Longa-metragem documental junta história e arte de mulheres negras gaúchas no cinema

“Um Mergulho por Mares Ainda Não Navegados” é o mais novo projeto da historiadora, fotógrafa e pesquisadora gaúcha

A fotógrafa autodidata Irene Santos pretende evidenciar o trabalho de mulheres negras gaúchas no cinema nacional, desenvolvendo um longa-metragem documental, através do projeto “Um Mergulho por Mares Ainda Não Navegados”.   

“Assegurar o protagonismo honroso de mulheres e de homens negros no cinema nacional é um passo rumo à nossa inclusão e dignificação. Essa é a missão de cineastas negros e negras”, afirma Irene Santos, que é também licenciada em História.

Para isso, a fotógrafa busca compreender os paralelos entre as travessias realizadas pela atriz e cantora Luiza Maranhão, a Leolele Idaalinoino, considerada a “Deusa Negra” do Cinema Novo, e pela cineasta Camila de Moraes, que percorreram “os mesmos mares”.

“A ideia é registrar essas trajetórias como o ensinamento africano Sankofa, ‘olhar para trás para seguir adiante’, numa constante preservação de cunho histórico e registro de nossas memórias. É descobrir como essa travessia se deu e ao mesmo tempo se deixar navegar por esse mar de sentimentos e emoções até então desconhecido para uma grande parcela da população brasileira”, destaca Irene.

Contemplado no edital Criação e Formação – Diversidade das Culturas, uma parceria entre a Secretaria de Estado da Cultura (Sedac) e a Fundação Marcopolo, com recursos da Lei Aldir Blanc, o projeto está em processo de busca de material e depoimentos.

Em entrevista ao Brasil de Fato RS, Irene conta sobre o novo projeto e fala sobre sua trajetória e impressões.

“A ideia de registrar essas trajetórias como o ensinamento africano Sankofa, ‘olhar para trás para seguir adiante’, numa constante preservação de cunho histórico e registro de nossas memórias” / Divulgação

Confira a entrevista:

Brasil de Fato RS – Para começarmos, gostaria que tu nos falasse sobre o teu projeto “Um Mergulho por Mares Ainda Não  Navegados”. O que te motivou a realizá-lo, como está o processo, o destino dele?

Irene – Sou proponente do projeto, uma inspiração da cineasta Camila de Moraes, que estreou em 2017 e se tornou a segunda mulher negra no Brasil (a primeira foi Adélia Sampaio) a colocar um longa em circuito comercial e a primeira mulher negra a concorrer uma vaga para representar o país no “Oscar” de 2018.

A atriz, modelo e cantora gaúcha Luiza Maranhão, que completou 80 anos em 2020, e atualmente está radicada na Itália, estrelou clássicos do Cinema Novo: Barravento, O Assalto ao Trem Pagador, Ganga Zumba e a Grande Feira.

A partir da identificação dessas trajetórias, que, mesmo atuantes em décadas diferentes, é possível traçar um paralelo entre os percursos percorridos por Luiza Maranhão e Camila de Moraes, que tiveram suas vidas transformadas pelo fazer artístico da atuação com o cinema.

A intenção é compreender, no passado, como a travessia realizada pela “Deusa Negra” Luiza Maranhão (nome verdadeiro: Leolele Idaalinoino) é, hoje, inspiração para a cineasta Camila de Moraes percorrer pelos mesmos mares. Assim, “Mergulho por mares ainda não navegados”, mais que um resgate sobre personalidades que ajudaram construir o que identificamos como cinema brasileiro hoje, é um mergulho profundo nas origens dessas mulheres negras gaúchas que encontraram na arte o prazer em viver e atuar no audiovisual.

A proposta do filme é ter duas narrativas simultâneas. Um é o conjunto de histórias afetiva e familiares que serão pesquisadas para compreender os caminhos percorridos por essas mulheres. O outro é o contexto cultural de cada época e como os territórios por onde elas passaram influenciaram no seu fazer artístico. A ideia de registrar essas trajetórias como o ensinamento africano Sankofa, “olhar para trás para seguir adiante”, numa constante preservação de cunho histórico e registro de nossas memórias. É descobrir como essa travessia se deu e ao mesmo tempo se deixar navegar por esse mar de sentimentos e emoções até então desconhecido para uma grande parcela da população brasileira.

BdFRS – Gostaria que tu nos falasse um pouco da tua história, tua trajetória? 

Irene – Sempre trabalhei com imagens. O primeiro emprego foi num banco estatal onde trabalhei com fotolitografia. Depois de 11 anos, saí para montar um laboratório e estúdio fotográfico PxB, no centro da cidade. Aí trabalhei por sete anos. Em 1991 transferi o estúdio e o laboratório para minha casa e passei a fazer fotos para cirurgia plástica para cerca de 12 cirurgiões. Com o advento da fotografia digital e da internet, desmontei o laboratório PxB e criei a marca chamada “Vovónerd”, dedicada a aulas de iniciação à informática para pessoas idosas.

BdFRS – Teu projeto está sendo feito durante a pandemia. Sabemos que ela afetou drasticamente o setor artístico no geral. Como tu está lidando com essa situação, como ela tem afetado o teu trabalho, teu dia a dia? 

Irene – Para mim foi complicado enfrentar este momento, já que trabalho com pessoas dos chamados grupos de risco. Por outro lado o trabalho em ”home office” vem se tornando a “salvação da lavoura” para todos os autônomos como eu. Para o bem ou para o mal, a internet é meio de comunicação mais importante da História. Usada com criatividade pode salvar da ruína até os mais apavorados adeptos do “fica em casa”.

BdFRS –  Tu és historiadora, fotógrafa e pesquisadora. Como essas áreas se entrelaçam e qual relevância elas têm quando falamos de diversidade?

Irene – Sou licenciada em História e fotógrafa autodidata. Em 2004 fiz o projeto editorial do livro NEGRO EM PRETO E BRANCO-Memória fotográfica da população negra de Porto Alegre que, financiado pelo Funproarte, teve sua edição esgotada em três meses. Assim ficou provada a existência de negros honestos e trabalhadores na racista Porto Alegre, o que me guindou à confortável posição de editora Bestseller na cidade. A fotografia analógica garantiu a heroica resistência de uma “população invisível” e que corria o risco de ser eliminada dos anais da História da cidade.

Acreditamos que, assim que for produzido, este documentário poderá auxiliar na construção de uma memória sobre o cinema brasileiro e a presença de mulheres negras gaúchas atuantes nessa área. Assim, a todo tempo precisamos, toda a sociedade, refazer nosso olhar sobre determinados aspectos da história e da cultura afro-brasileira. Por conseguinte, refazer os modos como nos relacionamos entre nós construindo nossas referências. Deseja-se que o filme dialogue com pessoas de diferentes faixas etárias e classes sociais, mas principalmente negras e negros, haja visto que décadas e mais décadas de desinformação acerca da presença e da história do negro no Brasil fez com que o preconceito se impregnasse muito fortemente nas relações sociais, culturais e políticas.

“Em setembro de 2005 Luiza Maranhão completou 80 anos e pouco foi noticiado sobre a data” / Evandro Teixeira / Reprodução

BdFRS – Em novembro do ano passado, conversamos com a realizadora audiovisual Camila de Moraes, que afirmou: “O nosso desafio é conseguir combater o racismo para poder ter a mente sã e continuar produzindo. Quando a gente consegue combater o racismo a gente consegue formas dignas para produzir, consegue recurso financeiros dignos, a gente consegue ter um processo criativo digno, a gente consegue pagar os nossos profissionais dignamente”. De que forma o racismo interfere quando falamos na arte produzida por mulheres negras? Como superá-lo? 

Irene – Em setembro de 2005, Luiza Maranhão completou 80 anos e pouco foi noticiado sobre a data. Mesmo sendo mulher de beleza exuberante, sempre foi comparada com a atriz italiana Sophia Loren. Era como se dissessem que mesmo sendo negra não tinha traços negróides, que era bela como uma mulher branca europeia. Esse ranço racista e hollywoodiano foi responsável por transformar a negra Cleópatra na anglo-americana Elizabeth Taylor, de pele branquíssima e de inesquecíveis olhos de cor violeta.

O documentário, ao comparar as biografias de Camila e Luiza, provoca reflexão que também é uma maneira de manter vivo o nosso legado. Denunciar e enfrentar o racismo por meio do fazer artístico é uma forma válida de combate. Hoje em dia Luiza Maranhão, que atravessou o Atlântico nos anos 1960, encontra-se ancorada na Itália, enquanto Camila de Moraes permanece em solo baiano. E um dos nossos questionamentos é saber porque será que essas mulheres navegaram para outros mares além do Rio Grande do Sul.

BdFRS  – Qual a análise que tu faz da produção feita por mulheres negras gaúchas no cinema e que mudanças precisam ser feitas para democratizar  a produção e imagem de artistas e realizadores negros, negras, negrxs?   Como é que tu enxerga a importância da resistência, seja na arte, na militância ou mesmo no dia a dia?

Irene – Assegurar o protagonismo honroso de mulheres e de homens negros no cinema nacional é um passo rumo à nossa inclusão e dignificação. Essa é a missão de cineastas negros e negras. Se a Nova Realidade veio para ficar, a internet chegou junto com suas poderosas ferramentas de transformação de corações e mentes. 

A escrita do documentário terá uma forma diferente de contar e representar essas histórias, pois a intenção é conseguir propor ao espectador uma reflexão sobre o real, a metodologia utilizada será o desde dentro e desde fora.

Pessoas que estão inseridas nesse universo irão ser protagonistas dessa história. Do Cinema Novo ao Cinema Negro, como estratégias de luta e resistência para se manter atuantes nesse cenário. Nosso projeto foi desenhado para ser feito durante a pandemia, com a maior parte do trabalho realizado da casa de cada integrante da equipe, sempre que possível.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

+ sobre o tema

Vilma Reis toma posse como Ouvidora Geral da DPE

“Nas noites em que pacientemente cosemos as redes da...

Carla Akotirene lança “Ó Pa Í, Prezada” nessa terça em Salvador

Lançamento acontece em Salvador no dia 17 de março Enviado...

Coronel Helena dos Santos Reis: a PM que ela quer

A coronel Helena dos Santos Reis, 45 anos, toma...

Pretaria Blackbooks – Antirracismo por assinatura

A Pretaria Black Box entrega conhecimento para vencer o...

para lembrar

Pesquisa revela que mulheres negras estão fora do cinema nacional

Apesar de ser a maior parte da população feminina...

A mulher negra no cinema brasileiro: uma análise de Filhas do Vento

RESUMO  O artigo apresenta uma reflexão sobre a mulher negra...

Ator de Deuses do Egito detona filme e o racismo de Hollywood

O ator Chadwick Boseman (“James Brown”), que vai interpretar...

Jardim das Folhas Sagradas: Um cinema com a cara do Brasil

Jorge Portugal Deve estrear em breve o filme "Jardim das...
spot_imgspot_img

Clássico da infância, As Tartarugas Ninjas: Caos Mutante retornam aos cinemas com um resgate sutil da adolescência

Se você foi um jovem dos anos 90, certamente acompanhou as aventuras das Tartarugas Ninjas pela TV ou quadrinhos. Com várias versões e produções...

Spcine leva cinco cineastas paulistanos para apresentarem trabalhos no NewFilmmakers LA, nos Estados Unidos

Entre os dias 18 e 24 de setembro, a Spcine marca presença no NewFilmmakers LA (NFMLA), em Los Angeles, nos Estados Unidos. Focado em apresentar trabalhos inovadores de...

O peso de representatividade negra 

As Tartarugas Ninjas, famosa desde sua criação em 1980 com quadrinhos, desenho e até mesmo filme, aparece em 2023 com outra imagem, desdobramento e...
-+=