As lições do espanto

Por Sylvia Debossan Moretzsohn

O tamanho do estrago ainda está para ser dimensionado, mas o episódio em que o veterano jornalista Mario Sergio Conti comete um erro primário ao confundir um sósia com o técnico da seleção brasileira de futebol e pensa estar diante de um furo de reportagem representa, indiscutivelmente, um forte abalo no valor mais precioso que qualquer jornal pode ter: a credibilidade, ainda mais necessária na fluidez do mundo virtual em que passamos a viver.

Amplamente ridicularizado nas mídias sociais, o caso expôs pelo menos dois problemas fundamentais para o jornalismo: o tratamento privilegiado concedido aos medalhões, que não passam pelo crivo imposto aos demais repórteres, e a inabilidade da cúpula das redações em lidar com o erro, que em tempos de internet se espalha e se desdobra com uma velocidade assustadora.

A sucessão de equívocos, associada a um contexto desfavorável, leva a aplicar a este caso a metáfora do acidente de avião. Um acidente particularmente espetacular, pois foram dois boeings abatidos no mesmo dia: dois dos três maiores jornais do país viram-se repentinamente diante de uma situação inesperada, absurda, constrangedora. E custaram a reagir adequadamente, o que só aumentou a dimensão do desastre.

A história

Recapitulemos: no fim da tarde de quarta-feira (18/6), o colunista Mario Sergio Conti, ex-diretor de Redação de Veja e do Jornal do Brasil e atual colunista do Globo e da Folha de S.Paulo, embarca num avião da ponte aérea Rio-São Paulo e se depara com o que imagina ser o técnico Luiz Felipe Scolari e o atacante Neymar. Por sorte – ou azar – senta-se ao lado do suposto Felipão e começa a puxar conversa. No final, convida-o a participar de seu programa de entrevistas na GloboNews. O interlocutor ri, diz que está muito ocupado e lhe entrega um cartão com sua identificação, mas o jornalista entende como uma brincadeira, como se o técnico lhe estivesse indicando um sósia para o programa.

Em seguida, comunica-se com a direção de Redação dos dois jornais para vender o “furo”. Animados, os diretores repassam a matéria às respectivas editorias de Esportes.

Já é noite, todos estão ocupados com o fechamento do jornal e com o noticiário on line. A maioria dos repórteres que cobre regularmente a seleção estava em trânsito, após o empate do Brasil com o México.

A matéria é editada. O erro só é detectado horas depois. O Globo consegue substituir o arquivo enviado para a gráfica, mas só corrige a edição digital pela manhã. A Folha não tem a mesma sorte e é obrigada a descartar parte da edição – cerca de 70 mil exemplares –, impressa com o texto errado.

Ironias, ironias

Os dois jornais emitem uma lacônica errata em seus sites, informando que Conti se desculpava “pela confusão”. Ao mesmo tempo, retiram o link para a matéria citada. É o que dá margem a um intenso conflito de interpretações nas mídias sociais: muitos dos que tiveram acesso à reportagem a classificavam como crônica, plena de uma ironia não compreendida por editores e redatores, que teriam publicado a matéria sem a ler, ou sem a entender.

Uma colunista do Globo chegou a tripudiar sobre a possibilidade de “um ser humano razoavelmente alfabetizado” interpretar o texto de outra forma. Ironias são muito comuns em crônicas, inclusive em crônicas políticas, como estudou Tattiana Teixeira em sua tese de doutorado (“A ironia do efêmero”, 2003), mas exigem alguma inteligência para serem compreendidas. Como era mesmo inacreditável que um jornalista de tal projeção tivesse escorregado tão espetacularmente, e como ninguém quer passar por burro ou ignorante, muitos seres humanos mais do que alfabetizados fizeram coro. E perguntavam a quem criticava: vocês leram o texto?

Não, mas como seria possível, se os jornais o apagaram? Justamente os jornais que dizem ter como princípio levar o público a tirar suas próprias conclusões…

Foi necessário pesquisar no cache do Google para recuperar a matéria e recolocá-la em circulação nas redes. A polêmica se intensificou até que, no fim da tarde, uma reportagem do jornal gaúcho Zero Hora esclareceria tudo numa entrevista por e-mail em que o jornalista reconhecia ter confundido o sósia com o treinador.

Pouco depois, a Folha e, mais tarde, O Globo  finalmente saíam com uma entrevista na qual Conti dá basicamente as mesmas justificativas. Em todas, tentava a autoironia e procurava minimizar o ocorrido.

Ainda assim, houve quem continuasse a duvidar das explicações e apostasse em algo oculto em toda essa história absolutamente inacreditável.

Lidando mal com o erro

Em resposta ao Portal Imprensa, o diretor de Redação do Globo, Ascânio Seleme, disse que a matéria foi retirada do ar porque “estava errada”. Ponto.

Sempre a mesma justificativa, tão recorrente quanto equivocada, em casos semelhantes: pois, como deveria ser óbvio, a informação que cai na rede não pode mais ser ignorada, simplesmente porque o que cai na rede nunca mais se apaga, nem se controla. Então, a melhor maneira de corrigir o erro não é tentar eliminá-lo, mas assumi-lo e explicar o que ocorreu, da maneira mais clara possível, como sustenta a pesquisadora Lívia Vieira em sua dissertação de mestrado.

Não são os jornais que tanto falam em transparência?

Mas, não: tanto O Globo quanto a Folha pensaram que bastaria sumir com a matéria e publicar um lacônico pedido de desculpas.

As longas horas que decorreram entre a detecção do erro e a decisão de prestar os devidos esclarecimentos ao público favoreceram a criação de um clima de incerteza e especulação que só piorou as coisas. Chega a ser surpreendente que empresas jornalísticas tradicionais ignorem normas elementares do que, no mundo corporativo, se chama de “gestão de crise”. Cada minuto que passa só aumenta a ruína.

Lavando as mãos

A demora pode ter sido resultado da arrogância, como apontou a ombudsman da Folhaao comentar o caso em sua coluna de domingo (22/6): inicialmente, o “Erramos” publicado no site tentava sustentar a inverossímil versão de que o jornalista havia sido vítima de trote; depois, foi alterado para uma informação mais objetiva: “Felipão não falou com colunista da Folha”. No UOL, o título repetia a primeira versão do site da Folhae deturpava a situação – portanto, cometia outro erro – ao culpar a fonte: “Sósia se faz passar por Felipão”.

Só mais tarde saiu a entrevista com Conti, seguida da reprodução da matéria antes apagada. Tarde demais para desfazer o estrago. Além disso, como assinalou a ombudsman, o jornal omitiu o seu papel no episódio, deixando todas as explicações e pedidos de desculpas a cargo do colunista.

O Globo agiu da mesma forma, como se fosse possível eximir-se de responsabilidade. Na versão impressa, o título “Colunista entrevistou sósia achando que era Felipão” recebeu o chapéu “Viajando”, numa tentativa de suavizar, através do humor, a gravidade da situação. Pirou na batatinha, surfou na maionese – vejam só que engraçado.

Mas quem estaria “viajando”? Apenas o autor da matéria?

Que bela forma de lavar as mãos.

Arrogância e autoengano

Quando Mario Sergio Conti embarcou no avião com os sósias de Neymar e Felipão, a seleção estava de folga. Entretanto, não era crível que aquelas duas estrelas da delegação – ou quaisquer outras – fossem circular por aí em aviões de carreira durante a Copa. Além disso, O Globo havia noticiado que Neymar estava passando o dia com a namorada, num hotel em Santa Teresa.

O experiente jornalista, no entanto, imagina-se bafejado pela sorte. Não dizem que a bola procura o craque? O bom jornalista também é premiado com acasos, é o homem certo no lugar certo, tem nas mãos uma entrevista exclusiva e inusitada, no momento em que flutua no céu carregado de nuvens. Quantos elementos para explorar nesse furo de reportagem que lhe caiu no colo!

A arrogância leva à ilusão da infalibilidade e facilita o autoengano, esse fenômeno tão comum e tão angustiante, que nos estimula a descartar tudo o que abala as nossas certezas. Contra todas as evidências, tendemos a acreditar apenas no que queremos.

Equívocos em cascata

Por isso o jornalista não desconfia da falta de assédio dos demais passageiros nem acha estranho que, em pleno desenrolar da Copa do Mundo, aqueles dois ícones da delegação tenham viajado para gravar uma participação no Zorra Total, da Rede Globo. Se estivesse escrevendo um texto irônico, talvez não resistisse a um dos bordões mais famosos daquele programa: “Ai, como eu tô bandida!”.

Por isso interpreta como lhe convém a cena do cartão com o nome do sósia.

Se fosse ironia, aquela forma de arrematar o texto poderia significar uma reversão de expectativas. Um final inesperado, como num conto de Jorge Luis Borges.

Mas não, não era um conto de Borges. Era uma reportagem a sério, embora feita sem qualquer preocupação com a ética – afinal, o jornalista não se apresentou como tal, apenas entabulou uma conversa com um sujeito que ele tomou por outra pessoa, que por sua vez não sabia estar falando com um jornalista.

Pelo adiantado da hora, mas talvez principalmente por vir de quem vinha, não passou pela cabeça dos diretores de Redação de nenhum dos jornais a hipótese de contestar o texto, por mais inverossímil que fosse. Muito menos passaria pela cabeça de algum subalterno. O “aquário” mandou, publique-se.

Consumou-se, então, o que se poderia chamar de uma coletiva privação momentânea de sentidos, que precipitou o desastre.

Uma persona blasé

Toda Redação de jornal tem suas hierarquias. O corpo de reportagem não é homogêneo: repórteres mais experientes têm outro status e mais liberdade que os demais. Têm trânsito com a cúpula. Imagine-se então o que ocorre com um jornalista que, pelas posições de destaque ocupadas ao longo da carreira, virou uma grife: a tendência, com o tempo, é supor-se acima do bem e do mal e descartar qualquer crítica como coisa de recalcados, menosprezar o trabalho alheio, relacionar-se apenas com quem tem poder.

Uma estrela do jornalismo não se sente obrigada a se submeter àquilo que Bill Kovach e Tom Rosenstiel, num livro clássico sobre a profissão – Os elementos do jornalismo –, chamaram de “disciplina da verificação”: dedica-se a produzir “pensatas”, histórias espirituosas, que tantas vezes derrubam reportagens apuradas a muito custo pelo pessoal do chão da fábrica.

Uma estrela do jornalismo cultiva a imagem do intelectual implacável, que faz as perguntas que nunca ninguém jamais ousou, dispara críticas demolidoras, certeiras, e aponta o dedo a quem quer que seja, doa a quem doer.

Um jornalista assim autoconfiante não se engana: não cometeria um erro tão primário.

De repente o mundo desaba, mas nada é tão grave.

Em sua coluna inaugural no Globo, em outubro do ano passado, Conti escreveu um texto repleto de ironia sobre “os princípios do colunismo”. Um deles seria “adotar uma personadisplicente e blasé”. Seguiu-o à risca em seu pedido de desculpas: “Hoje eu queria ser sósia de mim mesmo”, “fiz um erro tolo”, mas que “não afetará a Bolsa, a Copa ou as eleições”. “Não prejudiquei ninguém, a não ser eu mesmo.”

“É muita modéstia”, afirmou, também com ironia, a ombudsman da Folha. “Faltou lembrar dos prejuízos materiais e do arranhão na credibilidade dos jornais, um ativo que não tem preço.”

Uma questão essencial como a credibilidade não poderia ser tratada com tanta ligeireza.

Tratamentos distintos

Mas então quem vai pagar o pato desse mico?

Imagine-se o que ocorreria se, em vez de um medalhão, fosse um simples repórter que tentasse vender uma história estapafúrdia como aquela. No mínimo seria questionado, mas muito provavelmente seria ridicularizado pela chefia imediata. E, na improvável hipótese de conseguir publicar o texto, seria sumariamente demitido depois de constatado o desastre.

Na Folha de S.Paulo, no início dos anos 1990, uma repórter cometeu um erro grave ao interpretar uma declaração do então ministro da Justiça de Collor, Jarbas Passarinho. Isso não lhe custou apenas o emprego, mas uma humilhante exposição pública, na retratação estampada na capa do jornal do dia seguinte.

Por muito menos, agora mesmo, há um mês, uma jovem jornalista da CBN que acumulava as funções de editora à noite foi demitida depois de um tolo equívoco na grafia do título de uma chamada para o site da rádio, ao fim de um dia particularmente exaustivo.

Os medalhões estão imunes a isso. No passado, as moçoilas de boa família que davam um mau passo ou se apaixonavam pelo rapaz errado eram despachadas para uma temporada na Europa. Ainda hoje, quando se desentendem com a direção ou quando cometem “erros tolos” de tamanhas consequências, as estrelas do jornalismo costumam passar um período sabático no exterior. Mudar de ares, pensar na vida, renovar as energias.

O troco

Um erro tão elementar e espantoso provocou previsíveis reações. Os que conviveram com o jornalista se animaram a relatar o quanto sofreram com suas avaliações sempre depreciativas. Especialmente os que eram jovens à época, em início de carreira, ainda inseguros e muito impressionáveis, disseram ter vivido momentos de terror.

Quem trabalha com esportes, um setor tradicionalmente considerado “menor” por quem se acha um intelectual do ofício, também aproveitou para dar o troco. Houve quem lembrasse de uma edição do Roda Viva, da TV Cultura, em que o jornalista, então âncora do programa, entrevistava o locutor Silvio Luiz e, logo no início do segundo bloco, afirmava que a imprensa esportiva era “fraca na apuração”. Foi em 2/4/2012. Hoje, soa como castigo.

Muitos, também, reagiram com o fígado: nessas horas, afloram o que aquele famoso deputado chamou de “instintos mais primitivos”. O escárnio e o deboche foram contestados por quem entende a necessidade de se manter um ambiente de respeito no momento da crítica: porque, afinal, todos cometemos erros e um erro não pode ser motivo de celebração.

A questão é saber se esse erro foi pedagógico, não só para seu autor mas para quem já inicia a carreira com o nariz empinado, achando que vai reinventar o jornalismo. E, também, para as próprias empresas, no reforço de seu controle de qualidade e na capacidade de lidar com erros.

As lições

Grandes jornais, respeitáveis revistas cometem erros enormes. Deixam passar fraudes: Janet Cooke no Washington Post, Jayson Blair no New York Times, Stephen Glass na New Republic. O El País, no início do ano passado, amargou uma avalanche de críticas por ter publicado na capa uma foto falsa de Hugo Chávez entubado numa mesa de cirurgia: faria sentido, o então presidente venezuelano estava em tratamento em Cuba, as informações eram raras e inconfiáveis, alguém apareceu com uma imagem e uma história verossímeis, o alto escalão do jornal certificou-se de que era tudo verdade. E não era.

O caso do sósia do Felipão não tem consequências políticas, mas é revelador dos procedimentos incorporados na Redação, onde se afrouxam os controles quando a informação vem de uma fonte aparentemente inquestionável. Diante do estrago, liga-se o alerta, repetem-se os conselhos típicos dos manuais: a necessidade de apurar, desconfiar, checar tudo rigorosamente com mais de uma fonte – tudo isso que todo mundo sabe, mas que é frequentemente contraditório com as condições de produção, o acúmulo de tarefas, o excesso de trabalho.

Não é difícil tirar lições de um episódio como esse. Difícil é aplicá-las. Não só num momento excepcional como o da Copa, em que os jornalistas vêm trabalhando semanas seguidas sem folga, no limite da exaustão, mas nesse contexto em que os jornais alteram suas rotinas, estendem a jornada, enfrentam a necessidade de atuar simultaneamente em várias plataformas, correndo – como sempre – contra o tempo.

Se esse episódio risível, ridículo, espantoso, chocante, puder produzir uma reflexão mais profunda sobre o processo de produção de notícias e levar os profissionais a cultivar um pouco de humildade, terá valido a pena.

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia(Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

Fonte: Observatório da Imprensa

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