Kim Butler estuda os primeiros 50 anos vividos pelos negros após a alforria

Fonte: Folha Mais!

Publicado em:  06 de junho de 1999. Especial para a Folha, em Nova York.

 

Alvorada da abolição

A abolição, sabe-se, foi assinada em 1888. Pouco se conhece, no entanto, sobre o que aconteceu com os negros após a alforria. Parte dessa história está no livro “Freedoms Given, Freedoms Won” (Liberdades Dadas, Liberdades Conquistadas), lançado no ano passado pela historiadora norte-americana Kim Butler, 38. Embora o movimento negro seja um tema comum, Butler o pesquisa durante um período ainda pouco estudado: os primeiros 50 anos após a abolição, em São Paulo e Salvador.

 

Segundo Butler, professora da Universidade de Rutgers, em Nova Jersey (EUA), enquanto em São Paulo havia a busca por uma identidade negra, ou uma “política racial”, em Salvador predominavam as diferenças étnicas entre as diversas nações africanas, caracterizando uma “política cultural”.

 

Em São Paulo, havia nas décadas de 20 e 30 jornais como “O Clarim da Alvorada” e “A Voz da Raça” e até um partido político, a Frente Negra Brasileira, fundado em 1931 e fechado pelo Estado Novo, em 1937. Em Salvador, a luta era para ter direito a manifestações culturais e religiosas, como o candomblé e o Carnaval, com atuações diferenciadas entre as diversas nações africanas, como Angola, Jeje e Congo.

 

Natural de Nova York, Butler é a primeira de sua família que pôde sair do segundo grau para cursar a universidade. Ela “descobriu” o Brasil por meio de um curso de danças afro-brasileiras. Já cursando o doutorado, morou em Salvador durante um ano, entre 1991 e 1992, para onde voltou várias vezes. A seguir, a entrevista de Butler à Folha, feita em Nova York.

 

Folha – Quais eram as diferenças entre o movimento negro de São Paulo e o de Salvador?
Kim Butler – As diferenças, durante a Primeira República, eram de base histórica e demográfica. Em São Paulo, a discriminação contra os negros fez com que os afro-paulistas organizassem movimentos para remover barreiras raciais. Isso ajudou a solidificar uma identidade baseada em negritude, e dessa experiência surgiu o uso da palavra “negro” para se auto-identificar. A população afro-baiana, por outro lado, tinha uma longa tradição de muitas comunidades etnicamente definidas. Era mais difícil pensar em uma comunidade “negra” onde havia diversas comunidades -africanos e crioulos (negros nascidos no Brasil), malês e nagôs etc.
Além disso, eles também respondiam aos termos de sua discriminação, nesse caso, contra africanos e sua cultura. A participação de muitos afro-baianos no candomblé e grupos de carnaval africanos representou a resistência contra esforços para embranquecer Salvador. As duas cidades começaram tradições do movimento negro que duraram durante o século 20 no Brasil, e elementos de ambas ainda contribuem para dar forma às ideologias contemporâneas afro-brasileiras.

 

Folha – A Frente Negra Brasileira teve quantos membros?
Butler – Isso é difícil saber, não existe documentação. Além disso, havia entidades no interior de São Paulo que ouviram falar da Frente Negra, gostaram da idéia e resolveram colocar o mesmo nome. Por causa disso, provavelmente existiam Frentes Negras que a própria sede não conhecia. Mas o partido teve uma repercussão enorme na cidade de São Paulo, no interior de São Paulo, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul.
Folha – A Frente Negra Brasileira era pró-Getúlio?
Butler – Era, porque na época em que foi fundada, 1931, Getúlio Vargas estava no poder e grupos de interesse na sociedade brasileira eram convidados para registrar seus assuntos, para falar diretamente com ele. No mesmo contexto em que se criou a Frente Negra foi fundada a Associação Brasileira da Mulher e outras organizações.
Folha – No seu livro, a sra. insiste em que a experiência negra no Brasil tem de ser entendida dentro da diáspora africana. Em que isso modifica a abordagem?
Butler – Acho que, dependendo das perguntas, isso pode mudar o seu esquema teórico. Pelas questões que eu tinha, queria interpretar a história no contexto afro-atlântico, da diáspora africana. Também poderia ter interpretado exclusivamente na base nacional, mas eu quis entendê-la paralelamente a experiências semelhantes, a de outros povos negros da América e do Caribe.

 

Folha – Não há o risco de reduzir a especificidade brasileira?
Butler – Se isso reduz, não será naquilo que tem muita importância. Por exemplo, havia o movimento modernista de São Paulo na década de 20 e isso não tinha muita repercussão na vida dos negros paulistas que eu estava estudando. Eles tinham outras prioridades. Quando estou escrevendo uma história que tem a ver com a perspectiva deles em primeiro lugar, tenho de respeitar as diferenças. Dessa forma, aspectos que ficam ocultos se estudo somente a base nacional, posso pesquisar profundamente de outra forma.
Folha – De que maneira o movimento negro norte-americano influenciou o brasileiro?
Butler – Naquela época não havia muita relação, foi algo muito orgânico que surgiu da própria realidade dos negros brasileiros. Aliás, estes começaram a utilizar a palavra “negro” para se identificarem muito antes de o vocábulo se popularizar nos EUA. A palavra “black” como identidade só surgiu aqui nos anos 60. Foi portanto algo que começou lá no Brasil.
Folha – Por que o interesse entre os negros norte-americanos em estudar os negros brasileiros?
Butler – Porque são nossos primos! Tivemos nossa trajetória e vemos como seria a vida se o caminho fosse outro. Estudar essas pessoas, que têm uma cultura tão viva, uma tradição importante para esse hemisfério, é fascinante. Não há como resistir. (FM)

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