Médico pode se recusar a atender paciente por divergência política?

Pediatra que recusou atendimento a filho de petista levanta debate sobre ética em meio à crise política; para especialistas, houve discriminação

Por Débora Melo Do CartaCapital

No dia 17 de março, a pediatra Maria Dolores Bressan tomou uma decisão e enviou uma mensagem de texto para Ariane Leitão, suplente de vereador pelo PT em Porto Alegre.

“Depois de todos os acontecimentos da semana e culminando com o de ontem, onde houve escárnio e deboche do Lula ao vivo e a cores, para todos verem, eu estou sem a mínima condição de ser pediatra do teu filho”, escreveu, referindo-se ao caos político que se instalou no País após a divulgação de grampos envolvendo o ex-presidente e a presidenta Dilma Rousseff.

“Estou profundamente abalada, decepcionada e não posso de forma nenhuma passar por cima dos meus princípios”, continuou a médica, dizendo que declinava “em caráter irrevogável” da condição de pediatra da criança, que tem um ano e um mês.

Leitão levou o caso para o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), que abriu uma sindicância para investigar a conduta da médica. Para a petista, que foi secretária estadual de Políticas Públicas para Mulheres na gestão do ex-governador gaúcho Tarso Genro (PT), houve discriminação.

“É um caso de intolerância política que ultrapassou todos os limites. Quando as crianças começam a ser atingidas, realmente precisamos parar para refletir. A polarização ideológica, que deveria gerar um debate político, está gerando apenas violência, discriminação e ataques”, diz Leitão.

A decisão do Cremers deve se basear no Código de Ética do Conselho Federal de Medicina. O texto estabelece, no item 7 do capítulo 1, que “o médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje” – exceto quando não há outro médico e em casos de emergência.

Na mesma linha de raciocínio, o artigo 36 do capítulo 5 afirma que o médico pode “abandonar” o tratamento “ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional”.

O artigo 23 do capítulo 4, por outro lado, diz que é vedado ao médico “discriminar (o paciente) de qualquer forma ou sob qualquer pretexto”.

Para Marco Aurélio Guimarães, professor de bioética da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), qualquer que seja a decisão do Cremers deverá gerar um recurso da parte vencida, pois há conflito entre o código e a ética por si só. “Em teoria, essa médica pode recusar tratamento a quem ela quiser. Mas eu sinceramente acho uma atitude triste, porque de fato houve discriminação. É lamentável”, diz o professor.

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Paulo de Argollo Mendes, presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), saiu em defesa da pediatra. “Ela tem que se orgulhar” da decisão, disse Mendes em entrevista ao Diário Gaúcho, citando a “honestidade” da colega.

Para Rodrigo Bandeira de Lima, médico do Sistema Único de Saúde (SUS) no Recife e diretor de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, aqueles que defendem a conduta da pediatra partem de uma “interpretação bastante equivocada” do Código de Ética.

“Eu acho bom, normal e saudável que o Código de Ética permita a autonomia profissional. Mas o que ele permite não é a discriminação política-ideológica, o que ele permite é que o médico não seja obrigado a atender uma pessoa quando ele sente que não existe confiança, quando ele sente que não existe uma relação adequada para prestar cuidados de saúde”, afirma. “Eu não consigo imaginar a divergência político-ideológica como motivo para interromper um atendimento”, diz.

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Gabriela Rondon, pesquisadora e consultora jurídica doInstituto de Bioética Anis, vai além. Segundo ela, não é apenas o Código de Ética que veda a discriminação de um paciente, mas também a Constituição Federal – em seu artigo 3º, o texto diz que “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

“Da mesma forma que existe essa possibilidade de o profissional se recusar a realizar certos procedimentos, existe também um mandamento não só dentro do Código de Ética Médica, mas constitucional, ou seja, num nível superior ao código, que protege os cidadãos contra a discriminação”, diz Rondon.

“Então há limites. Do contrário, qualquer argumento de ordem pessoal poderia servir, inclusive outros que a gente já identifica mais claramente como discriminação. Isso nos parece um precedente perigoso”, conclui.

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