“Atrás de toda manifestação religiosa há visões de mundo e cultura que são seculares. Combatê-las, sem nem esforçar-se em conhecê-las, é um sinal de pobreza humana”, diz o professor de História de Religiões, Giuseppe Bertazzo. Mãe Menininha do Gantois concordaria.
O que é religião?
Deus, deuses, algum de vocês, ouça: o Juiz Eugenio Rosa de Araújo, da 17º Vara Federal do Rio, impediu que fossem retirados do YouTube vídeos ofensivos à umbanda e candomblé, porque “as manifestações afro-brasileiras não se constituem religião”.
por Leonel Kaz
Ele, o juiz sentenciou que a umbanda e candomblé “não contém traços necessários de uma religião, a saber, um texto base (Corão, Bíblia), ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado”. Com isto o Meritíssimo excluiu todas as outras formas de religião – que não os cristãos, judeus e muçulmanos – do direito de terem sua fé tolerada e respeitada. Aliás, excluiu até uma das mais antigas, o judaísmo, já que esta não tem “estrutura hierárquica”.
Ora, recorro ao grande “babalorixá” da história brasileira, Gilberto Freyre, que já havia jogado por terra, desde 1933, com seu Casa Grande e Senzala, esta pregação anacrônica em torno de definições precisas sobre etnias e religiões (tão ao gosto das teses nazi-fascistas de arianismo e “raça pura” vigentes na Europa, à época), provando ser o Brasil o grande território da mestiçagem e sincretismo:
“A mediação africana no Brasil aproximou os extremos, que sem ela dificilmente se teriam entendido tão bem, da cultura europeia e da cultura ameríndia, estranhas e antagônicas em muitas das suas tendências. Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena (…) Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo.
O senhor e o escravo continuam pairando nas sentenças (proferidas pelo senhor juiz), definitivas, excludentes, permitindo a profanação das crenças religiosas que não, Deus meu!, definidas em tais ou quais critérios. É o mesmo fundamentalismo que continua rondando, não apenas na Nigéria ou no Irã distantes, mas cada vez próximos a nós.Um vídeo da BBC, desta semana, mostra a entrevista de uma jornalista mulata com um grupo neonazista que se manifestava na Alemanha:
– O que vocês planejam para pessoas como eu que não tem a mesma cor de pele?
– O prognóstico é que quando o país se renacionalizar (…) você será deportada.
http://www.bbc.com/news/magazine-27375741
A decisão do Meritíssimo vai no mesmo caminho: ou se tem um Deus pré-determinado ou se condena a serem enxovalhados e não-protegidos os que, segundo os critérios dele, não tem este Deus (budistas de todo o mundo, socorro!). O Brasil vem correndo o risco de estar se transformando numa república teocrática, como definiu o deputado Jean Wyllys à revista CULT:
“(As igrejas pentecostais) se fortaleceram política e economicamente, já que igrejas não são tributadas, tampouco fiscalizadas. Inclusive, os recursos podem ser distribuídos para outros investimentos, como em postos de gasolina, ou na televisão, onde são empregadas apenas pessoas convertidas que veem nisso milagres divinos, sentindo-se em débito permanente com os intermediários dessa relação. Isso é perigoso, pois pode resultar em perseguição àquilo e àqueles que, de alguma forma, representam ameaça a interesses, como já se dá regularmente contra religiões de matrizes africanas, e o pior : sem que o Estado tome providências contra isto. No Rio de Janeiro, há comunidades em que o tráfico se associou a alguns representantes de religiões pentecostais e uma das coisas que fizeram foi expulsar as pessoas dos terreiros dessas comunidades. Ora, esses terreiros formam as matrizes dessas comunidades, social e culturalmente – o samba nasceu onde?
“O ataque à umbanda e ao candomblé é também um ataque de viés racista por se tratar de religiões praticadas sobretudo por pobres e negros. Mas é, antes, uma disputa de mercado. O que os fundamentalistas pretendem com os ataques à Umbanda e ao Candomblé é atrair os adeptos – e, logo, o dinheiro deles – para suas igrejas. E como vivemos sob uma cultura cristã hegemônica, que se fez na derrisão e repressão das religiões indígenas e africanas, é óbvio que as igrejas fundamentalistas levam a melhor nessa disputa de mercado e em suas estratégias de difamação.”
O professor de História das Religiões, Giuseppe Bertazzo, da Universidade Católica de Goiás, assim conclui:
“ Com esta mentalidade que não aceita outras manifestações religiosas, o juiz nos remete aos portugueses e espanhóis de 1500 que, por considerarem os indígenas “sem lei, nem rei nem Deus”, os desumanizava. A sentença acaba por justificar o massacre histórico dos indígenas, já que estes eram considerados depossuídos de cultura, religião e humanidade. Assim, os colonizadores podiam fazer deles o que bem entendessem: escravizá-los ou matá-los, em nome de um cristianismo fundamentalista, totalitário e excludente.
“Se se quiser partir da etimologia mais conhecida do termo religião (que é religare, fazer uma ligação deste mundo com um mundo superior), o juiz demonstra ser ignorante no sentido antropológico e cultural: em que livro está escrito que a religião deva se constituir com base num livro e numa hierarquia? Atrás de toda manifestação religiosa há visões de mundo e cultura que são seculares, mesmo milenares, dignas do maior respeito. Combatê-las, sem nem esforçar-se em conhecê-las, é um sinal de pobreza humana, tacanhez intelectual.”
“Poderíamos estar voltando à Idade Média, quando até cristãos que queriam voltar à pobreza inicial da Igreja, passaram a ser perseguidos. É sempre a tentação do poder, que usa também da religião para impor sua supremacia, excluindo quem não se submete a este imposição. Se você tem uma crença respeite a alheia, fique com ela e vá com Deus!”
Blog do Leonel Kas