Adriana Graciano para o Portal Geledés
A coletânea Literatura e Cultura, organizada por Heidrun Krieger Olinto e Karl Erik Schollhammer e publicada pela Editora PUC-Rio em parceria com as Edições Loyola é fruto do aprofundamento dos temas debatidos no seminário Estudos de Literatura e de Cultura que ocorreu em agosto de 2002. O encontro, encabeçado pelos dois professores acima citados, inscreveu-se na área dos Estudos de Literatura, no Programa de Pós-Graduação do Departamento de Letras da PUC-Rio e objetivou fomentar novos diálogos entre os âmbitos literário e cultural a partir da reunião de vozes de estudiosos de Letras e de Antropologia.
A precisa enunciação dos organizadores na apresentação da coletânea merece ser destacada:
As questões abordadas sugerem a convergência tácita de diversas concepções de cultura a partir da idéia de sua dupla função de orientadora e tradutora de processos comunicativos, materializados em múltiplos sistemas simbólicos, convicções e valores, responsáveis tanto pela manutenção e reprodução de sistemas culturais e sociais quanto por sua constante transformação. (p. 7)
Portanto, é possível inferir uma conceitualização de cultura como saber coletivo elaborado por distintos processos de aprendizado e de comunicação demarcadores das realidades individuais. Tais proposições dialogam de modo retumbante com um âmbito igualmente intricado: a literatura.
O primeiro artigo é assinado por Jeffrey Schnapp, professor de Literatura Comparada na Universidade de Stanford onde ocupa a Cátedra Rosina Pierotti em Estudos Italianos e dirige o Stanford Humanities. Seu intrigante texto, intitulado Suor, foi inspirado por uma pesquisa realizada com o intuito de colher dados para a elaboração de um livro sobre a antropologia da velocidade.
A trajetória proposta pelo acadêmico é extremamente rica não apenas pelo caráter incomum e um tanto quanto perturbador do tema mas também e talvez principalmente pelas convergências e divergências com o contexto moderno que vão sendo e/ou podem ser descortinadas pelo leitor mais atento.
Há uma pletora de idéias e proposições que tangibilizam o objetivo original da coletânea: ampliar horizontes para novos debates. Neste contexto, gostaríamos de destacar alguns pontos basilares e curiosos do trabalho do professor Schnapp. Destacando o importante papel que a revista inglesa The Sporting Magazine, que circulou entre 1792 e 1836, desempenhou na transformação de atividades lúdicas em jogos orientados por regras, o autor esquematiza tais mudanças, desvela informações culturais interessantíssimas sobre o suor, além de dialogar com a contemporaneidade, como é possível constatar neste elucidativo trecho:
No momento em que começava a assumir a sua forma atual, o esporte foi se transformando num laboratório privilegiado para novos modelos de individualismo, fundados não nas classes sociais, mas na modificação e manipulação de corpos a partir de novos regimes de treinamento e nutrição, bem como em exibições de esforço individual do atleta. O suor ocupa um lugar de destaque dentro dessa nova cultura de esporte, como meio de realizar proezas físicas – é um componente básico do treinamento físico de animais e homens – e como prova de autenticidade: a prova de que o rendimento atlético é a expressão autêntica de um esforço heróico por parte do atleta/indivíduo. Na virada do século XIX, o suor, em outras palavras, torna-se intimamente ligado à ciência, como também aos dramas sublimes da vontade individual; é absorvido na nova estrutura da psicologia científica e da higiene, ao mesmo tempo em que se torna parte integrante da exploração da força e do limite do corpo individual. O suor passa a significar produtividade em um sentido social, bem como o excesso produtivo que é o individualismo moderno. (p.16)
Na segunda parte do artigo, o fascínio do professor Jeffrey Schnapp pelo tema é novamente evidenciado pela ampla e cuidadosa pesquisa. A partir de um recorte semiológico, a questão do suor é abordada em cinco âmbitos, a saber: o médico, o moral, o social, o místico e o objetivo, comentados a seguir.
Um dos aspectos mais curiosos e orientador da exposição sobre o suor médico terapêutico é a dicotomia suor bom/suor mau que é muito bem ilustrada através de citações ou referências filosóficas, literárias, históricas ou religiosas que emprestam ao texto um alcance notável.
O segundo domínio refere-se ao suor moral que será analisado a partir de duas referências bíblicas à transpiração: “Do suor do seu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás.” (Gênese 3:19). A outra alusão vem de Lucas 22:44 quando no Jardim de Getsêmane, Cristo “posto em agonia, orava mais intensamente; e o seu suor tornou-se como grandes gotas de sangue, que caíam sobre o chão”. Vale ressaltar o contraste entre as duas alusões uma vez que a primeira aponta para um destino de faina e infortúnio ao qual estará sujeito o homem após a Queda independentemente de seu caráter ou posição na sociedade enquanto o segundo trecho originou perspectivas filosóficas e religiosas segundo as quais o sofrimento e a dor traduzidos em suor possivelmente conduziriam a salvação e a bem-aventurança. As convergências com o contexto moderno são inegáveis: a estigmatização do suor e, por conseguinte, do trabalho braçal e suas repercussões na sociedade e o fenômeno dos atletas de Cristo, por exemplo.
O suor social ou subalterno representa a terceira esfera na análise do professor Jeffrey Schnapp. A idéia central, ou seja, o suor visto como índice de animalidade ou de classe social baixa, pode ser conferida no trecho abaixo reproduzido:
Numa relação tensa com a ênfase sobre a reconciliação do alto e baixo, do homem comum e do super-homem, efetuada sobre a rubrica do suor moral, a Idade Média continua, como na Antiguidade, a empregar o suor como indicador social negativo. (p.24)
As referências literárias comprovam e fundamentam a argumentação do estudioso. Diferentemente do suor social, o suor místico tem, obviamente, uma dimensão sagrada intrinsecamente ligada ao culto do sangue de Cristo. Aqui o texto dialoga muito sinergicamente com a teologia mística de Hildegard e com um trecho emblemático do Decameron, articulados e arrematados por um sutil toque de humor do acadêmico.
O último e quinto domínio no qual o suor transita como signo é o objetivo ou suor das coisas. Partindo do dado semântico de que os equivalentes latino e grego do vocábulo suor também incluem as emanações naturais tais como resinas, vapor, orvalho, neblina etc, o autor afirma que:
Isso significa que o suor estabelecia não apenas uma conexão potencial entre o mundo dos homens e dos animais como também entre a humanidade e o mundo das coisas. (p. 27)
A partir desta afirmação, o autor constrói um equilibrado argumento à luz da antropologia medieval, dialogando novamente com a teologia mística de Hildegard.
A trajetória proposta pelo texto termina em tom de questionamento e incompletude, apontando sugestivas direções de pesquisa e possíveis diálogos com outras épocas. Se uma das marcas do trabalho acadêmico de qualidade é provocar um grau de desnortemanento, então o ensaio do professor Jeffrey Schnapp se insere nesta categoria.
Indubitavelmente um dos pontos altos da coletânea Literatura e Cultura é o artigo de Júlio Diniz, O recado do morro – criação e recepção na música popular brasileira. O autor é professor do Departamento de Letras PUC-Rio, Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura.
A jornada se inicia com reflexões acerca de algumas formulações chave feitas pelo ensaísta e músico Luiz Tatit sobre a canção popular. O professor Júlio Diniz destaca e explica o conceito de sobremodalização como a “mecânica de persuasão tensionada entre os conjuntos texto/melodia e destinador/destinatário”. A seguir elucida a divisão (figurativa/passional/decantatória) apresentada por Tatit em sua conceituação destes processos persuasivos e articula uma equilibrada crítica ao modelo proposto, como é possível verificar no seguinte fragmento:
Constatamos o esforço de sua leitura e a importância de seu trabalho, construídos sobre exemplificações e demonstrações interpretativas bem documentadas. Observamos, porém, que a sua concepção semiótica da canção não problematiza a discussão de elementos fundamentais para a compreensão de sua condição de discurso cultural, como as variantes contextuais de produção e recepção, restringindo-se aos modelos estruturais de perspectiva lingüística. Os processos de persuasão presentes nas canções populares não são articulados à contextualização histórica de seus mecanismos de construção. (p. 122)
Na segunda parte de seu artigo, o professor Júlio Diniz elabora reflexões instigantes sobre o clássico texto do crítico italiano Umberto Eco, A poética da obra aberta. Seus argumentos e crítica são muito bem embasados, o que demonstra seu excelente instrumental conceitual e afinada capacidade analítica.
Dos diálogos acima delineados emerge a premissa básica do trabalho de Júlio Diniz, habilmente descrita na apresentação da coletânea:
(…) a música não pode ser compreendida somente como uma estética específica no conjunto da produção simbólica, e sim, como uma rede discursiva em interface com outros textos culturais, ampliando a sua comunidade de leitores e tematizando, no solo conflituoso do multiculturalismo, a sua (des)referencialização, (des)construção e fragmentação na discussão da atualidade. (p. 11)
O pressuposto é materializado através da poderosa voz de Mário de Andrade com quem o articulista trava um diálogo com nuances poéticas que se encerra literariamente com Guimarães Rosa em uma referência linda e delicadamente tecida com a questão fulcral do artigo, presente no título, e o conto rosiano que o inspirou:
O ouvinte refaz a história oral e sonora de sua própria coletividade, passando adiante o “recado do morro”, como no conto de Guimarães Rosa sobre o mito da gênese da canção popular. O recado que vem da terra é transmitido de boca a boca, de voz a voz, passa por sete personagens e chega até aquele que dá forma ao recado e se salva da morte, o cantor popular. (p. 128)
A jornada cultural/musical/literária prossegue com emocionadas alusões a Aniceto do Império e Clementina de Jesus e a relevância de seus saberes e fazeres artísticos.
A última parte do texto é dedicada à leitura crítica de uma canção composta por Gilberto Gil e Caetano Veloso em 1968. A composição é um espetacular poema concretista intitulado Batmacumba. A acuidade da análise proposta pelo professor Júlio Diniz é impressionante, partindo de uma leitura músico/material, ele mergulha no texto gráfico, apontando e explorando originais possibilidades de leituras musicais e iconográficas.
Além de dialogar com a estética tropicalista, o autor sinaliza convergências com a mitologia grega e com O nascimento da tragédia, primeira obra de Nietzsche em um texto habilmente tecido e articulado:
Nietzsche conclui que sem a tensão entre as duas forças, a apolínea e a dionisíaca, não haveria a superação do “aniquilamento”. A “embriaguez” de Dioniso contrapõe-se ao “sonho” de Apolo, a essência à aparência, a vontade ao fenômeno, a harmonia à plástica. O ritmo apresenta-se como elemento de confluência dessa tensão. (p. 132)
Gil e Caetano relêem, com a fúria dionisíaca e a plástica apolínea, a própria história dos mundos musicais: o Modal, o som monotônico dos “homens das primeiras eras” (Mário de Andrade), as batidas (bate macumba na tocada do ogã no atabaque) dinamogênicas do corpo que se movimenta diante do som; o Tonal, o som polifônico da melodia da modernidade, com seus símbolos grandiosos e seus mitos superexpostos, fazendo de Batmacumba o objeto Serial por fundação na música popular brasileira.
(p. 133)
Concluindo, além do valor acadêmico da investigação há-de se louvar e cantar a fúria dionisíaca – a força da metáfora justifica o plágio – da escrita de Júlio Diniz como outro elemento impulsionador de fruição. Um ensaio para ser aplaudido de pé.
Outro professor do Departamento de Letras PUC-Rio, Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura e pesquisador do CNPq é responsável por outro trabalho instigante que compõe a coletânea. Trata-se de Renato Cordeiro Gomes, autor de Literatura e resíduos utópicos: heterogeneidade cultural e representações da cidade.
Partindo da questão da heterogeneidade cultural, entendida como traço relevante da cultura contemporânea, o ensaísta mostra como este traço sofreu um golpe com a destruição das Torres Gêmeas em 2001. Renato Cordeiro Gomes ilustra seu ponto de vista expondo percepções oriundas de seu livro intitulado Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana em um diálogo com um conceito do antropólogo Teixeira Coelho:
Os acontecimentos do 11 de setembro visaram o símbolo central de um certo conceito de civilização: a idéia e a imagem da cidade (Coelho: 2002, p. 45), emblematicamente representadas pela torre, que, em sua verticalidade ascensional, conotando desafio e poder, é tópico incontornável na história da cidade, da cultura e da arte, que recorre a uma forma arcaica (vinda da imagem bíblica de Babel) que se tornou obsessão no imaginário urbano (Gomes: 1999, pp. 200-201). (p. 104)
O objetivo de suas observações introdutórias é pavimentar o caminho que conduzirá a uma discussão mais ampla e diversa sobre a problemática da heterogeneidade e, por correlação, da cidade moderna e pós-moderna. A empreitada é muito bem realizada, como veremos no decorrer desta resenha. Primeiramente, o leitor é conduzido a um passeio comentado pelas propostas da 25ª Bienal de São Paulo, mais especificamente pelo módulo Iconografias Metropolitanas e da exposição Century City realizada na Tate Modern em Londres. Os dois últimos pontos deste passeio comentado são o projeto Arte/Cidade coordenado por Nelson Peixoto Brissac e a exposição La ville: art et architecture en Europe – 1870-1993.
Constatamos a qualidade de seu trabalho e agudeza de suas interpretações embasadas por teóricos de quilate tais como Giulio Carlo Argan, Jean Dethier, André Malraux e Néstor García-Canclini. A polifonia resultante destas contribuições, muito bem articuladas no texto do professor Renato Cordeiro Gomes, propicia ao leitor uma variedade de possíveis direções analíticas, ampliando suas perspectivas de leitura do tema em questão.
Na segunda parte do artigo, o mergulho na cidade toma rumos mais literários propriamente ditos mas não exclusivamente. A trajetória inicia-se com o conhecido conto de Edgar Allan Poe, O homem da multidão (1840). A acurada análise de Renato Cordeiro Gomes parte da dicotomia legibilidade/ilegibilidade para orientar o leitor a acompanhar os passos do narrador pela cidade de Londres e simultaneamente pela tessitura do texto literário.
Há um diálogo bastante interessante proposto a partir de uma ilação de Walter Benjamin:
Nesta tarefa, revela conhecimento preciso dos elementos que compõem o movimento repetitivo das marés – “o mar tumultuoso de cabeças humanas”. “Para levar a cabo as novas experiências da cidade dentro da moldura das velhas transmitidas pela natureza” – afirma Walter Benjamin (1989, p. 226). Daí a metáfora do mar, das ondas, cunhada na analogia com as forças da natureza, com a qual o narrador nomeia a multidão que ele tenta ler pela forma exterior que o olhar registra. O investimento nessa leitura encaminha-se para a uniformidade dos grupos que são classificados e, por oposição, marcam a heterogeneidade, as diferenças (que também permitem classificar): uniformidade da indumentária, do comportamento, dos gestos: uniformidades heterogêneas entre si. (p. 109)
O percurso interpretativo prossegue com o crítico seguindo os passos do narrador que por sua vez persegue um velho que despertou sua curiosidade dentre os inúmeros transeuntes que formam a multidão. Essa sobreposição de olhares representa um dos momentos mais brilhantes da análise do professor Renato Cordeiro Gomes, construída sobre exemplificações e demonstrações interpretativas muito bem fundadas. Há-de se destacar também um instigante jogo exploratório das possibilidades de leitura das dicotomias superfície/profundidade, individualidade/coletivo e legibilidade/ilegibilidade.
A questão da intertextualidade é outro grande viés analítico pelo qual opta o crítico. Para dar cabo de tal proposta, enumera e transita por vários textos literários como por exemplo Les foules de Baudelaire, A alma encantadora das ruas (1908) de João do Rio, Visões, cenas e perfis (1918) de Adelino Magalhães, City of glass (1985) de Paul Auster, A tarde de um escritor (1993) de Peter Handke e A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro (1992) de Rubem Fonseca. Acerca desta última obra, o crítico nos oferece uma minuciosa leitura na qual explora magnificamente inúmeras noções relevantes, como por exemplo, o jogo intertextual com o conceito de flâneur encontrado no conto O homem da multidão de Poe:
O projeto de Augusto mantém simultaneamente o tom nostálgico e a desilusão pós-utópica, ao alimentar o desejo de tornar legível o espaço urbano, salvando em sua escrita as promessas de significação que a cena moderna permitia. Tentando reeditar a deambulação do antigo flâneur, Augusto anda nas ruas (atenção: não é pelas ruas!) de uma cidade sem aura, mas é acometido da nostalgia da aura e, por isso, aciona o imaginário de sua individualidade e o imaginário da cidade, encarado como patrimônio. Ao tentar resgatar resíduos de uma tradição, busca ressignificar a cidade em função de sua experiência pessoal. O escritor andarilho surge, entretanto, da cidade atual, contrariamente às forças de homogeneização social, e tenta, assim, recriar a paisagem cultural através da recuperação de resíduos utópicos. (p. 113)
O trecho destacado é duplamente importante pois, além da temática da intertextualidade apontada anteriormente, dialoga com enunciações teóricas propostas por Raymond Williams em Marxismo e literatura (1979). Segundo Williams, a noção de residual abarca as dimensões culturais originadas no passado (história familiar, cultural, memória) que agem sobre o indivíduo, definindo sua vida. Estes resíduos podem ser observados em atos subjetivos e culturais; para uma compreensão mais holística do processo cultural, o teórico propõe um tripé analítico para entendimento mais apurado das várias temporalidades marcadas pelo “residual”, pelo “dominante” e o “emergente”. O “emergente” sinaliza para o futuro enquanto que o “residual”, apesar de ainda atuar ativamente no presente, foi elaborado no passado, ou, nas palavras de Raymond Williams, os elementos residuais “parecem ter significação porque representam áreas da experiência, aspirações e realizações humanas que a cultura dominante negligencia, subvaloriza, opõe, reprime ou nem mesmo pode reconhecer” (1979, p. 125).
Obviamente tais construções teóricas nos remetem a uma das questões precípuas do ensaio, desvelada já no título Literatura e resíduos utópicos: heterogeneidade cultural e representações da cidade.
O trecho selecionado e abaixo reproduzido parece-nos particularmente significativo pois engloba análise literária em diálogo com a antropologia em um texto que salta da página na medida que provoca o leitor tornado andarilho no trajeto tornado possível pela leitura:
Mas a cidade desejada, imagem utópica, torna-se uma impossibilidade. Ele não se dá conta de que “narrar a cidade” – como assegura Canclini – “é saber que já não é possível a experiência da ordem que o flâneur esperava estabelecer ao passear pela metrópole do início do século. Agora a cidade é um videoclip: montagem efervescente de imagens descontínuas (…) saqueadas de todas as partes, em qualquer ordem” (1996, pp. 131 e 135). O personagem, ao contrário, tenta resgatar aquela antiga narratividade pelo viés nostálgico, experimentando, embora deceptivamente, resistir e perverter essa impossibilidade. Sua estratégia discursiva, em meio ao desencantamento do cotidiano de uma “cidade de ratos”, é apegar-se a resíduos utópicos, capazes ainda de dar sentido ao projeto do andarilho-escritor. (p. 114)
Na parte final do artigo, Renato Cordeiro Gomes aprofunda suas argumentações sobre a fragmentação da cidade e da cena moderna e seus reflexos em algumas obras literárias assim como no âmbito das artes plásticas. A variedade e a relevância das referências novamente evidenciam e aquilatam a qualidade do trabalho do ensaísta. Um verdadeiro tour-de-force.
Como sugestão, seria oportuno mencionar que o professor Renato Cordeiro Gomes revisitou o tema da cidade em um brilhante ensaio, sugestivamente intitulado Babel Midiática, e que foi apresentado ao Grupo de Trabalho “Cultura das Mídias”, do XVII Encontro da Compós, na UNIP em São Paulo em junho do corrente ano. O texto está disponível na Internet na revista compós (Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação). Destacamos a perspicácia e agudeza demonstradas na análise do filme Babel (2006), dirigido pelo mexicano González Iñárritu. Segundo o crítico:
No filme os conflitos não são neutralizados, mas, pelo contrário, potencializados, num mundo que se tornou uma imensa Babel, em que tudo se conecta, instantâneo. Filme sobre a globalização, choque de culturas, drama multicultural, histórias simultâneas, olhar diferente às barreiras culturais e de linguagem na era da globalização, dificuldades de comunicação foram algumas das expressões dos comentários que circulam pela Internet, lincadas de modo explícito ou implícito ao emblemático título, a menor síntese dos sentidos do filme, atualizando em diferença sentidos herdados de uma longa tradição que remete ao mito bíblico. (p. 9)
As convergências com o artigo Literatura e resíduos utópicos são flagrantes, abrindo para o leitor um portal de possibilidades interpretativas a ser explorado.
À guisa de conclusão desse breve trajeto, vale ressaltar o caráter subjetivo que pautou a escolha dos ensaios a serem incluídos nesta resenha. Todos os textos que compõem a coletânea têm atributos específicos e valor acadêmico inegável, oferecendo uma exposição de olhares diversos sobre o eixo literatura/cultura. É mister tecer elogios ao primoroso trabalho dos organizadores ao reunir um grupo de articulistas tão bem preparados e imbuídos de disposição para problematizar, relativizar e alargar nossos campos de visão sobre o diálogo literatura/cultura.