Liniker é o momento: ‘Nunca estive tão segura, não preciso mais abaixar a cabeça. Onde não couber, vou sair’

Liniker está vivendo seu retorno de Saturno em sua melhor fase. Perto de completar 30 anos de idade e dez de carreira, tem seu mais novo álbum, Caju, como um grande sucesso nos streamings e em vendas de ingressos na turnê. Aqui, ela abre o coração sobre este momento

É final de inverno em São Paulo, mas o calor de 33 graus célsius não nega a crise climática. A atmosfera carregada de poluição colocou a capital paulista no ranking mundial de pior qualidade do ar. Assim, para proteger a voz, Liniker chega à nossa entrevista munida de soro fisiológico, descongestionante nasal e nebulizador. Ela vai tirando tudo de uma Gucci Jackie branca que combina com o look monocromático que está vestindo. Pelo acessório, é possível perceber o gosto da artista por moda. “Sou uma garota fashion. Então tenho um acervo de sapatos, bolsas e roupas, bem Carrie Bradshaw”, brinca.

A paixão por se arrumar foi herdada da mãe, que sempre amou calçados e de quem Liniker pegava saltos escondida para se divertir durante a infância – e depois devolvia tudo nas devidas caixas para não ser descoberta. Aquela menina envergonhada amadureceu e hoje dá lugar a uma mulher que se diz em sua fase mais confiante no trabalho e fora dele. “Nunca na vida estive tão segura com a minha produção artística. Isso me traz a um lugar com mais autoestima. No primeiro álbum, era uma Liniker tímida, frágil mesmo. Então é bonito ver a trajetória de quando comecei a compor para hoje e sentir que existe uma maturidade. Tem sido importante entender que não preciso mais abaixar a cabeça, ser validada, pedir licença para entrar. Onde eu não couber, vou sair”, conta.

Vivendo seu retorno de Saturno, Liniker diz: “Nunca na vida estive tão segura com a minha produção artística. Isso me traz a um lugar com mais autoestima” — Foto: Hick Duarte

O sorriso largo, a voz serena, os gestos suaves e o olhar terno de Liniker não transparecem arrogância. Pelo contrário, são doce como caju maduro. Seu mais novo disco leva o nome da fruta tropical, mas também virou canção, alter ego da artista e nome da cidade fictícia em seu imaginário musical. Logo no lançamento de Caju, foram 6 milhões de reproduções em 24 horas nos streamings. Treze, das 14 canções alcançaram o Top 100 da Apple Music Brasil e tanto o disco quanto a música homônima chegaram ao Top 1 do iTunes Brasil em apenas três dias. Os ingressos para o primeiro show da turnê esgotaram em uma hora e meia, sendo que as três apresentações inaugurais lotaram em 12 horas.

Se para muitas pessoas tais números são sinônimo de sucesso, para Liniker, as coisas têm um sentido mais profundo. “Hoje, a definição do sucesso tem sido eu ter orgulho do que construí e conseguir aproveitar isso sem me sentir culpada. Acho que é olhar para um disco que eu escrevi inteiro e tenho orgulho de ouvir. E não é uma egotrip, mas curtir o álbum porque eu amo e porque sei do processo todo que vivi, sei da minha trajetória musical até chegar aqui”, pontua.

Para Liniker, sucesso tem a ver com sentir orgulho da seus feitos — Foto: Hick Duarte

Quem ouve as falas certeiras e as canções de Caju, segundo álbum de estúdio de Liniker, pode se perguntar de qual fonte ela anda bebendo autoconfiança, segurança e autoestima. E a resposta é simples: terapia. “Estou chegando no oitavo ano de terapia. E este disco é sobre a quantidade de coisas que eu estava precisando dizer. Ele foi feito para mim. Caju tem sido um dos momentos mais felizes da minha carreira porque eu queria fazer um disco dançante, que eu me celebrasse. Um disco solar. É importante se celebrar sem culpa. Estou falando disso muito porque nunca experimentei algo assim antes, então parece até que fumei maconha pela primeira vez.”

A psicologia é apenas uma parte da equação do bem-estar de Liniker. Ela também se apoia na astrologia para conduzir seus caminhos. Intuitiva, como se autodenomina, a canceriana confessa que consulta os astros para datas importantes da carreira e da vida e se abstém quando os alinhamentos não estão bons. “Eu respeito, não faço algo importante se a data não é boa. Corro atrás da tecnologia que me é dada através da minha ancestralidade. Sou fiel aos avisos porque sempre fui intuitiva. Acho que sempre me respeitei muito nesse lugar de acolher o sentido das coisas”, diz.

Caju, inclusive, é nome também do alter ego de Liniker, com quem tem intercambiado características pessoais que busca para si, e fez questão de verificar a posição dos astros no nascimento dela. “A Caju, quando eu entendi a personagem, fui fazer o mapa astral. Ela é leonina, nasceu dia 19 de agosto. Tem uma autoestima desse aspecto que ela está trazendo para mim. A Caju não leva desaforo pra casa. Ela chega perguntando ‘você vai me buscar no aeroporto ou não?’ Se não, eu vou embora.”

Liniker se diz intuitiva e conta que fez mapa astral para seu álbum “Caju” — Foto: Hick Duarte

Além de olhar para a cartografia do céu, Liniker também é dedicada à sua espiritualidade e devota ao candomblé, religião que a acolhe e conforta nas horas de maior angústia, e vem com lastro familiar, já que sua bisavó era mãe de santo. “A fé sempre foi uma coisa que me moveu. Principalmente quando vim do interior para São Paulo, que foi um momento da minha vida em que passei muita dificuldade, passei fome, fui humilhada. Quando olho para dez anos atrás, e onde estou hoje – meu Deus –, sei que sofri pra conquistar o que eu tenho. Não tem como não me espantar com a mobilidade social que tive. Nada disso seria possível se eu não tivesse fé. E aí, a herança familiar do candomblé já era uma coisa que eu sabia que existia e comecei a cada vez mais procurar esse caminho de fé dentro de uma religião de matriz africana e comecei a me cuidar, me tratar e esse ano iniciei, ‘fiz o santo’ [ritual que estabelece relação entre o iniciado e o seu orixá]. Nasci na religião, que é um processo superbonito, pessoal, íntimo, restrito. Estou muito feliz”, declara.

Liniker conta que encontra no candomblé conforto, força e ancestralidade — Foto: Hick Duarte

Liniker nasceu e cresceu em Araraquara, interior de São Paulo, e foi criada pela mãe, ngela, com seu irmão, sete anos mais novo, sem ter contato com o pai. Mas ela contava também com a rede de afeto materna, cercada de tias e pela avó. ngela sempre gostou de música, chegou a ter uma banda de garagem e levava a filha para as rodas de samba rock. Liniker foi, assim, pegando gosto pela coisa e se formou em Artes Cênicas antes de vir para a capital paulista.

Pró-Amor

Se a fé religiosa acolhe e move Liniker, a fé no amor também é outro motor em sua vida. “Eu sou pró-amor. Não consigo nem pensar na ideia de que não vai acontecer. Acho que sou tão a fim disso, tão fiel à ideia de querer uma relação. E não é querer qualquer coisa, mas é porque acredito muito que isso me transforma, então não consigo imaginar a possibilidade de não ter. Pode ser que não seja agora, pode ser que seja, mas uma hora vai ter que ser”, fala em tom profético.

Liniker não perde a fé no amor. “Uma hora vai ter que ser”, fala em tom profético — Foto: Hick Duarte

E, para descobrir o que Liniker busca no amor, basta dar play nas suas últimas canções. Aqui vai um spoiler: tem a ver com se sentir com a autoestima inteira, vista intimamente e humanizada, para além da artista em um pedestal. “Em ‘Tudo’ eu digo que ‘se eu for imensa pra você, eu sinto muito’. Porque eu estava cansada de me sentir diminuída. E chegar nos lugares de cabeça baixa, com medo de ser alta, me colocar num lugar abaixo da pessoa, para que ela se sentisse com mais autoestima que eu, porque ela já me julgava por eu ser a Liniker. Tem isso também, né? Ah, você é linda, você é maravilhosa, mas você é a Liniker. Isso me desumaniza. A Liniker é meu CNPJ, mas também minha pessoa física, que ama estrogonofe, que adora dormir até tarde.”

A humanização pleiteada pela artista é frequentemente negada socialmente às mulheres trans, travestis e também a celebridades que, por vezes, são vistas como produtos em uma indústria inflacionada. Mas, pelo que parece, a arte musical tem a potência necessária para tirá-la dessa condição. “A música me faz viver com mais humanidade.” É também pelo ofício criativo que a artista tem enorme apreço, que a faz pausar e se encontrar presente em sua temporalidade. “O que mais me dá tesão em fazer música é o tempo. Acho que o tempo para poder produzir um disco, para entrar no processo criativo, ele é muito específico. Ele te permite parar, pausar as coisas e, de fato, ficar muito presente ali”, conta.

“Caju”, segundo álbum solo de Liniker, conta com faixas longas que transmitem a reflexão da artista sobre o tempo — Foto: Hick Duarte

A reflexão sobre o tempo está muito viva em Caju, que tem canções mais longas, algumas chegam a sete minutos de duração e o álbum todo tem quase uma hora e dez. Isso, em um mundo de faixas rápidas de TikTok. Não à toa, todo o processo de construção do disco foi tão precioso que Liniker decidiu transformá-lo em documentário. O projeto, que ainda não tem data para ser lançado, terá direção da baiana Safira Moreira, que ganhou o prêmio do Sundance Documentary Fund por seu documentário Cais, em agosto deste ano.

Dentre tantos feitos de Liniker, um dos maiores marcos de sua carreira foi ter se tornado a primeira artista trans a ganhar o Grammy Latino na categoria Melhor Álbum de Música Popular Brasileira com Indigo Borboleta Anil. Assim, ela explica sua relação atual com a expectativa do prêmio com seu novo trabalho. “O Grammy é tão grande e é uma coisa que mudou tanto minha vida que, às vezes, gosto de tratar como um colega e não como um melhor amigo. Tenho medo de achar que tudo é sobre isso – sem desmerecer a premiação. Gosto de dar a atenção que ele merece, mas entender que foi resultado de um trabalho. Vou mentir se disser que não tenho expectativa. Obviamente tenho, mas estou mais focada no processo criativo que tive que foi tão rico, tão maravilhoso, me trouxe tanta autoestima.”

Apesar de muito trabalho, turnê agendada, todo o sucesso do álbum novo e projetos por vir, Liniker conta ter realizado todos os seus sonhos a ponto de dizer, radiante, que precisa começar uma nova lista de desejos. “Esta semana aconteceu uma coisa importante. Comprei minha primeira casa. Estou feliz. Depois de dez anos (de carreira), sair do aluguel, ter uma casa que está com a minha cara, que tenha o meu tamanho. Era um sonho tão grande. Agora preciso refazer a minha lista de sonhos. Penso também não só enquanto uma pessoa preta, mas como uma pessoa trans que muitas de nós estão desabrigadas”, fala Liniker, exultante e reflexiva ao mesmo tempo.

Sonhar, para ela, é uma razão para viver. Afinal, quando questionada sobre seu maior medo, a resposta é clara: “Meu maior medo é não sentir nunca mais. Não acreditar mais nas coisas, parar de sonhar”, finaliza.

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