Lima Barreto e o racismo do nosso tempo

Negro, morador do subúrbio, desleixado e contraditório: era assim que o próprio Lima Barreto se definia. Ignorado em seu tempo, o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) e Clara dos Anjos (1948) entrou para o cânone da literatura brasileira depois de muito tempo esquecido: neste ano, além de ser homenageado na FLIP, ele ganha uma nova biografia, com previsão de lançamento para junho: Lima Barreto, triste visionário, da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz.

No livro, Schwarcz investiga os motivos pelos quais Barreto ficou tanto tempo relegado ao esquecimento. “Deixá-lo no lugar de vítima é muito pouco”, disse à CULT na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP), onde apresentou trechos de sua pesquisa de uma década sobre o autor, na última segunda (8).

Nascido em 13 de maio de 1881, o autor era filho de ex-escravos, e vinha de uma família monarquista, protegida pelo visconde de Ouro Preto. Logo cedo, perdeu a mãe, Amália, para a pneumonia e, mais tarde, o pai, João Henriques, para a loucura. Antes disso, porém, Henriques se esforçou, com a ajuda do visconde, para dar ao filho uma educação de qualidade – fato decisivo para o nascimento do Lima Barreto ácido e crítico.

Desde o início de sua vida escolar, no Liceu Popular de Niterói, até sua matrícula na escola Politécnica do Rio, onde era o único aluno negro. “Pele cor de azeitona escura”, como ele mesmo se definia, Barreto sentiu na pele as consequências de ousar ser um homem negro ocupando um espaço completamente dominado por brancos – e via com desconfiança a própria Lei Áurea e a noção de “liberdade” que ela trazia: “Liberdade era uma palavra que eu desconfiava e não confiava”, ele registrou em um diário da época.

Como uma resposta à discriminação racial e à exclusão social sofrida dia após dia, Barreto escrevia sobre estes assuntos de forma dura em uma época em que ninguém estava disposto a falar ou ler sobre isso. A intenção do autor, segundo Schwarcz, era de fato incomodar: “Ele achava que os negros só poderiam ser socialmente integrados através da luta e do constante incômodo. Por isso, denunciava que a escravidão não acabou com a abolição, mas ficou enraizada nos menores costumes mais simples”. Para chegar à dose perfeita de incômodo, Barreto fazia uma literatura do “Rio de Janeiro alargado”: não falava apenas do centro da cidade, mas principalmente dos subúrbios e de seus habitantes; descrevia detalhadamente as estações de trem e os transeuntes, as ruas e os bares, os costumes e as tradições populares, as violências e opressões, deixando a burguesia branca de lado.

Em uma época de racismo exacerbado, porém, essa literatura combativa do autor não encontrava espaço, ainda mais porque Barreto também costumava tecer críticas à mídia: “Seu primeiro livro publicado, Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), era autobiográfico e trazia uma crítica feroz ao jornalismo da época”, lembra Schwarcz. E não era só a questão de raça ou a crítica ao jornalismo que permeavam a escrita de Barreto: crítico à República e à corrupção, tornou-se anarquista após a Revolução Russa, era defensor dos animais, crítico do academicismo e do feminismo vigente na época, pois considerava que o movimento não acolhia as mulheres negras. Barreto também odiava os bairros nobres do rio, detestava futebol e era absolutamente contrário à moda e copiar tudo o que vinha da Europa e dos Estados Unidos – e inclusive se recusou a participar da revista modernista Klaxon, em 1922, porque considerava-a uma cópia dos movimentos europeus.

Ele sofria tanto com a discriminação racial que tentou três vezes ingressar na Academia Brasileira de Letras, sem sucesso. Por causa de seu estilo peculiar e de sua coragem de falar de temas delicados, o autor acabou ficando preso entre o parnasianismo e o modernismo, sem que fosse encaixado em nenhuma das duas escolas: “Foi um autor muito incompreendido em sua época, tanto que demorou muito e ainda tem demorado para entrar no nosso cânone de autores”, diz a antropóloga.

Sem conseguir nem o reconhecimento que almejava nem o impacto e o incômodo que queria despertar, Barreto começou a beber. Alcoólatra, acabou indo parar no Manicômio Nacional, onde foi internado duas vezes – em 1914 e em 1918 -, mas nem por isso parou de lutar. Pelo contrário: ao perceber que no manicômio a população negra era abandonada quando já não podia mais ser explorada, decidiu escrever um livro sobre sua experiência ali. O resultado foi o inacabado Cemitério dos vivos (publicado postumamente, em 1953), “uma verdadeira análise de como os manicômios apoiavam as teorias darwinistas sociais e a falsa ideia de que a população negra seria uma ‘raça degenerada’”, segundo a historiadora.

Em toda a sua literatura, Lima Barreto esteve atento e militante, propondo assuntos de discriminação social e personagens negros, criticando a República e a hipocrisia brasileira e denunciando, inclusive, a violência contra a mulher. Exemplos não faltam: além de Recordações do escrivão Isaías Caminha, que ataca a imprensa, a autora destaca Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), que ela chama de “Uma espécie de Dom Quixote brasileiro, muito avançado para o seu tempo; uma crítica à mania de querer recriar um passado indígena misturado a um futuro progressista, o que leva o protagonista, Policarpo, a morrer desiludido, como o Brasil”.

Clara dos Anjos (1922) aborda o que é ser mulher, negra e pobre em um mundo patriarcal e racista: “Clara era o alter ego feminino de Lima Barreto: a menina dos subúrbios que sofre o que ele sabia que sofreria se fosse mulher”(no livro, Clara engravida de um rapaz branco e acaba tendo de criar o bebê sozinha). “O próprio Cemitério dos vivos é uma obra prima, na qual o autor se confunde com o narrador, Vicente Mascarenhas, e não dá para saber se é pela loucura ou se é intencional”, lembra Schwarcz.

Para a historiadora, Lima Barreto tem ainda muito a dizer ao nosso tempo, especialmente quando se fala em raça e gênero: “É um autor de muito alento para essa nossa agenda contemporânea neste momento em que a República vive uma crise tão forte, e que os nossos valores democráticos e direitos de cidadãos estão sendo colocados tão em questão”.

Foto: Reprodução/Revista Cult

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