Justiça social e justiça histórica

por: BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

AO REGRESSAR de férias, o STF enfrenta uma questão crucial para a construção da identidade do Brasil pós-constituinte: é possível adotar um sistema de ações afirmativas para ingresso nas universidades públicas que destine parte das vagas a negros e indígenas?
Ao rejeitar o pedido de liminar em ação movida pelo DEM visando suspender a matrícula dos alunos, o ministro Gilmar Mendes sugeriu que a resposta fosse dada em razão do impacto das ações afirmativas sobre um dos elementos centrais do constitucionalismo moderno: a fraternidade.

Perguntou se se estaria abrindo mão da ideia de um país miscigenado e adotando o conceito de nação bicolor, que opõe “negros” a “não negros”, e se não haveria forma mais adequada de realizar “justiça social” -por exemplo, cotas pelo critério da renda.
Situar o juízo de constitucionalidade no horizonte da fraternidade é uma importante inovação no discurso do Supremo.
Mas, assim como o debate sobre a adoção de ações afirmativas baseadas na cor da pele não pode ser dissociado do modo como a sociedade brasileira se organizou racialmente, o debate sobre a concretização da Constituição não pode desprezar as circunstâncias históricas nas quais ela se insere.

Como já escrevi nesta seção, o ideário da fraternidade nas revoluções europeias caminhou de par com a negação da fraternidade fora da Europa (“As dores do pós-colonialismo”, 21/8/06). No “novo mundo”, a prosperidade foi construída à base da usurpação violenta de territórios originários dos povos indígenas e da sobre-exploração dos escravos para aqui trazidos.

Por essa razão, no Brasil, a injustiça social tem forte componente de injustiça histórica e, em última instância, de racismo anti-índio e antinegro (“Bifurcação na Justiça”, 10/6/08).

Em contraste com outros países (EUA), o Brasil apresenta um grau bem maior de miscigenação.

A questão é saber se esse maior grau de miscigenação foi suficiente para evitar a persistência de desigualdades estruturais associadas à cor da pele e à identidade étnica, ou seja, se o fim do colonialismo político acarretou o fim do colonialismo social.
Os indicadores sociais dizem que essas desigualdades persistem. Por exemplo, um estudo recente divulgado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República mostra que o risco de ser assassinado no Brasil é 2,6 vezes maior entre adolescentes negros do que entre brancos.

Falar em fraternidade no Brasil significa enfrentar o peso desse legado, grande desafio para um país em que muitos tomam a ideia de democracia racial como dado, não como projeto.

Mas, se o desafio for enfrentado pelas instituições sem que se busque diluir o problema em categorias fluidas como a de “pobres”, o país caminhará não só para a consolidação de uma nova ordem constitucional, no plano jurídico, como também para a construção de uma ordem verdadeiramente pós-colonial, no plano sociopolítico.

Ao estabelecer um sistema de ações afirmativas para negros e indígenas, a UnB oferece três grandes contributos para essa transição.
Em primeiro lugar, o sistema de educação superior recusa-se a reproduzir as desigualdades que lhe são externas e mobiliza-se para construir alternativas de inclusão de segmentos historicamente alijados das universidades em razão da cor da pele ou identidade étnica.
Segundo, a adoção dessas alternativas não acarreta prejuízo para a qualidade acadêmica. Ao contrário, traz mais diversidade, criatividade e dinamismo ao campus ao incluir novos produtores e modos de conhecer.

Terceiro, apesar de levantarem reações pontuais, como a do DEM, ações afirmativas baseadas na cor da pele ou identidade étnica obtêm um elevado grau de legitimidade na comunidade acadêmica. Basta ver como diversos grupos de pesquisa e do movimento estudantil se articularam em defesa do sistema da UnB quando ele foi posto em causa.

Para o estudo das reformas universitárias, é fundamental que o programa da UnB possa completar o ciclo de dez anos previsto no plano de metas da instituição.

A resposta a ser adotada pelo STF é incerta. O tribunal poderá desprezar a experiência da UnB sob o receio de que ela dissolva o mito de um país fraterno, porque mais miscigenado do que outros. Mas o tribunal também poderá entender que o programa da UnB, ao reconhecer a existência de grupos historicamente desfavorecidos, é, ao contrário, uma tentativa válida de institucionalizar uma fraternidade efetiva. Somente a segunda resposta permite combinar justiça social com justiça histórica.

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS , 68, sociólogo português, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor, entre outros livros, de “Para uma Revolução Democrática da Justiça” (Cortez, 2007).

Matéria original

+ sobre o tema

3ª Marcha Incomode marca luta contra genocídio da juventude negra na Bahia

Chamar a atenção da população para as violências perpetradas...

Passagem de ônibus em São Paulo sobe de R$ 2,70 para R$ 2,90 em dezembro

De acordo com o prefeito Gilberto Kassab, cidade terá...

Fátima Oliveira: A capitania hereditária do Maranhão já deu até o que não teria de dar

Ana Clara Santos Sousa, 6, morreu sem acessar cuidados...

É um alento respirar democracia e derrotar o jaguncismo

Agosto se foi. Espero que tenha levado seus miasmas...

para lembrar

Ministra reúne reitores para discutir ações afirmativas no ensino superior

Encontro acontece hoje (30), no Espaço Porto Vitória,...

‘Desigualdade não serve mais a quase ninguém’, diz economista

Para Ricardo Henriques, atalhos da elite para driblar educação...

Edital 2010 Fundo Brasil de Direitos Humanos

O Fundo Brasil de Direitos Humanos disponibiliza recursos para...

Eventos paralelos à Rio+20 voltam seu foco para a questão social

Por: Manuel Pérez Bella. Rio de Janeiro, 15 jun...

Como pôr fim ao marco temporal

A tese do marco temporal, aprovada na Câmara nesta terça-feira (30), é ancorada em quatro pilares: genocídio, desinformação, atraso e inconstitucionalidade. Dos dois últimos, deve-se dizer...

8 de março e o Dia Internacional da Mulher

Eva Alterman Blay Professora Emérita FFLCH/USP 04/03/2023 E de repente é 8 de março novamente! O que fizemos nos últimos amargos 4 anos, como o comemoramos¿ Tenho múltiplas...

Política social do governo para mulheres fracassa

Por ignorância, incompetência, má-fé — ou tudo isso junto —, o governo de Jair Bolsonaro tem imensa dificuldade de acertar na política social. Por isso, para...
-+=