Luz e Sombra das Mulheres de Wakanda

“Okoye, a chefe das Dora Milaje, pode ser facilmente associada a Iansã, orixá senhora dos ventos e da guerra. Okoye foi fundamental no desfecho da batalha entre os exércitos de T’Challa e Killmonger pelo trono de Wakanda, certamente fazendo mulheres negras do mundo inteiro se sentirem fortalecidas quando viram o general W.Kabi e companheiro da guerreira rendido a seus pés, numa salutar reversão das assimetrias de gênero.” Viviane Pistache escreve na coluna de Tomaz Amorim sobre as mulheres no filme Pantera Negra.

por Viviane Pistache no Revista Fórum

Nesta semana, a convidada da coluna de Tomaz Amorim é Viviane Pistache, doutoranda em Psicologia pela USP e militante do movimento negro. No texto abaixo, ela aprofunda algumas questões da entrevista de semana passada e analisa de perto as personagens femininas do filme Pantera Negra.

Não seria exagero dizer que no dia 7 de fevereiro de 2016 Beyoncé congestionou o tráfego na internet do mundo ao lançar o single Formation no intervalo do Super Bowl, o espaço de audiência mais caro e disputado da TV norte-americana. O espetáculo suscitou uma avalanche de reações que vão desde a “revelação” da negritude da pop star, aos debates acalorados sobre a legitimidade política de um hit para mobilizar debates sobre questões históricas para os movimentos negro e o feminista. Tudo isso porque Beyoncé ousou beber nas referências discursivas e estéticas empunhadas pela juventude militante no Partido dos Panteras Negras Pela Autodefesa, do movimento Black Lives Matter e ainda fez ampla divulgação do manifesto “Sejamos Todos Feministas” da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie; provocando assim, aclamações fervorosas e pesadas críticas. Passados dois anos, o mundo do entretenimento vive outro abalo sísmico com o lançamento de Pantera Negra, dirigido por Ryan Coogler, que não por acaso, fez uso de uma fórmula bem semelhante à da Queen B: envernizou os discursos de raça e gênero com uma linguagem pop, garantindo o lacre político. De fato, ainda que a indústria cultural exproprie o fazer artístico no sentido de reduzi-lo a meros produtos comerciais; mensagens potentes podem eventualmente infiltrar nas brechas da maquinaria capitalista e contrariar as correntes que retificar valores racistas e sexistas. A despeito das cifras torrenciais e do sucesso de bilheteria em escala global, o filme Pantera Negra tem alargado as margens dos debates anti-racista e feminista, tensionando as comportas historicamente estreitas da grande indústria cinematográfica. Por mais que não tenha promovido o completo rompimento das barragens ideológicas, certamente causou inundações pelo menos nas estruturas da Marvel; pois foi eleito o trabalho mais politizado feito pela companhia em seus dez anos e dezoito lançamentos.

Divulgação

O filme não se fez de rogado na aposta de uma trama de alto teor político. A referência ao Partido dos Panteras Negras é explícita, como atesta o cartaz de divulgação que coloca Huey P. Newton, importante co-fundador do partido, entronizado ao lado de T’Challa/Pantera Negra (vivido por Chadwick Boseman), protagonista e rei do fantástico universo de Wakanda. Forjando uma linha histórica, é possível traçar continuidades entre o partido, o fenômeno Blaxploitation e o mais recente lançamento da Marvel. Blaxploitation foi um breve, porém intenso movimento concebido nas franjas do sistema hollywoodiano que revolucionou a história do cinema estadunidense na década de 70, quando o negro passou de assunto fundamentalmente estereotipado a sujeito de ação tanto nas telas quanto atrás das câmeras. Um expoente dessa grande safra é o Sweet Sweetback’s Baadasssss Song de 1971, produção independente de grande sucesso de bilheteria que ditou novos parâmetros para a indústria cinematográfica. O diretor Melvin Van Peebles ao fazer uma película sobre “o negro real”, obteve grande apoio do Partido Panteras Negras, que convocou militantes e espectadores a irem em massa para as salas de cinema prestigiar a obra. Seu filho, o diretor Mario Van Peebles, lançou em 2004 o drama/documentário How to Get the Man’s Foot Outta Your Ass, que mostra os bastidores da mais representativa obra da Era Blaxploitation. Somos agraciados com um primoroso documento que evidencia as estratégias de lutas cunhadas para que o negro pudesse, ainda que a duras penas, assumir não apenas a autoria de um filme, mas impulsionar um movimento fundamental que fez escola, apesar de efêmero. E Melvin Van Peebles foi realmente visionário ao estabelecer alguns postulados que garantiram o sucesso de sua empreitada: “Regra número um: Não haverá meio termo. Eu farei um filme sobre o negro real. Quero um filme que faça os negros saírem do cinema orgulhosos ao invés de temerosos. Regra dois: Esse filme tem que entreter como o Diabo. Regra três: Cinema é negócio.” O Pantera Negra do diretor Ryan Coogler certamente segue essa cartilha. Explorando rotas diaspóricas que interligam Oakland, berço do Partido, e Wakanda, fictício país africano, o filme fortalece rizomas que configuram a cartografia de políticas e afetividades negras.

E Wakanda por si é uma personagem que evoca a ideia de uma Mãe África como potência a salvo das garras do colonialismo. Camuflada sob as folhas de um suposto país de terceiro mundo, é na verdade uma terra afortunada cuja prosperidade deriva da abundância do Vibranium, o metal mais valioso do universo. Sem essencialismos ou exotizações, no solo de Wakanda florescem a um só tempo a tradição e a modernidade, garantindo um desenvolvimento orgânico que exala a mais refinada convivência entre ancestralidade e tecnologia de ponta; vida urbana e agrícola, vida (pós) humana e animal, o potencial para a paz e o conflito. As personagens nascidas em Wakanda ao fincarem raízes em seu solo, garantem a seiva para a sustentação subjetiva e moral, bem como ressaltam as qualidades da terra. A simbiose é de tamanha grandeza que as personagens, se preciso for, morreriam na defesa de Wakanda, conforme anuncia Okoye (vivida por Danai Gurira), a generala do destemido exército das Dora Milaje, numa cena épica que ilustra a força das mulheres de Wakanda.

Aliás, a construção das personagens femininas é sem dúvida um dos maiores méritos deste filme. Ainda que tenham sido moldadas por uma perspectiva masculina, estas personagens têm potencial para ser um divisor de águas nos filmes do gênero. Via de regra, nas sagas de ação derivadas ou não de histórias em quadrinhos, as mulheres são sistematicamente alijadas do núcleo da luta, ou representadas em batalhas que ressaltam suas curvas, derramando mais sensualidade que suor ou sangue. As mulheres de Wakanda não são hipersexualizadas, pois as convicções e estratégicas políticas, bem como sua força intelectual e física lhes imprimem consistência e profundidade. É justamente aí que reside a beleza destas guerreiras. E certamente o trabalho da figurinista Ruth E. Carter foi fundamental para a caracterização das personagens. A partir de uma pesquisa primorosa confeccionou trajes que coadunam perfeitamente com a personalidade de cada mulher na trama, além de favorecer a concepção de uma Wakanda que sintetiza aspectos fundamentais das culturas de distintos povos do continente. O filme é ambicioso na formulação de novas narrativas que desconstroem e superam os estereótipos sobre negritude e gênero que costumam transbordar na dramaturgia. Esta revisão e reinvenção simultânea do passado, presente e futuro faz pulsar o Afrofuturismo como conceito nuclear desta ficção. E assim por via indireta, o filme nos convoca a contemplar no horizonte histórico os traços do estrago causado por uma educação colonial. Conforme discursou o revolucionário primeiro-ministro de Granada Maurice Bishop, vítima de um golpe que posteriormente resultou na sua morte: “Talvez o pior crime que o colonialismo cometeu em nosso país, que na verdade cometeu em todas as ex-colônias, seja o sistema educacional. Isso porque aquele sistema era usado para ensinar ao nosso povo uma atitude de ódio a si mesmo, para fazê-lo abandonar nossa história, nossa cultura, nossos valores. Para fazê-lo aceitar os princípios da superioridade branca, destruir nossa confiança, reprimir nossa criatividade, perpetuar em nossa sociedade os privilégios e as diferenças de classe.”

Divulgação / Marvel

Apesar das adversidades, a resistência sempre teve morada permanente na história dos diferentes povos oprimidos. E se a educação serve como veículo para subjugação, também carrega a semente da transformação. Ou conforme indicou Fernando Cardenal, importante teólogo da libertação na Nicarágua: “Educação para a libertação significa pessoas trabalhando juntas para obter a compreensão e o controle das forças econômicas, sociais e políticas da sociedade de maneira a garantir sua plena participação de um novo país.” E na fictícia Wakanda a ciência e a tecnologia são as armas educacionais e econômicas habilmente manejadas pela princesa Shuri (Letitia Wright). Conhecedora de todos os segredos do Vibranium ela é uma das personagens mais geniais da trama. Sua força estratégica reside na capacidade de reabilitar a noção de Cibernética, conciliando o velho e o novo sentido da mesma. Derivada da palavra grega Kubernetica, cibernética significa num primeiro momento a capacidade de dirigir, guiar, governar. A partícula ciber perdeu o sentido de governo e passou a designar a possibilidade de viajar, bem como múltiplos espaços de redes de informática. Um ciberespaço que possibilita novos movimentos e localizações para a consciência. Infelizmente o filme abriu mão de dois aspectos poderosos da personagem que são melhor explorados na história contada por Ta-Nehisi Coates nas revistas em quadrinhos: Shuri chegou a ocupar o trono como Pantera Negra na ausência de T’Challa, ocasião em que Wakanda foi devastada por forças externas. Morta, vai à terra dos griots mortos, de onde é resgatada pela Rainha Ramonda, sua mãe. Ela volta com poderes de ser e des-ser pássaros. Tal como apresentada no filme, Shuri é uma grande cientista e uma guerreira que combate com as patas de pantera que ela construiu a partir do Vibranium, unindo tecido corporal e máquina, hibridizando-se. Quer seja como princesa pantera, mulher-pássaro que transita entre vivos e mortos, ou cientista-guerreira, Shuri pode experimentar a condição híbrida que a aproxima da noção de Ciborgue proposta pela teórica feminista Donna Haraway. No Manifesto Ciborgue a autora afirma que “um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção.” Importa ressaltar que o manejo de tecnologias psíquicas ou de práxis social pelas mulheres negras pode criar modos tanto efetivos quanto alegóricos de resistência. E assim, Shuri é responsável por uma metáfora poderosa para a noção de resiliência, quando criou um uniforme para o Pantera Negra que tem a capacidade de absorver a violência e transformá-la em força para autodefesa e ataque. No entanto, apesar da sua veia estratégica, Shuri apresenta traços de incongruência por fecundar um perigoso ovo de serpente. Não soa apropriado revelar tantos segredos do Vibranium justamente para Everett Ross (Martin Freeman), o agente branco da CIA que já estava de olho no metal. Numa boa tirada de humor Shuri salva Ross da morte dizendo que “estava consertando mais um branco”. Não duvido que seja possível curar um racista (vale lembrar que Ross acreditava piamente que Wakanda e os africanos fossem subdesenvolvidos); mas parece ingênuo demais apostar tão facilmente que Ross se tornou um aliado tão prontamente sem outras intenções dissimuladas. Na melhor das hipóteses, conforme definiu Donna Haraway, Shuri seja um ciborgue com traços de blasfêmia ou de ironia. Menos interessante seria se Shuri fosse apenas uma divertida criança prodígio com a consciência ainda por despertar, tal qual um Erê.

Divulgação / Marvel

E por falar em entidades, Okoye, a chefe das Dora Milaje, pode ser facilmente associada a Iansã, orixá senhora dos ventos e da guerra. De fato, a personagem eleva ao sublime as cenas de luta que o filme apresenta. Okoye foi fundamental no desfecho da batalha entre os exércitos de T’Challa e Erik Killmonger/N’Jadaka (Michael B. Jordan) pelo trono de Wakanda, certamente fazendo mulheres negras do mundo inteiro se sentirem fortalecidas quando viram o general W.Kabi (Daniel Kaluuya) e companheiro da guerreira rendido a seus pés, numa salutar reversão das assimetrias de gênero. Apesar de Okoye ter caído nas graças dos fãs, alguns aspectos da personagem merecem ser interpelados. Okoye é aclamada por sua valentia titânica na condução das batalhas diárias, a exemplo de milhares de mulheres negras na diáspora. Mas conforme alerta bell hooks no texto Vivendo de Amor, até que ponto esta representação da mulher negra durona não é adoecedor por reprimir emoções tais como o medo e a vulnerabilidade? Além disso, Okoye demonstra ser uma excelente guerreira na defesa do trono e do reino de Wakanda, com traços bem marcantes que atestam a firmeza do seu caráter e a tomada de posições bem apropriadas para cada conjuntura política. Mas essa perfeição tática pode em certo sentido, esvaziar sua condição de sujeito, transformando-a num simples dispositivo de guerra. Vale lembrar que muitos filmes de ação têm repetido exaustivamente que para lutar não há nenhuma necessidade de ser humano, qualquer criatura poderia ser transformada numa máquina de combate bem treinada. Por fim, é simplesmente lastimável que a Okoye não seja lésbica tal qual nas histórias dos quadrinhos.

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Por sua vez, a rainha Ramonda (Angela Bassett) parece ser uma personagem bem apropriada. Altiva, elegante, reservada, ainda que muito expressiva em cada sutil movimento de músculos da face, como ditam as regras de etiqueta da realeza clássica. Mas Ramonda tem também indisfarçáveis traços de Nanã em sua ambígua noção de justiça quando tenta burlar as regras do desafio pelo trono ou na sua ressaltada veia ancestral e maternal no manejo da erva e da neve para trazer T’Challa do reino dos ancestrais. Um ponto alto da trama certamente é quando a rainha sugere que sua nora Nakia (Lupita Nyong’o) se torne a Pantera Negra. Infelizmente essa possibilidade é atrofiada para que se dê o previsível retorno do mocinho. Uma pena, pois se o filme abriu precedente ao fazer uma acertada troca de vilão, por que não ousou um pouquinho mais e mudou de protagonista também?

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Com Nakia fecha-se o quarteto das mulheres fantásticas de Wakanda. Espiã, guerreira, deu o pontapé inicial no debate sobre a abertura política para que Wakanda saísse do privilegiado isolamento político em prol das populações negras na diáspora. Mas T’Challa, que é enamorado por ela, a escuta de fato somente após o duelo com seu antagonista Killmonger; que lhe escancara a importância de uma perspectiva política pan-africanista. E Nakia é a personagem que denuncia a nível internacional a precarização das condições de vida das populações negras sobretudo das mulheres, buscando fazer algum contraponto à tendência de se converter as políticas de migração, de combate à xenofobia e das violências de gênero, raça e sexualidade em agendas secundárias e menores. Diante da quase ausência das mulheres nos espaços de decisão e de poder, principalmente no campo da representação política formal, o filme poderia ter sido uma interessante ocasião para negritar a importância das mulheres dominarem as habilidades e os códigos políticos para se sentirem mais encorajadas a disputarem o processo; pois a maior presença das mulheres pode redefinir a gramática política, promovendo a configuração de novas formas de representações para além dos modelos formais; multiplicando as possibilidades de relações dialógicas entre sociedade civil organizada e Estado. Arriscando destacar alguns traços comuns entre a história das mulheres no Partido dos Panteras Negras no começo dos anos 70 e a participação política na fictícia Wakanda, é possível considerar que em ambos os contextos as mulheres negras eram maioria absoluta, vanguardistas na militância pela igualdade social e econômica, treinadas para luta armada e autodefesa; mas de igual modo tiveram a sua força subestimada dentro destas realidades. Vale lembrar que a lendária militante Angela Davis se desfiliou do Panteras Negras por não consentir com o profundo sexismo dentro do partido.

Considerando que historicamente a (sub) representação política das mulheres é uma questão grave em todo o mundo, o filme não ofereceu profundas contribuições para a construção de novos imaginários referentes à participação política das mulheres nas mais altas instâncias. Mas sejamos realistas, peçamos o (im)possível: uma mulher negra no trono de Wakanda, encarnando a Pantera Negra. Conforme sugere a feminista chicana Glória Anzaldúa, vamos jogar pela janela a humildade, generosidade abnegação; e tantas outras virtudes que nos empurram goela abaixo. Negar as ordens de autoridades estabelecidas, desafiar a soberania dos governos, pois a desobediência é a via para a ascensão da rebeldia desde a alma até a pele e a língua; ressuscitando assim a fera que habita as nossas sombras. Como incita o diretor mauritano Dramane Sissako em A Vida Sobre a Terra: “Não cruze(mos) os braços na posição estéril de um expectador”. Ainda que a classificação indicativa seja de 12 anos, Pantera Negra poderia ser um pouco mais poluído, com mais personagens “inapropriadas” (no sentido proposto pela feminista Anzaldúa) e relações menos pasteurizadas; do contrário Wakanda corre o risco de ser um projeto de país infértil que não gera uma criança sequer. Curiosamente, a infância em Pantera Negra está restrita à periferia de Oakland, dependente do programa de cooperação assistencialista desenhado por T’Challa.

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