No encerramento da COP30, em Belém, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, foi aplaudida de pé por vários minutos, se emocionando e emocionando a plateia internacional. A cena serviu como uma metáfora de esperança diante do gigantismo da carreira da ministra que nasceu em um seringal no Acre, como uma verdadeira filha da Amazônia, tornando-se um dos maiores símbolos da defesa da floresta e de seus povos.
Em cima de um caminhão de som e nesse mesmo clima de efusão, na quarta-feira 26, Marina surgiu diante de uma outra multidão, desta vez composta por 300 mil mulheres negras que vieram à Brasília para participar do Dia da Marcha das Mulheres Negras. Com um discurso contundente, Marina foi novamente ovacionada.
“Com grande emoção, alegria, compromisso e disposição de luta, estamos aqui reunidos. As nossas raízes vêm de lugares distantes. Nos porões, a contragosto, alojadas em lugares que nenhuma de nós escolheu ficar, nem nas senzalas, nem apenas fazendo os trabalhos que nos obrigaram a fazer. Mas, apesar de ficarmos nos piores lugares para morar, nas piores profissões para trabalhar, sem remuneração digna, sem respeito, sem acesso à saúde, à justiça, apesar de tudo, estamos aqui!! Estamos aqui para dizer que o Brasil tem cor, a cor de nossa pele, a cor do nosso sonho, a cor da nossa verdade, de um mundo mais justo, democrático, diverso e sustentável, que respeita a natureza.”

Contudo, menos de uma semana após o encerramento da COP30, o Congresso Nacional aprovou nesta quinta-feira (27/11) a derrubada de 56 de 63 vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Lei Geral de Licenciamento Ambiental. Na prática, os parlamentares reconstruíram o PL da Devastação, que enterra o licenciamento no país. É o pior retrocesso legislativo ambiental da história brasileira desde a aprovação da Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981. A nova lei autoriza que grandes empreendimentos, mineração, agropecuária, infraestrutura, exploração de petróleo, possam obter licenças por simples declaração de compromisso, abrindo mão de estudos prévios e de avaliação técnica rigorosa, abrindo mão da ciência, inclusive, tantas vezes enunciada nos discursos de Marina.
Territórios quilombolas sem titulação e terras indígenas não homologadas poderão ser atropelados por empreendimentos sem nenhum tipo de controle ou compensação. E, por último, mas não menos importante, estados e municípios poderão estabelecer regras próprias de licenciamento, esvaziando o papel da norma geral federal – que, em vez de fixar parâmetros, passa a simplesmente delegar essa prerrogativa para os outros entes federativos.
Para Marina, a aprovação representou uma demolição da governança ambiental brasileira — um retrocesso estrutural que vulnerabiliza florestas, rios, biomas e comunidades tradicionais.
Nos dias que se seguiram à COP30, com a derrubada parcial pelo Congresso de vetos presidenciais à lei, o risco de que o Brasil remetesse a um cenário de devastação legalizada voltou a se tornar concreto.
A contradição salta aos olhos: aplaudida como “estrela” da conferência global do clima, Marina, e o Brasil, enfrentam na Câmara e no Senado uma guinada legislativa capaz de anular décadas de avanços ambientais e de colocar em xeque promessas firmadas em Belém. É d nesse ponto de tensão — entre o compromisso global e o conflito doméstico — que a biografia de Marina, cuja história pessoal e carreira política carregam a coerência que oferece densidade ao seu protagonismo, se torna tão necessária.
Marina Silva é filha da Amazônia, nasceu no Acre em uma família de seringueiros. Seu quintal foi a floresta, e cresceu entre as comunidades tradicionais, vivenciando desde sempre a árdua vida seringueira — uma realidade que lhe imprimiu o senso de que a floresta não é apenas território, mas lar, memória, identidade, dignidade e fonte de recursos.
Desde cedo dedicou-se à mobilização de seringueiros e dos povos da floresta, convivendo com a luta contra invasões, grilagem e desmatamento. Com o legado de resistências históricas, ajudou a fundar organizações sindicais no Acre, participou ativamente de movimentos sociais, e, ao longo dos anos, entrou na política como representante de quem sempre foi marginalizado — e cuja voz raramente era ouvida nos corredores do poder.
Marina acumula uma trajetória pública que, por si só, parece condensar a história recente das lutas socioambientais no Brasil. Do seringal à Câmara Municipal de Rio Branco, iniciou sua vida política como vereadora em 1989, antes de ascender ao Senado, onde exerceu dois mandatos entre 1995 e 2011, tornando-se uma das vozes mais influentes da pauta ambiental.
À frente do Ministério do Meio Ambiente no governo Lula, entre 2003 e 2008, liderou a implementação das políticas que levariam o Brasil à mais expressiva redução de desmatamento da Amazônia já registrada. Em 2008, pediu demissão ao renunciar por convicção. A gota d’água foi a decisão de transferir o comando do recém-criado plano de proteção amazônica para outro ministério, enfraquecendo a prioridade institucional à floresta. Sentiu-se sem respaldo e sem condições de levar adiante uma agenda ambiental corajosa, diante de resistências crescentes de setores interessados no extrativismo mineral, na criação extensiva de gado na Amazônia e nas grandes obras.
Após deixar o cargo, assumiu papel protagonista no recém-criado Partido Verde em 2009. Lançou-se à Presidência da República em três ocasiões: em 2010, pelo PV, em 2014 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e, em 2018, como pré-candidata pela Rede Sustentabilidade que ajudou a criar, mas acabou fazendo aliança com o PV. Em 2011, fundou o Instituto Marina Silva, dedicado à formação e ao debate sobre sustentabilidade. De volta ao Executivo em 2023, como ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, recolocou o Brasil no centro diplomático das negociações climáticas globais.
Nos anos em que ficou longe do cenário político, acompanhou o desmantelamento progressivo das políticas ambientais, o esgarçamento institucional, o avanço da grilagem, o enfraquecimento de órgãos de fiscalização e o aumento do desmatamento. Quando voltou ao Ministério em 2023, o panorama era outro: havia muitas ruínas — legislativas, administrativas, simbólicas.
Sua recondução, então, não foi gesto de nostalgia, mas ato estratégico: resgatar a legitimidade institucional, restabelecer a governança florestal, dar voz aos povos da floresta e reverter o rumo da destruição. E a COP30 deveria ser o palco de um novo pacto climático, de reafirmação do compromisso nacional com biodiversidade, clima, direitos ancestrais.
É aí que a grandeza de Marina brilha, como uma determinação em meio à tormenta. Porque sua história, de seringueira à ministra, de anônima voz da floresta à protagonista global do clima, dá-lhe autoridade moral para enfrentar os retrocessos legislativos. Dá-lhe legitimidade para denunciar: “licenciamento por adesão e compromisso” não é inovação: é anistia à devastação.
E, sobretudo, mostra que a luta ambiental no Brasil não cabe apenas em discursos diplomáticos, conclama por instituições fortes, fiscalização permanente, compromisso com justiça social, respeito aos povos tradicionais, responsabilidade histórica e participação efetiva da sociedade civil nos processos, em especial dos povos vulnerabilizados. Se o Congresso optar por trilhar o caminho da destruição legalizada, estará sepultando não só árvores, estará enterrando gerações, povos, memórias. Se optar por preservar, estará escolhendo dignidade, futuro e soberania.
Marina Silva, com sua trajetória de vida, com sua coerência de convicções, com sua firmeza diante da tempestade política, permanece na encruzilhada. E, com ela, a Amazônia, o clima, o Brasil, o planeta.