“Me ensinaram ódio disfarçado de religião”. Cristão fingiu ser gay por um ano para sentir preconceito

Em 2008, o americano Timothy Kurek pendurou num cabide sua verdadeira heterossexualidade e saiu do armário como gay. Não era, mas esperava convencer as pessoas de que sim… Acontece que Tim foi criado por pais cristãos ultraconservadores: não o matricularam na escola, educaram literalmente em casa (ou numa bolha, como costuma dizer) e na Igreja sob a cartilha da Bíblia. “Aprendeu” que a homossexualidade era uma ~escolha~ abominável, que tais pecadores precisariam se arrepender e pedir perdão a Deus para entrarem no céu.

Por Nathalia Ziemkiewicz, no Yahoo

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Ele registrou detalhes de sua experiência, assim como suas reflexões, no livro “The Cross in the Closet” – ainda sem versão em português (Divulgação)

Os “sapatos” que Tim vestia desde a infância pareciam confortáveis – serviam bem aos lugares pelos quais circulava, como a faculdade religiosa em que se graduou mais tarde. O pé apertou quando, numa noite no karaokê, certa conhecida desatou a chorar em seus ombros. Ela havia se assumido lésbica e acabara renegada pela família. Antes que Tim começasse a “ajudá-la” recitando versículos sobre o quanto a tal orientação sexual era “antinatural”, a garota foi embora. E ele teve um insight que mudaria sua vida.

Num exercício de empatia, Tim decidiu “calçar os sapatos dos gays” para sentir o preconceito de que são vítimas. De um dia pro outro, avisou todo mundo que gostava de homens e manteve a mentira por um ano. Sua mãe disse que preferia ter sido diagnosticada com um câncer terminal a ter um filho gay. Seus amigos sumiram, portas fecharam. Tim precisou até trocar de emprego – virou garçom num café frequentado pela comunidade LGBTQ, que o recebeu de braços abertos.

Descobri a história de Tim graças ao vídeo de uma palestra que ele deu para o TED (abaixo, apenas disponível em inglês). Veículos gringos respeitados como o The Guardian falaram sobre sua experiência radical, publicada no livro “The Cross in the Closet” (algo como “A Cruz no Armário”). Na semana em que os Estados Unidos elegeram o nada-liberal Donald Trump presidente, Tim me deu esta entrevista por email. “O ódio e o preconceito que me ensinaram, sob o ‘disfarce’ da religião, foi enraizado em mim pelos outros”, afirma. “Se foi possível mudar o meu coração, ninguém é uma causa perdida”.

Na sua palestra no TED, você disse que as crianças não nascem com preconceitos… até crescerem em certo contexto, educação ou bolha. O que você costumava achar sobre diversidade sexual antes de passar por essa experiência que mudou sua vida? Pensava, como muitos cristãos, que os gays 1) não são normais; 2) optaram por ser gays; 3) são resultado de um aborto malsucedido; 4) precisam ser curados?

TIM – Cresci num lar incrivelmente rigoroso, protestante e cristão. Fui ensinado desde muito cedo que a homossexualidade era antinatural e abominável – acreditei nessas coisas com fervor. Eu achava que ser gay era uma escolha e, depois da minha experiência, entendi como essa ideia está longe da verdade. Crianças são naturalmente curiosas, conscientes das diferenças entre as pessoas, mas não de um jeito que dificulte o desejo de conhecê-las. O ódio e o preconceito que me ensinaram, sob o “disfarce” da religião, foi enraizado em mim pelos outros.

– Nas últimas eleições, a cidade do Rio de Janeiro elegeu um prefeito religioso e conservador que diz coisas como “os gays são um mal terrível”. Outro deputado famoso por aqui, Bolsonaro, tem milhões de fãs que concordam com suas afirmações no estilo “pais deveriam endireitar seus filhos gays na base da porrada”. Mas cristãos não pregam que Deus é generoso e capaz de amar todos nós da mesma forma? Não é contraditório que eles também preguem o ódio contra a comunidade LGBT?

TIM – Com certeza! Usar a sua religião ou sua crença em Deus para marginalizar os outros é horroroso e completamente não-bíblico. Qualquer um capaz de raciocinar precisa rejeitar esses sentimentos e parar de “comprar” esse medo. Meu país acabou de eleger Donald Trump como presidente. A campanha inteira dele foi construída sobre essa noção de que, se você faz as pessoas sentirem amedrontadas, elas vão te seguir e apoiar. Desejo o melhor para os líderes políticos, rezo para que eles usem suas plataformas e poder para ajudar as pessoas em vez de marginalizá-las.

– A Bíblia realmente tem mensagens do tipo “família é apenas homem-mulher” e “gays vão para o inferno” ou, na verdade, alguns religiosos pegam determinadas escrituras e as interpretam como querem – para reforçar seus pontos de vista?

TIM – Se vocês estudar a Bíblia, existem apenas seis passagens que estão remotamente relacionadas à homossexualidade – nenhuma delas fala sobre relacionamentos amorosos e monogâmicos entre pessoas do mesmo sexo. Por outro lado, a Bíblia menciona “amar o próximo” e “cuidar dos pobres” mais de duas mil vezes. Será que estamos dando atenção aos versículos errados? Acho que sim.

Em 2008, você ouviu o desabafo de uma amiga que havia sido expulsa de casa por sair do armário. Naquela noite teve um insight e decidiu se fingir de gay por um ano. Esse episódio foi a chave para alcançar sua empatia?

TIM – Aquele episódio foi catalisador para a minha experiência, mas foram as relações que construí com gays e lésbicas na comunidade local que realmente me transformaram. Não sou rico financeiramente, sou rico em amizades e meus amigos LGBTQ são alguns dos melhores que já tive na vida. Eles me ensinaram sobre fé, amor e comunidade mais do que a maioria das pessoas.

– Mesmo sendo hétero, você “saiu do armário como gay” para sua família, seus amigos e sua igreja. Como eles reagiram? De que forma o novo “rótulo” impactou sua vida?

TIM – O rótulo rompeu com a vida que eu conhecia. A esmagadora maioria das pessoas com quem eu convivia parou de falar comigo assim que ouviram notícias sobre a minha “saída do armário”. Desde então, ninguém tentou restabelecer contato ou amizade. E estou ok com isso agora… finalmente. Minha família sofreu e lutou para assimilar, mas não me renegou.

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Tim fez muitos amigos na comunidade LGBTQ e participou de diversos eventos pelo respeito à diversidade sexual (Reprodução / Facebook)

– Como você lidou com a própria sexualidade enquanto entrava na comunidade gay, via casais gays se beijando e formando família etc? Imagino que nem todos sabiam da sua “experiência” e tenham tentado alguma coisa a mais com você…

TIM – Eu tinha um amigo gay e, na primeira semana da minha experiência, contei o que estava fazendo e pedi a ele que se fingisse de meu “namorado”. Ele passou seis meses me ajudando, o que me deu uma desculpa para não “aceitar” as investidas dos caras. Também me aclimatou na comunidade e me fez superar muitos dos meus preconceitos. Durante esse um ano eu “estava no armário como hétero”, então não me permiti ter nenhum tipo de relacionamento com mulheres. Eu precisava saber exatamente como era estar no armário, como era ser reprimido por causa da orientação sexual, e essa foi a parte mais difícil da experiência. O “armário” é o lugar mais doloroso para as pessoas LGBTQ, e eu não desejo isso nem para o meu pior inimigo.

– O que você aprendeu enquanto “vestia o sapato dos outros”? E o que fez com essas lições na prática da sua vida e da sua fé?

TIM – Aprendi que, tanto quanto gostaríamos de pensar que somos únicos, somos todos geralmente semelhantes enquanto espécie. Todos nós desejamos amar e ser amados, e somos atraídos uns pelos outros e pela comunidade. Aprender como aceitar nossas diferenças e abraçar nossas similaridades é o único caminho pra fazer desse mundo um lugar melhor. A maioria dos cristãos que conheço, mesmo os mais conservadores, amam as pessoas LGBTQ. Eles não são todos homofóbicos fanáticos, mas um grupo de pessoas que interpretam a Bíblia de determinada forma. Precisamos ficar bem com o fato de que todo mundo pode ter opiniões e crenças diferentes das nossas. Se você está convicto das suas, não tenta automaticamente mudar a dos outros.

– O que você diria para as pessoas (religiosas ou não) que simplesmente não respeitam a diversidade sexual? É possível ensiná-las a serem empáticas com a comunidade LGBTQ?

TIM – Se foi possível mudar o meu coração, acredito que ninguém é uma causa perdida. Nos Estados Unidos, nós estamos profundamente divididos, mas nossas divisões não podem ser o que nos define. Minha esperança e minhas orações são para que as pessoas no mundo todo comecem a discutir essas questões pacificamente. Isso é saudável. Jogar pedras verbais não resolve nada. Meu ano de experiência me mostrou que todos temos preconceitos e precisamos confrontá-los em nós mesmos antes de tentar confrontar os preconceitos dos outros.

*Nathalia Ziemkiewicz, autora desta coluna, é jornalista pós-graduada em educação sexual e idealizadora do blog Pimentaria.

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