chegando a 11,5 em cada 100 mil contra 4,6 de brancas da mesma faixa etária.4

Outro problema que tem se agravado para as jovens negras é o aumento do encarceramento feminino. De acordo com o Ministério da Justiça, dois terços do total das mulheres presas no Brasil têm entre 18 e 34 anos, 45% são pretas ou pardas, 50% têm ensino fundamental incompleto e, de cada quinze mulheres presas, catorze são responsáveis pelo sustento da família. Tais dados, além de mostrarem que o perfil das mulheres presas no Brasil é formado majoritariamente por jovens e negras, nos alertam que esse grupo vem se tornando alvo de práticas criminalizantes contra as juventudes.

O quadro descrito, longe de nos levar a antever uma alternativa simples para seu enfrentamento, quer apontar para uma questão que ainda precisa ganhar maior visibilidade no Brasil: as meninas jovens, negras e de periferia estão tendo seus sonhos, aspirações e projetos de futuros estancados, silenciados, retirados ou distanciados do horizonte temporal de suas famílias e de suas comunidades. Dizer isso significa que, ainda que consideremos e esperemos transformações nesse quadro por meio dos canais participativos nacionais – conferências, audiências públicas, CPIs, denúncias – ou da judicialização internacional das violações dos direitos, o que falta à nossa democracia é reconhecer que o Brasil não tem acordo, pacto ou projeto substantivo que se contraponha à transmissão geracional do racismo e da desigualdade contra as jovens mulheres negras.

Ainda que não identifiquemos um silenciamento absoluto em torno das reais condições de vida das jovens mulheres negras, pobres e de periferia no país – em geral graças à ação das próprias mulheres e dos movimentos feministas, juvenis, étnico-raciais e de defesa dos direitos humanos, entre outros –, prevalece um cinismo sobre o que se pode esperar do futuro desse segmento juvenil, de suas reivindicações, das formas de manifestação e de resistência em curso e, principalmente, de suas agendas de luta e de desejos coletivos. Enfrentar esse cinismo pressupõe reconhecer que o racismo e os demais preconceitos caminham de mãos dadas com o autoritarismo e a desigualdade, que teimam em avançar sobre os direitos humanos. Pressupõe também explicitar que a discriminação racial e a desigualdade de gênero aprimoram a violência como método de controle dessa população e que a desigualdade econômica continuará ofertando às futuras gerações de jovens mulheres negras e pobres discriminação e desigualdade, para que nunca nos esqueçamos de nosso passado colonial. Esse moto-contínuo de nossa trajetória social contra as jovens mulheres negras pobres do país, no processo nada silencioso da transmissão geracional do racismo e da desigualdade, é o que devemos enfrentar.

Persistem e persistirão os muitos obstáculos, mas, apesar deles, as mulheres e suas organizações ampliaram sua consciência em relação ao futuro e têm procurado valorizar o acesso a direitos como educação e saúde. Conhecem mais seus direitos e estão dispostas a defendê-los. Para isso, necessitam contar com a força e o dinamismo de organizações, movimentos sociais e outras redes, fóruns e articulações do país no apoio a ações que visem enfrentar essa situação de invisibilidade em que vivem as jovens mulheres negras das periferias e, assim, estruturar as condições societárias e políticas necessárias para romper o ciclo da transmissão geracional das desigualdades e do racismo a que esse segmento social está submetido.

Contudo, são as mulheres negras que têm incorporado em seus discursos e perspectivas a priorização do combate ao racismo, questionando a lógica de desenvolvimento em curso e se contrapondo a ela. A Marcha das Mulheres Negras 2015, a acontecer no próximo dia 18 de novembro, em Brasília, traz o tema do combate ao racismo e à violência e pelo bem viver, por meio do entendimento de que o racismo é fator responsável pela persistência de metade da população brasileira em situação de desigualdade de condições socioeconômicas. Com isso, o que se quer é valorizar práticas de sobrevivência material e simbólica construídas por essa população, em especial as mulheres negras, como possibilidade de avançar em alternativas que transformem efetivamente o atual modo de vida e garantam, de fato, desenvolvimento com soberania e dignidade. Enfim, incidir coletivamente sobre as violações que atingem diretamente as jovens mulheres negras é contribuir para que essas desigualdades históricas sejam enfrentadas, tomando-se em conta também as gerações futuras.

*Rachel Barro é socióloga, doutorando na Uerj e educadora da Fase Rio ded Janeiro; Evanildo Barbosa da Silva é diretor da Fase, historiador e doutor em desenvolvimento urbano

[Publicado no especial Juventudes e desigualdade no urbano – novembro de 2015]


1    A pesquisa Retratos da Desigualdade, realizada pelo Ipea, mostra que no ano 2000 as mulheres negras esperavam viver 69,5 anos, enquanto as mulheres brancas, 73,8 anos.

2    Dados da pesquisa Estatísticas de Gênero – Uma análise dos Resultados do Censo Demográfico (IBGE, 2010).

3    Janaina Aguiar, Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero. Tese de doutorado. São Paulo, 2010. A mesma constatação pode ser encontrada na pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, realizada pela Fundação Perseu Abramo e pelo Sesc.

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