Guerreiro Ramos: o personalismo negro

A recuperação do pensamento e da trajetória do sociólogo Alberto Guerrei-ro Ramos tem sido alvo de uma série de trabalhos recentes, sobretudo de-pois da republicação de seus livros mais conhecidos: Introdução crítica à sociologia brasileira ([1957]* 1995a) e A redução sociológica ([1958] 1995b).

Neste artigo, tratar-se-á de retomar essa preocupação geral desde um enfoque específico: a compreensão da práxis negra humanista de Guerreiro Ramos. É uma interpretação que busca compreender a originalidade de seu pensamento, a partir de duas tradições filosóficas marcantes de sua trajetória: a) a negritude francófona, em especial sartriana, conforme caracterizada em Orpheu negro (1948), que Guerreiro conheceu por intermédio de Ironides Rodrigues – intelectual do Teatro Experimental do Negro (TEN), do qual Guerreiro foi integrante entre 1948-1950 (cf. Barbosa, 2004); e b) sua heran- ça filosófica personalista e existencialista. Uma formação intelectual marcante de sua juventude, na década de 1930, que se manteve enraizada em sua visão teórico-política posterior (cf. Oliveira, 1995; Maio, 1997; Barbosa, 2004).

A hipótese que guia este artigo é que tal visão humanista do negro em Guerreiro Ramos pode ser compreendida como uma dialética da negritude, alicerçada sobre três prerrogativas complementares: a) a assunção da negritu- de pelo “homem de pele escura” (termo de Guerreiro), o niger sum (tese); b) a suspensão da brancura (antítese); c) uma compreensão humanística do valor objetivo da negrura e da luta negra (síntese)1. Trata-se de uma visão político-filosófica, aqui intitulada de personalismo negro, alicerçada na percepção de que, para o “homem de pele escura”, a luta humanista passaria, inevitavel- mente, pela assunção dialética de sua prerrogativa circunstancial como ne-gro, tido como o único caminho para que o “homem de cor” (termo também do autor) pudesse se elevar ao plano da pessoa.

Tratar-se-ia, em outras palavras, de uma experiência particular de auto-realização humana, em que o “homem de pele escura” concretizaria sua existência como ser potencialmente livre da unidimensionalização; em par- ticular, daquela advinda da identidade racial essencialista, reproduzida pe- los discursos e normatizações sociais que o teriam transformado em negro na história do Ocidente (cf. Barbosa, 2004).

Essa é uma visão humanista sobre o negro que Guerreiro expõe esparsa-mente, e, em geral, de forma implícita, em diversos escritos e notas da década de 1950, como “Um herói da negritude” (1952), “O problema do negro na sociologia brasileira” (1954a, em particular pp. 198-200), “O ne-gro desde dentro” (1954b) e “Patologia social do ‘branco’ brasileiro” (1955)2 e que é retomada em duas notas posteriores, escritas na década de 1970,em que comenta a pintura do seu amigo Abdias do Nascimento: “O mundo tribal de Abdias” ([1971] 1995) e “Nascimento artistic faith” [A fé artística de Abdias] ([1973] 1975).

A partir dessa compreensão dialética da negritude guerreiriana, intitulada personalismo negro, procurar-se-á mostrar, neste ensaio, como tal visão humanista do negro buscou responder a algumas questões canden-tes da práxis negra de ontem e de hoje, como por exemplo: a) como ponde-rar as afirmações de identidade nacional contra as variantes contrastantes de subjetividade e identificação étnico-racial?; b) como fundamentar a ação po-lítica negra sem uma percepção essencialista da mesma?; c) como conciliar tal visão política com a perspectiva multicultural? É a partir dessas questões e da citação de alguns dos textos referidos que se procurará mostrar, resumi-damente, a maneira pela qual o pensamento de Guerreiro se apresenta como práxis libertadora do negro no Brasil e no mundo.

Personalismo negro: humanismo e pós-colonialismo

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 2

O personalismo negro de Guerreiro Ramos tem um caráter humanista e existencialista que o predispõe contra qualquer forma de essencialização ou mesmo definição do que seja a pessoa humana. Não por acaso, o filósofo clássico do personalismo francês, Emmanuel Mounier ([1950] 1976, p. 18), fala do caráter indefinível da pessoa, pois só se poderia tratar como objeto aquilo que fosse exterior à nossa existência. Nesse sentido, Guerreiro se pronuncia diversas vezes defendendo o caráter indefinível não apenas da pessoa humana em geral, mas do próprio “negro”, como ser dinâmico e indecifrável. Esse é o sentido, por exemplo, de passagens como a seguinte, do ensaio “Patologia social do branco brasileiro” (1955), em que Guerreiro distingue entre as categorias negro-vida e negro-tema.

Há o tema do negro e há a vida do negro. Como tema, o negro tem sido, entre nós, objeto de escalpelação perpetrada por literatos e pelos chamados “antropólogos” e “sociólogos”. Como vida ou realidade efetiva, o negro vem assumindo o seu desti- no, vem se fazendo a si próprio, segundo lhe têm permitido as condições particu- lares da sociedade brasileira. Mas uma coisa é o negro-tema; outra, o negro-vida. O negro-tema é uma coisa examinada, olhada, vista, ora como ser mumificado, ora como ser curioso, ou de qualquer modo como um risco, um traço da realida-de nacional que chama a atenção.

O negro-vida é, entretanto, algo que não se deixa imobilizar; é despistador, profé-tico, multiforme, do qual, na verdade, não se pode dar versão definitiva, pois é hoje o que não era ontem e será amanhã o que não é hoje (Guerreiro Ramos, 1955, p. 215).

Nesse sentido, portanto, Guerreiro traz para a leitura de relações raciais e para a política negra uma prerrogativa humanista recorrente, em especial no campo filosófico. Trata-se de argumentação segundo a qual toda forma de classificação e identificação do homem é uma forma sutil de desumanizálo3. Todavia, uma dúvida persiste, irrequieta. Segundo essa tradição clássica, não seria o designativo “negro”, referido por Guerreiro, uma forma também sutil de desumanização do Homem? A resposta a essa pergunta marca o cerne da contribuição específica do personalismo negro para uma visão humanista dos problemas étnico-raciais.

Citou-se, de passagem, que uma das prerrogativas do personalismo negro seria sua percepção da assunção negra como caminho específico para o “homem de pele escura” alcançar o universal. Um exemplo explícito dessa visão de Guerreiro encontra-se na seguinte passagem do artigo “O problema do negro na sociologia brasileira” (1954), quando o autor polemiza com os “estudos tradicionais” que trataram do “problema” racial no Brasil:

Guerreiro Ramos: o personalismo negro, pp. 217-228

Em princípio, o negro, no domínio da sociologia brasileira, foi problema porque seria portador de traços culturais vinculados a culturas africanas, pelo que, em seu comportamento, apresenta como sobrevivência. Hoje, continua a ser assunto ou problema, porque tende a confundir-se pela cultura com as camadas mais claras da população brasileira.

Neste ponto, é oportuno perguntar: Que é que, no domínio de nossas ciências sociais, faz do negro um problema, ou um assunto? […].

Determinada condição humana é erigida à categoria de problema quando, entre outras coisas, não se coaduna com um ideal, um valor ou uma norma. Quem a rotula como um problema, estima-a ou a avalia anormal. Ora, o negro no Brasil é objeto de estudo como problema na medida em que discrepa de que norma ou valor?

Os primeiros estudos no campo trataram das formas de religiosidade do negro. Terá, porém, o negro, entre nós, religião específica? Objetivamente, não […].

Tem sido, também, considerada com freqüência a criminalidade do negro. Terão, porém, o negro e seus descendentes criminalidade específica? Objetivamente, ainda não […].

Por outro lado, careceria de base objetiva a afirmação de que o negro no Brasil manifestasse tendências específicas essenciais na vida associativa, na vida conjugal, na vida profissional, na vida moral, na utilização de processos de competição econômica e política. O fato é que o negro se comporta sempre essencialmente como brasileiro, embora, com o dos brancos, esse comportamento se diferencie segundo as contingências de região e estrato social. […].

Nestas condições, o que parece justificar a insistência com que se considera como problemática a situação do negro no Brasil é o fato de que ele é portador de pele escura. A cor da pele do negro parece constituir o obstáculo, a anormalidade a sanar. Dir-se-ia que na cultura brasileira o branco é o ideal, a norma, o valor, por excelência (Guerreiro Ramos, 1954a, pp. 190-191).

Nesse texto, ao criticar as correntes acadêmicas tradicionais quanto ao “problema” do negro no Brasil, Guerreiro exacerba seu ponto de vista, questionando todas as análises que procurariam algo específico ao negro, que não se restringisse ao fato de ele ter uma cor de pele mais escura, e, conseqüentemente, as decorrências psicológicas da existência dessa cor em uma sociedade colonial racista, cujo ideal valorativo seria o branco europeu. Em suas palavras, uma “sociedade europeizada”, mentalmente subserviente a padrões exteriores à sua comunidade.

Aqui se chega a uma reflexão interessante. Não tendo o negro brasileiro cultura, religião, território, língua ou aspectos diferenciais da vida social, qual seria o fator que condicionaria sua existência social como grupo étnico e/ou racial no Brasil? Aliás, uma referência corrente nos próprios artigos de Guerreiro. A hipótese aqui levantada, de acordo com o princípio do personalismo negro, é que essa aparente contradição na visão de Guerreiro se esclarece ao observar-se que, para o autor, a condição “étnica” do negro brasileiro derivaria de sua pertença a um grupo socialmente construído que, embora majoritário no país, possuiria uma identidade social dada pelo “Eu”, no caso, o “branco” brasileiro. Em outros termos, poder-se-ia dizer que, para Guerreiro, só existiria o “negro” no Brasil porque o “branco” o vê como racialmente diferente de si, mesmo quando perfeitamente identificado com aquele pela cultura, religião, território etc.

É nesse sentido que, para Guerreiro, a partir do momento que se passasse a considerar o negro como elemento “normal” da população brasileira, não haveria por que falar em “problema do negro”, visto que, para o autor, no Brasil, o negro é povo, para além de sua condição étnica produzida pelo “branco” brasileiro.

Desse ângulo filosófico-existencial e sociológico, a visão guerreiriana do negro e da negritude no Brasil está próxima daquela preconizada por Frantz Fanon, no célebre Pele negra, máscaras brancas ([1952] 1983). Ex-plicando: tanto para Guerreiro, como para Fanon, a condição “negra” não é uma existência racial objetiva, mas uma identidade socialmente construída pelo dominador, os europeus e seus descendentes. Entretanto, trata-se de uma identidade sem a qual tal homem – tido, então, por “negro” – não poderia alcançar sua humanidade plena. Para os autores, portanto, essa é uma condição circunstancial, que, apesar de sua inexora-bilidade, não deve fazer esquecer ao negro que ele é totalmente humano como ser biológico, embora apenas potencialmente humano como ser social. Em outros termos, poder-se-ia definir tal percepção, seguindo Homi Bhabha (1998), como uma vivência múltipla e ambígua da identidade, um “entretempo” que não estaria totalmente condicionado por nenhuma experiência fixa de subjetividade.

Dessa forma, portanto, o personalismo negro de Guerreiro, como discurso locado na ambigüidade intrínseca da identidade marginal – no caso, negra –, pode ser relido como uma prerrogativa pós-colonial, que busca deslocar o discurso ocidental naquilo que lhe é mais fundamental: o Homem. Trata-se aqui, não por coincidência, de uma percepção próxima às análises de Homi Bhabha (1998) em relação a Fanon, como autor pós colonial.

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Esse enfoque humanista – não essencialista – sobre o negro brasileiro

é uma das razões teórico-políticas que leva Guerreiro Ramos a destacar a

problemática inconsciente (em suas palavras, “psicológica”), em particu-
lar, da esfera estética, como enfoque analítico dos “problemas” e “solu-

ções” relativos à questão étnico-racial4

. Para o autor, essa é uma particularidade da forma de reprodução da dominação européia ocidental sobre as sociedades colonizadas, inclusive a brasileira. Entre outras passagens, Guerreiro demonstra tal preocupação em trechos como o seguinte, retirado do artigo “O problema do negro na sociologia brasileira”. Afirma ele:

As categorias da estética social nas culturas autênticas são sempre locais e, em última análise, são estilizações de aspectos particulares de circunstância histórica determinada. Tais categorias são assimiladas pelo indivíduo na vida comunitária. Aprende-se a definir o belo e o feio por meio da conveniência quotidiana, do processo social. Cada sociedade, na medida em que se conserva dotada de autenticidade ou de integridade, inculca, em cada um dos seus membros, pela aprendizagem, padrões de avaliação estética, os quais reforçam as suas particularidades. […]

Todavia, o processo de europeização do mundo tem abalado os alicerces das culturas que alcança. A superioridade prática e material da cultura ocidental face às culturas não européias promove, nestas últimas, manifestações patológicas. Existe uma patologia cultural que consiste, precisamente, sobretudo no campo da estética social, na adoção pelos indivíduos de determina-
da sociedade, de padrão estético exógeno, não induzido diretamente da circunstância natural e historicamente vivida. É, por exemplo, este fenômeno patológico o responsável pela ambivalência de certos nativos na avaliação estética. O desejo de ser branco afeta, fortemente, os nativos governados por europeus. […]

Ora, o Brasil, como sociedade europeizada, não escapa, quanto à estética social, à patologia coletiva acima descrita. O brasileiro, em geral, e, especialmente, o letra- do, adere psicologicamente a um padrão estético europeu e vê os acidentes étnicos do país e a si próprio, do ponto de vista deste. Isto é verdade, tanto ao brasileiro de cor como ao claro. Este fato de nossa psicologia coletiva é, do ponto devista da ciência social, de caráter patológico, exatamente porque traduz a adoção de critério artificial, estranho à vida, para a avaliação da beleza humana. Trata-se, aqui, de um caso de alienação que consiste em renunciar à indução de critérios locais ou regionais de julgamento do belo, por subserviência inconsciente a um prestígio exterior (Guerreiro Ramos, 1954a, pp. 194-195).

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 2

A reversão desse quadro colonial, para o autor, dependeria da possibilidade do brasileiro de superar a dominação eurocêntrica que teria engendrado uma perspectiva racista e “imperialista”, diante da população mestiça e negra local. Esse é o intento do artigo “Patologia social do branco brasileiro” (1955). Posicionando-se na perspectiva do “negro-vida”, Guerreiro defende que o racismo seria fruto de uma visão alienante do país, em que o brasileiro teria introjetado e estaria reproduzindo uma perspectiva colonialista diante da população local, objetivamente mestiça. Tratar-se-ia de uma situação típica de “colonialismo interno” de base racialista, conforme tratada, recentemente, por exemplo, pelo sociólogo Aníbal Qui- jano, em termos de “colonialidade do poder” (1997; 2000).

Superar tal condição, nessa perspectiva, passaria, para Guerreiro, pela assunção da condição étnica (majoritariamente estética) da “negritude”, premissa da assunção provável do ser brasileiro autônomo. Esse seria o passo primordial de um processo mais amplo de auto-afirmação nacional que o Brasil estaria passando na década de 1950.

Para Guerreiro, essa assunção do Brasil real seria parte do fenômeno global de lutas pela autodeterminação das sociedades coloniais e capitalistas dependentes, contra a dominação dos centros capitalistas desenvolvidos.

Esse é o sentido que se pode observar de sua incorporação do conceito de negritude em seu livro clássico A redução sociológica (1958). Neste, quando o autor se refere à negritude, dá a ela um caráter universalista, como face do fenômeno global das lutas de libertação das sociedades coloniais ou dependentes para se tornarem sujeitos de sua própria história.

Para Guerreiro, tal fenômeno não deveria ser compreendido como um “nacionalismo xenófobo”, que levaria tais povos a um enclausuramento em relação ao mundo moderno. Pelo contrário, seria a reivindicação destes de participar dessa universalidade moderna desde sua auto-afirmação particular: econômica, cultural, política, étnica etc., exprimindo, assim, sua legítima pretensão de realizar sua plenitude como “personalidade cultural” do mundo (Guerreiro Ramos, 1995b, p. 49). Uma expressão de evidente tendência personalista que, para o autor, passaria, inevitavelmente, pela completa autonomia nacional.

Personalismo negro e multiculturalismo

A temática humanista do personalismo negro é retomada por Guerreiro em uma nota publicada pelo autor acerca das pinturas de Abdias do Nascimento, intitulada “Nascimento artistic faith (1975)5, desta vez conciliando-a como uma visão relativista de tendência multicultural. Trata-se de uma nota em que Guerreiro mostra rara disposição para explicitar suas perspectivas filosóficas e religiosas mais íntimas, referindo-se ao caráter espiritual de sua percepção humanista. Afirma o autor:

Há na arte de Nascimento um sentido restaurador que dá conseqüência ao significado contemporâneo da cultura negra no Brasil e em toda parte. Mais freqüentemente não se dá atenção à cultura negra, o que decepciona, uma vez que sua extensão equivale à cultura prevalecente no Ocidente. É uma negligência.

Por exemplo, os símbolos religiosos africanos são encarados como apenas significantes em uma perspectiva evolucionista, como se fossem um ponto datado no tempo, a se constituir puramente um sujeito de matéria ou estética para pesquisas históricas e sociológicas.

A visão artística de Nascimento confronta-se de modo decisivo com este pressuposto e afirma que os símbolos religiosos podem diferir no tempo e no espaço, mas que a experiência humana que eles expressam é basicamente idêntica. Assim, a verdade dos símbolos religiosos africanos não é menos válida que a verdade dos símbolos religiosos ocidentais. […].

Abdias acredita que nenhuma pessoa e nenhuma raça específica deve ser destituída de suas características para merecer as prerrogativas do universal. Como negro, e porque o negro tem sido o ser mais destituído dos últimos séculos, Abdias fez de sua missão tentar descobrir e explorar maneiras de trazer ao fluxo principal da História da humanidade aquilo que tem sido excluído. Assim, ele aceita sistematicamente e profundamente a sua condição circunstancial como uma perspectiva concreta sob a qual se pode alcançar o eterno.

O divino, a beleza, podem ser encontrados na negritude, onde convencionalmente se enxerga a degradação. Mas o fato de a arte de Abdias ser verdadeiramente uma arte negra deriva apenas do compromisso autêntico com um acidente biográfico. Seus símbolos visam ao que está além da negritude, da brancura ou de qualquer contingência, e dizem que todos os homens podem ser reunidos na base de uma herança divina comum (Guerreiro Ramos, 1975, p. 3, tradução minha).

Nessa passagem, portanto, Guerreiro comenta o papel que a fé teria como caminho espiritual para a redenção humana, desde sua capacidade intrínseca de agir como parte de Deus e, conseqüentemente, libertar o espírito do atual mundo objetivado e convencional. O caráter espiritualista do texto revela, ademais, o fundo religioso de sua herança intelectual personalista e existencialista, advinda de sua formação cristã juvenil.

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 2

Tal genealogia, entretanto, não o leva a uma perspectiva unidimensional da espiritualidade. Pelo contrário, de acordo com os princípios do relativismo cultural multiculturalista, Guerreiro proclama que os espectros da divindade poderiam ser encontrados em diversas religiões, como, por exemplo, as religiões africanas enfocadas nas pinturas de Abdias. Nesse sentido, aliás, Guerreiro considera que Abdias segue o caminho inevitável de sua realização humana: assumir e transformar sua condição circunstancial (performa-ticamente, “o acidente biográfico”) em uma perspectiva concreta, sob a qual se poderia alcançar o Eterno. Essa é a proposição sobre a qual Guerreiro retoma o personalismo negro, reforçando-lhe, agora, seu caráter espiritual e universalista.

Desse modo, pois, em sua caracterização, a visão do personalismo negro de Guerreiro segue completa, alicerçada sobre uma nova compreensão da negritude – agora entendida, também, como assunção do significado contemporâneo da “cultura negra”. De fato, uma evidente percepção multiculturalista de mundo, tão cara às mobilizações negras desde as décadas de 1960-1970, em especial nos Estados Unidos, onde o autor se estabeleceu a partir de 1966.

Tal percepção, entretanto, como em seus escritos da década de 1950, não remonta a uma visão passadista e/ou essencialista da “cultura negra”. Fora a passagem citada, essa posição político-teórica do autor fica evidente em ou-tra nota, intitulada “O mundo tribal de Abdias” (1995). Nela, Guerreiro enfoca os quadros de Abdias interpretando-os como o ápice de sua trajetória de vida.

Tratar-se-ia, para ele, de uma destinação fruto de intensa elaboração pessoal, cujo cerne seria uma visão humanista de mundo, em que a desalie-nação do negro seria parte fundamental. Aí residiria, segundo Guerreiro, o “tribalismo” de Abdias: sua capacidade de se colocar no plano do universal desde a assunção contemporânea de sua circunstância específica; compro-metido, mas sem segregacionismos. Diz o autor:

Os quadros de Abdias abrem as portas de um mundo no qual o instinto e a razão estão reconciliados. Conduzem-nos para além do pesadelo da vida cotidiana e nos incitam a recapturar os talentos tribais. […] Esse tribalismo, porém, não representa o retorno a uma congelada etapa primordial episódica. Embora Abdias se apre-sente como artista negro, ele não alimenta a vã esperança de voltar ao passado, a uma falaciosa África original. Evidentemente, ele está comprometido com sua herança negra, porém recorre a ela para enriquecer sua experiência da história contemporânea.

Sua visão é tribal, não por ser exclusivista e segregacionista, mas por ser inclusiva e compatível com as propriedades do homem global de Marshall McLuhan – um verdadeiro cidadão deste nosso mundo. A arte de Abdias se impõe como uma característica autêntica da revolução negra de hoje. Como negro, ele se identifica com todos os esforços de libertação destacados por aqueles prejudicados pela escuridão da sua pele (apud Nascimento, 1995, p. 96).

Ao proclamar esse caráter humanista da luta negra de Abdias, Guerreiro destaca sua importância universal como parte da revolução negra mundial, caminho específico daqueles homens “prejudicados pela escuridão de sua pele”, contra a alienação geral do Homem. Nesse contexto, sem dúvida, o personalismo negro de Guerreiro revive com toda sua força teórica e prática, colocando-se como instrumento contemporâneo da práxis negra e, conseqüentemente, humana.

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Resumo

Guerreiro Ramos: o personalismo negro

Baseando-se em pesquisa recém-finalizada sobre a trajetória intelectual do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) (cf. Barbosa, 2004), este ensaio apresenta a filosofia política do personalismo negro, cerne do pensamento de Guerreiro Ramos acerca do negro brasileiro e mundial.

Ademais, tratar-se-á de estabelecer, sucintamente, a proximidade de tal visão humanista do negro com recentes perspectivas multiculturalistas e pós-coloniais, a fim de mostrar a contemporaneidade desta contribuição de Guerreiro Ramos à teoria social e à práxis dos movimentos negros.

Palavras-chave: Alberto Guerreiro Ramos; Sociologia das relações raciais; Multiculturalismo; Pós-colonialismo; Modernidade negra.

Guerreiro Ramos: o personalismo negro, pp. 217-228

Abstract

Guerreiro Ramos: black personalism

As a result of nearly a finished research about the intellectual performance of the sociologist Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), this paper envisages the political philosophy of black personalism.

This was the kern of Guerreiro Ramos thought about Brazilian and World-dimensioned Black. An attempt is made to connect this humanistic vision of Blackmen with recent multiculturalist and postcolonial visions, in order to point out the present day contribution of Guerreiro Ramos to social theory and praxis of Black movements.

Keywords: Alberto Guerreiro Ramos; Social relations sociology; Multiculturalism; Postcolonialism; Black modernity.

Muryatan Santana Barbosa, bacharel em história e mestre em sociologia pela USP, é, atualmente, professor universitário nas áreas de história e sociolo-
gia, com especialização em sociologia das re-
lações raciais e história da África. E-mail: [email protected].

Foto em destaque: Reprodução/ Irradiando 

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