Luiz Gama, o abolicionista

Ele está ali no Largo do Arouche, no canto que confronta o encontro das ruas Jaguaribe, Vitória e do Arouche. O semblante é sisudo, a barba farta, o peito aparece envolvido num pesado jaquetão. A expressão, calcada numa foto de Militão Augusto de Azevedo, o primeiro fotógrafo a registrar cenas e gentes de São Paulo, não corresponde ao que se sabe dele. Era alegre e sem cerimônia. Segundo Raul Pompéia, o autor de ‘O Ateneu’, que foi seu grande admirador, ele tinha “um modo franco e descuidoso, com pretensões à brutalidade, e desmaiando em doçura insinuante, paternal”. O busto naquele ângulo do Largo do Arouche é do poeta, jornalista, advogado, republicano e abolicionista Luís Gama (1830-1882), o primeiro grande — enorme — líder negro de São Paulo.

Luís Gama nasceu em Salvador, filho de um português e da ex-escrava Luiza Mahin, nascida na Costa da Mina, e antes de chegar a São Paulo percorreu incríveis caminhos. Tinha 10 anos quando o pai o levou ao cais do porto e, conversa vai, conversa vem com um conhecido que encontrou por lá, de repente o menino se deu conta do que estava acontecendo: “Pai, o senhor me vendeu!”. Junto com outros escravos, foi embarcado no patacho ‘Saraiva’ e despejado no Porto de Santos, de onde seguiria a pé até Campinas. Mais tarde, em São Paulo, lavou, passou, engomou e serviu como sapateiro, mas ao mesmo tempo aprendeu a ler, tomou gosto, estudou e enveredou pelo exercício da advocacia, mesmo sem ser formado. Como advogado prático, ou rábula — a palavra não é bonita, mas é isso mesmo que ele era —, obteve a primeira grande vitória produzindo provas que o livraram da condição de escravo.

Luís Gama foi um campeão da verve a serviço da combatividade. Como poeta, especializou-se na sátira, ou nas “trovas burlescas”, como as chamava. Numa delas, atribuiu-se o apelido de “Orfeu de carapinha”. Noutra, jogando com a palavra “bode” no sentido de mestiço, escreveu: “Se negro sou, ou sou bode, / Pouco importa. O que isto pode?”. Como jornalista, tinha um lado de terrível polemista, cuja principal causa era a luta contra a escravidão, e outro de humorista, nos semanários ‘O Polichinelo’ e ‘O Cabrião’. Sua militância culminava na advocacia em favor dos escravos. Estampava nos jornais anúncio que dizia: “O abaixo assinado aceita, para sustentar gratuitamente perante os tribunais, todas as causas de liberdade que os interessados lhe quiserem confiar. Luís Gonzaga Pinto da Gama”. Centenas, talvez milhares de causas dessa natureza lhe chegaram às mãos, e muitas vezes ele teve êxito. Um de seus recursos era invocar a desmoralizada lei de 1831 que teoricamente abolira o tráfico interoceânico de escravos — a famosa “lei para inglês ver”. Se o africano fora trazido ao Brasil depois dessa data, a escravização era ilegal.

Luís Gama formou à sua volta uma volumosa corte de admiradores. Nela se aglutinavam os negros, os estudantes da Faculdade de Direito (entre os quais Raul Pompéia), a elite letrada, formada por escritores e jornalistas, e mesmo alguns membros da crescentemente poderosa elite cafeeira. Seu enterro, no dia 24 de agosto de 1882, foi uma apoteose que mobilizou toda a provinciana São Paulo. O cortejo teve, desde a Rua do Brás (a atual Rangel Pestana), onde Luís Gama tinha sua modesta morada, até o Cemitério da Consolação, um acompanhamento que incluía de negros humildes a um membro destacado da mais rica família do período, Martinico Prado. Seu túmulo ainda está lá, no Cemitério da Consolação, identificado por uma simples lápide: “Abolicionista Luís Gama, ✭ 21-06-1830 ✝ 24-08-1882”. No Largo do Arouche, sobre um pedestal que diz “Por iniciativa do progresso / Homenagem dos pretos do Brazil”, ele vela pela dignidade dos negros de São Paulo.

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