Marcha da Maconha: o ato de desobediência civil mais periférico do país

Esse texto está um pouco atrasado.

por Juliana Paula, integrante da Craco Resiste e do Coletivo DAR

Peço perdão pelo vacilo, mas é que muitas vezes é tão difícil escrever sobre o que realmente acreditamos e amamos que é preciso esperar.

Ano passado, nessa mesma época, escrevi um texto sobre a Marcha da Maconha de São Paulo pra dizer que eu tinha certeza que essa marcha poderia ser mais preta e mais periférica do que tava sendo. E que ela tinha muito potencial pra isso.

Disseram que tinha gente preta pra caramba, rolou uma pesquisa que deu uns 35% desse público na marcha de 2016, que teve pelo menos 30 mil pessoas marchando (prefiro os 42 mil, por motivos óbvios).

Achei um número expressivo sim, principalmente se tratando de um ato político que foi historicamente organizado pela esquerda de maioria branca e de classe média, esses roles que a perifa não cola fácil, não fica à vontade, não tem muito espaço de fala. É, o bagulho é loco. Um número bacana, mas ainda pouco.

Critiquei a ausência de uma maior representatividade preta e periférica na marcha, porque afinal as pautas de legalização da maconha e do fim da guerra às drogas é um assunto que nos atinge diretamente (geralmente com munição letal e com intenção de matar) e com frequência (uma frequência chata e assustadora também).

Mas, como diria Belo, “tudo mudou”

2017 foi o primeiro ano em que me comprometi, pelo DAR, a acompanhar as reuniões e tudo o mais que diz respeito à organização da Marcha da Maconha de São Paulo e, me aproximando dessa parte do rolê, percebi que o interesse em chegar pra além do centro, colar nas quebradas e pautar a guerra às drogas onde ela realmente vem fazendo muitas vítimas era uma preocupação constante e importante.

Priorizamos, colocando como pauta desde a primeira reunião, as atividades na periferia e foi aí que a coisa ficou preta! “Se eu te falar que a coisa tá preta, a coisa tá boa, pode acreditar!” (Sapiência neles!)

Acompanhei a organização das atividades na zona sudoeste, com pessoas que fumam um há cem mil anos e muitas nunca tinham colado na marcha. Esse rolê foi louco!

Uma das características da Marcha de SP é a autonomia e a organicidade, claro. Dessa forma, cada marcha que foi organizada na quebrada foi feita com a identidade e respeitando as especificidades da região que tava organizando. Na sudoeste, isso foi feito expressivamente pelo pessoal do Café Mesóclise, um cafezinho de vila, gerenciado por uma família tradicional maconheira, que é um ato de desobediência civil perene, que vem cotidianamente dizer pro mundo que autorização pra coffee shop é o cacete e que na quebrada é ação direta e nóis por nóis que faz as coisa acontecerem.

Sim, um oásis na periferia, de cultura, de política, de resistência e de amor pela planta mais consumida e mais perseguida desse mundão. Aliás, nisso a perifa e a Mary Jane tem muito em comum: ambas são exploradas e perseguidas de sol a sol por esse vasto mundo. E ambas são muito mais potentes do que sonha nossa vã filosofia.

E foi assim, com o Mesóclise e com a perifa que construímos a marcha desse ano: muitas mãos, muita vontade de fazer acontecer, muito envolvimento, suor e fumaça pro ar. Foi bonito demais!

A Marcha de São Paulo foi precedida das marchas periféricas e foi nessa participação da quebrada na construção do rolê que vimos a potência do que somos e do que podemos fazer. A perifa é que sabe desse corre, mais que ninguém. Aqui a guerra às drogas atinge geral e de todas as maneiras possíveis, o resultado é sempre o mesmo: mais um da Silva morto, mais um de Souza preso, mais uma dos Santos chorando.

Nas palavras de Laricat, que não colou na marcha desse ano porque trabalhou no sábado até as 19h =/:

“A minha primeira vez com a marcha foi no ano passado. Fui porque sou uma pessoa que não gosta de debater nada sem o conhecimento, e eu sempre estudei sobre a maconha e tal… Fui para ver como era e acabei gostando, porque ali só tem gente que não tá ali só pra fumar maconha, e sim pra lutar contra a violência nas comunidades, porque por mais que a pessoa não esteja fazendo nada, se é pego pelo PM sentado fumando um beck a pessoa é agredida, humilhada, ou até mesmo é forjada e vai preso por algo que não fez, então vi que não é só pelo fato de fumar e sim pelo fim dessa guerra… Eu adorei muito ano passado e esse ano eu não fui mas adorei também, porque eu ajudei com a organização e divulgação… Só de ver que foram 60 mil maconheiros a mais que no ano passado, eu me senti bem de ver que conseguimos aumentar isso a cada dia, mostrar que não são só os negros e pobres de periferia que consomem, e sim um grande público, de todos os tipos de pessoas, todas classes, e tal.”

É isso. A Marcha da Maconha conseguiu o que muita militância nunca chegou perto de conseguir e nem chegará: colar na perifa e deixar a perifa encostar, nas palavras do mestre Criolo, “colar sem arrastar”. Estender o debate e falar a língua de quem precisa participar dele, deixar de lado as falas complicadas e o pedantismo, deixar o protagonismo pra quem tem esse direito.

Resolvi perguntar pra algumas pessoas do Mesóclise como foi chegar junto da Marcha, ajudar a construir essa história. As respostas tão aí:

“Foi a minha primeira marcha e foi muuuuuuito boa (…) Não achava que era de playboy não.” (Simone)

“Quando eu fui pra marcha pela primeira vez, fui porque eu vi aquelas pessoas lutando por algo que eu também desejava, então eu tinha que ir. Agora, fazer parte da organização da marcha foi outra coisa que me deixou assim, maravilhada, porque foi bom demais, eu quero continuar e encontrei pessoas maravilhosas. Participar da organização pra mim foi um divisor de águas.” (Hulda)

“Eu deixei de participar das primeiras marchas, logo que fiquei sabendo que rolava, mais por falta de informação mesmo, quando ficava sabendo já tinha acontecido. E participar da organização, isso aconteceu logo depois da minha primeira marcha. Eu fiquei encantado com tudo aquilo que vi e resolvi que tinha que participar também, que tinha que estar junto. E, pra mim, não foi muita surpresa o tipo de gente que eu encontrei lá, porque esperava encontrar gente parecida comigo (…) Acho que me envolver com a organização da Marcha da Maconha foi uma das coisas mais importantes que já fiz na minha vida. Eu posso dizer que aquele clima de revolução da primeira marcha me seduziu.” (Carlão)

“Eu sempre tive o meu espaço, frequento desde o início, sou morador de periferia (…) e sempre vou frequentar (…) vamos lutar pelos nossos direitos.” (Dimitri)

“Acho que eu e a galera da quebrada a gente às vezes não tem nem vontade né mano (…) será que eu vou, vai ser legal, se vou ser bem recebido ou não, acho que a galera daqui às vezes não tem nem vontade, tá ligado, de colar, de se misturar (…) muitas vezes eu não tinha nem vontade de colar lá, ficar fumando ali no meio da Paulista, com um monte de playboy (…) acho que esse bagulho deve ser mó zoado, é isso que eu tinha na minha cabeça (…) agora já é um bagulho mais cômodo, mais família, mais rolê assim ó, você sabe que vai poder colar com seu brother, que vai ficar suave, tá ligado, todos os brothers são bem recebidos lá de boa.” (Michel)

Pra mim, Juliana, a marcha desse ano foi emblemática. Eu cheguei de metrô em cima da hora e o metrô tava repleto de gente que me representa, que vem de onde eu vim. E era muita gente chegado junta, fazendo festa, tirando selfie e ouvindo funk no alto-falante do celular. Legalizamos a maconha no metrô, na Paulista, na Brigadeiro e na quebrada. Soltamos fumaça na cara dos coxas e fizemos o maior e mais periférico ato de desobediência civil do Brasil. Ali naquele dia, naquelas horas, a gente foi livre, a gente teve direito ao nosso corpo, à nossa vida e às nossas escolhas. Porque na quebrada tentam tirar de nós o direito de ter ideais, de lutar pelo que acreditamos e termos sonhos, projetos de vida.

Eu me sinto grata hoje, enquanto escrevo esse texto, por fazer parte de uma militância que não exclui e que não quer falar por ninguém, uma militância que é antiproibicionista, fechada com a quebrada, preta e feminista. Porque a revolução será preta e feminista, ou não será.

Seguimos lutando por nós e pelas parceiras e parceiros. Enquanto a periferia estiver sangrando, continuaremos em luta!

Um agradecimento enorme ao Café Mesóclise, que construiu essa marcha e esse texto do meu lado. “É nóis por nóis, porque se não for assim, não tem como” (Emicida)

Juliana Paula, psicóloga e integrante da Craco Resiste

*O Geledés  Instituto da Mulher Negra tem uma parceria com a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD). Ambas plataformas debatem o tema de política de drogas a partir de uma perspectiva dos direitos humanos, de raça, classe e gênero.

 

 

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