Os discursos são antagônicos à prática política
Desde 1974 a esta parte, entre os discursos de Samora, Chissano e os recentemente tornados públicos por Guebuza, aquando de sua investidura e tomada de posse do seu governo (da Frelimo), não há diferença substancial de conteúdo, quanto às pretensões de organização burocrático-administrativa do sector público e comportamento dos dirigentes políticos, apesar de que a primeira República se assentava sob princípios de partido único… O que deve ser feito, agora e já, é sair-se da rotina de “boas intenções governamentais” para o “bom desempenho governamental”.
Primeira nódoa – Passam trinta anos que o Poder está nas mãos da Frelimo e, por extensão, de moçambicanos, depois de o mesmo ter escapado – de forma forçosa – das mãos da administração portuguesa – os colonizadores. A 20 de Setembro de 1974, e pela primeira vez, os moçambicanos ouviam a voz de Samora Machel, através da Rádio Moçambique, ontem Rádio Clube. O discurso incidiu-se muito sobre a tomada de posse do Governo de Transição que significou a transferência progressiva de poderes do Estado Português para a Frelimo. Segundo o documento intitulado A luta Contra o Subdesenvolvimento: Samora Machel, a independência de Moçambique destinava-se a liquidar a fome, a nudez e a falta de alojamento, bem como exigia o combate ao consumo supérfluo e ao esbanjamento. A Frelimo sensibilizou ainda aos moçambicanos e a comunidade internacional que a independência significava trabalho para o aumento da produção e produtividade. Por outro lado, permitia acabar com o desequilíbro entre a cidade e o campo, definindo a agricultura como base (de desenvolvimento) e a indústria como factor dinamizador do desenvolvimento. Na mesma altura, a Frelimo queixava-se pelo facto de ter herdado “uma situação difícil e grave do ponto de vista social, económico, financeiro e cultural, resultante de séculos de opressão e pilhagem colonial…” Para contornar tal “situação difícil e grave”, Samora dizia, entre tantas coisas, que há necessidade e exigência de os dirigentes no seu comportamento representarem os sacrifícios consentidos pelas massas.
No mesmo documento lê-se: “o poder, as facilidades que rodeiam os governantes podem corromper facilmente o homem mais firme. Por isso queremos que vivam modestamente e com o povo, não façam da tarefa recebida um privilégio e um meio de acumular bens e distribuir favores”. “A corrupção material, moral e ideológica, o suborno, a busca de conforto, as cunhas, o nepotismo, isto é, os favores na base de amizade e em particular das preferências nos empregos aos seus familiares, amigos ou à gente da sua região fazem parte do sistema que estamos a destruir”, frisa Samora. Estas todas intenções não passaram de politiquices de um grupo entusiasmado de ter derrotado o colonialismo. Cinco anos depois, senão seis, a Frelimo já andava frustrada com o seu próprio desempenho, razão pela qual, mais uma vez, adoptou estratégias de combate aos males que quando toma o poder pela primeira prometera combater, sem tréguas. Sucedeu, porém, que de 1980 a 1990, a Frelimo desencadeia, documentalmente, o que apelidou de “Ofensiva Politica e Organizacional” que visava, segundo a Sessão Alargada do Conselho de Ministros, realizada em 6 e 7 de Fevereiro de 1980, “criar as condições para que possamos fazer, efectivamente, da década de 80, a década da vitória sobre o subdesenvolvimento”. Para se chegar a esse objectivo, a Frelimo, identificara o que, até hoje, almeja atacar no sector público, nomeadamente a corrupção, o nepotismo, o burocratismo, parasitismo, espírito de rotina e todas as formas de divisionismo – racismo, o tribalismo e o regionalismo. Deixa-andar reconhecido pela Frelimo em 1985 – Nos documentos supracitados, a Frelimo afirmava categoricamente que os males no seio do Aparelho do Estado eram produto da influência da teoria e da prática pequeno-burguesas do regime colonial-fascista português.
Em seus discursos ideológicos, foi usando ex-colonialistas para encobrir a sua incapacidade de gestão de Moçambique. A proferir discursos destes, o partido no seu seio ia se corroendo de hábitos danosos ao Estado, pois, tal como observa Brazão Mazula, no seu livro Educação, Cultura e Ideologia – 1975-1985, à medida que os interesses das elites dirigentes se foram distanciando uns dos outros, entre 1977 e 1983, verificava-se coincidentemente o enfraquecimento constante do partido, em relação ao próprio Estado. Aquino de Braganca também se referiu a este “desmoronamento moral e silencioso” do partido. Assim, a operacionalização prática dos discursos ficou adiada. Nesse período de entusiasmo ideológico, ainda de acordo com Mazula, novas classes constituem-se no Aparelho de Estado e do Partido, na base de condição política, de privilégios políticos e económicos, no conjunto da sociedade. Nestas condições, as novas classes foram alargando o seu campo de pasto, onde se amarraram ao fenómeno cabritismo.
Essas atitudes e comportamentos da classe dirigente foram, evidentemente, inspirando, na forma de ser e de estar, quase todos os cidadãos – do Zumbo ao Índico e do Rovuma ao Maputo. Mazula, na mesma publicação, apoiando-se em Aquino de Braganca, revela que uma das grandes crises da Frelimo foi sempre que, apesar de gestos de autocrítica, evidenciada nos discursos presidenciais e de as intenções denotarem a existência formal de estabelecer o poder popular, elas nunca foram concretizadas. De acordo com De Braganca, essa crise se traduziu sempre pela “não coincidência entre as intenções e a realidade”. Não só Mazula e De Bragança fizeram críticas. Na 14 Sessão da então Assembleia Popular da República de Moçambique, em Dezembro de 1985, Graça Machel afirmava que “cresce uma certa falta de confiança do Povo para com o Governo, assente nas dificuldades enfrentadas”. Ela propôs, entretanto, que o Governo prestasse contas a Assembleia Popular. No debate, segundo notas da Tempo, os camaradas envolveram-se num levantamento dos problemas que grassavam o país, por um lado, e, por outro, depreciavam a moral e disciplina do partido. Sérgio Vieira subscreve Graça Machel, referindo que, funcionando as comissões da AP, verificar-se-ia a inspecção sobre o Aparelho do Estado, questão ainda levantada por Samora Machel. Na mesma altura, outra constatação é feita por Alberto Chipande, ex-deputado e ex-ministro da Defesa, nos seguintes termos: existe o espírito de deixa-andar (termo esse ressuscitado por Guebuza para a sua campanha eleitoral e escrito nos discursos de sua investidura) que se apoderou de vários responsáveis, o não funcionamento dos ministérios que infiltrados de candongueiros e o fraco trabalho político que aí se desenvolve.
Chipande, referindo-se a orientações do IV Congresso que não foram cumpridas, reconheceu, categórico: “nós conduzimos mal o processo”. Segunda nódoa – Joaquim Chissano é nomeado presidente da República em Novembro de 1986, depois do assassinato de Samora Machel, em Nbunzini, a 19 de Outubro de 1986, em circunstâncias, até aqui, não reveladas pelas autoridades moçambicanas. Em 1987, Moçambique introduz o Programa de Reabilitação Económica (PRE) e três anos depois aprova a Constituição de 1990. Esta advoga a chamada economia de mercado e iniciativa privada e alguns requisitos do catalogado Estado de Direito democrático. De 1987 a esta parte verificou-se que o governo da Frelimo permitiu, em grande medida, que uma minoria tivesse riqueza ostensiva e não criada na base de trabalho e honestidade humanas, num momento em que os valores éticos e morais das elites políticas da Frelimo entraram num autêntico fracasso e absurdo, em particular nas zonas urbanas. Porém, lembre-se que as elites políticas da Frelimo, logo após a independência e por causa da euforia da mesma, foram, grosso modo, depositários de valores, nomeadamente honestidade, amor ao trabalho, entre outros. Mais uma vez, em 1990, um discurso em cima dos acontecimentos é proferido por Mário Machungo, então Primeiro-Ministro, dando a entender a grande onda de desvios de riqueza nacional para caprichos de nepotismo, privilégio e ostentação exagerada e grosseira da tal minoria, por sinal, da Frelimo. “Certos grupos ou indivíduos do meio político e económico ostentam, nas grandes cidades, uma riqueza requintada, de ‘Primeiro Mundo’ , inexplicável à situação económica do país”, frisou Machungo citado pela Tempo. Estas notas de Machungo fazem-nos desembocar no antagonismo entre o que o Poder proclama para servir de normas sociais e o que grande parte dos indivíduos ligados ao mesmo fazem. Revela-se uma grande distancia entre os verbos, substantivos e adjectivos proferidos em prol do progresso humano e a realidade.
Em 2001, o ex-chefe de Estado moçambicano, Joaquim Chissano, lança a Estratégia Global da Reforma do Sector Público 2001-2011, em Maputo. Dentre tantos enfoques governamentais o documento incide sobre a corrupção no sector público e em outros actos corrosivos ao Estado. Numa das passagens o discurso diz: “A grande corrupção desvia, em benefício de poucos, os recursos que poderiam gerar riqueza e minimizar os efeitos da pobreza absoluta. Prejudica a imagem do país e compromete a credibilidade do nosso Estado a nível internacional. Toda e qualquer manifestação do fenómeno da corrupção deve ser combatida com igual vigor e combatida com indignação, intransigência e intolerância”. Todo este aparato de discursos presidenciais não foi seguido com exemplos. Com sinais de desvios de fundos a olho nu, – pelos diversos altos quadros dirigentes do Estado, nomeados por ele – caracterizado pelo tal cabritismo, Chissano, com todo poder que as disposições normativas do Estado lhe conferem, não foi capaz de sair da letra para a acção. Um exemplo flagrante que num país normal deveria ter-se tomado, no mínimo, medidas correctivas ou disciplinares, senão mesmo uma exoneração, é o alegado caso referente às bolsas de estudo de que se beneficiaram, sem direito, os familiares de Alcido Ngwenha, ex-ministro da Educação e ex-membro da Comissão Politica do partido Frelimo. O documento lançado por Chissano acrescenta: “todo o esforço empreendido no sentido de transformar o sector público num instrumento efectivo de melhoria da qualidade de vida da população, será inútil se não for atacado o fenómeno da corrupção com rigor e com todas as armas disponíveis”. Uma outra coluna de discursos está contida no Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA), 2001-2005.
No tocante ao combate a corrupção – mal social similar a cunhas, ao nepotismo, aos subornos e outros dessa raiz – o documento espelha intenções governamentais igualmente não cumpridas. O governo de Chissano prometeu, sem cumprir, no último quinquénio a “barragem à propagação da corrupção, sua redução substancial e controle da conduta dos agentes das instituições públicas…e sancionamento de actos de corrupção”. E, agora, Guebuza, que vai fazer? – 11 horas e 15 minutos. 2 de Fevereiro de 2005. Maputo- Moçambique. Armando Emílio Guebuza é investido a presidente da República. Do minuto 15 ao 16, jurava – diante do presidente do Conselho Constitucional, Ruy Baltazar, dos presentes e perante Moçambique e comunidade internacional – respeitar a constituição, dedicar as suas energias em prol do desenvolvimento de Moçambique, seus cidadãos e respeitar os direitos humanos. Na cerimónia fizeram-se presentes membros de órgãos de soberania nacional, corpo diplomático, chefes de Estados e de Governo pelo mundo fora, para além de populares e forte presença de membros e simpatizantes do partido no Poder. Entretanto, Afonso Dlhakama e a sua Renamo faltaram ao evento, que, em si, passou, substancialmente, do sentido político-partidário para o de Estado. Guebuza renova os mesmos discursos que os seus predecessores nos habituaram, há sensivelmente trinta anos. Por ocasião de sua investidura, Guebuza igualmente falou, entre tantas coisas, do burocratismo, o espírito de deixa andar, o crime e a corrupção e as doenças endémicas, como grandes obstáculos a transpor para que a marcha rumo ao desenvolvimento seja livre e desimpedida.
Estes discursos são os mesmos, desde Machel, passando por Chissano. E continuam, de forma monstruosa. Agora, que “tecnologias”, Guebuza (e seu Governo) usará para travá-los em cinco anos do seu mandato?