MEC intervém na Unifesp e muda procurador da universidade à revelia da reitoria

Instituição pede esclarecimentos do ministério, que não se manifestou; ato desconsiderou instrução normativa da AGU

O governo Jair Bolsonaro (sem partido) trocou o procurador-chefe na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) à revelia da reitoria. O ato fere instrução normativa sobre o tema e atenta contra a autonomia universitária e a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação).

Portaria de 2 de agosto nomeou Alessander Jannucci para o cargo, em substituição a Murilo Giordan Santos, que foi exonerado. A Unifesp só tomou conhecimento da alteração com a publicação do ato no Diário Oficial da União, no último dia 4.

Santos estava no cargo desde junho de 2020. Integrantes da universidade disseram, sob condição de anonimato, acreditar que a mudança ocorreu por causa de posicionamentos políticos do antigo procurador-chefe.

Em artigo publicado em meados do ano passado, ele criticou a nomeação de reitores que não encabeçaram as eleições nas universidades. A prática tem sido adotada recorrentemente pelo atual governo.

O processo foi tocado diretamente por iniciativa do MEC (Ministério da Educação), pasta comandada pelo pastor Milton Ribeiro.

Como previsto no regramento, a AGU (Advocacia-Geral da União) participou do trâmite de troca, apesar de o procedimento ferir uma regra do próprio órgão.

A instrução normativa nº 5, de 1998, estabelece que a submissão do nome do advogado público para ocupar cargo de chefe de Procuradoria junto à autarquia (como é o caso de universidade federal) ou fundação pública deve ser feita pelo dirigente máximo da instituição.

“Os dirigentes máximos das autarquias federais e das fundações, instituídas e mantidas pela União, encaminharão ao gabinete do advogado-geral da União o nome indicado para ocupar o cargo de chefe do respectivo órgão jurídico”, diz o texto.

Universidades contam com uma Procuradoria Federal cujos membros são servidores ligados à AGU. Esses órgãos têm como função prestar consultoria e assessoria jurídica à direção da instituição.

Procurado pela Folha, Santos não quis se pronunciar. A reportagem teve acesso a uma carta pública que ele distribuiu entre membros da AGU nesta semana.

Santos diz no texto não saber o motivo de sua substituição. Também nega que tenha recebido quaisquer reclamação sobre sua atuação.

“O que está realmente em jogo é o atropelo de ministérios sobre as autarquias; é a falta de autonomia do advogado público para exercer sua missão com imparcialidade técnica sob o receio de desagradar interesses políticos e ser exonerado por autoridade que [nem] sequer possui competência para tal ato.”

Em nota, a Unifesp reafirma que só soube do ato pelo Diário Oficial.

“Não era de conhecimento da reitoria da Unifesp tal movimentação, não tendo havido solicitação ou concordância da reitoria da Unifesp para tal substituição, como previsto pela instrução normativa da AGU de 1998”, diz.

A reitoria afirma que tem questionado o MEC diariamente desde a última quinta-feira (5), dia em que solicitou, “em caráter de urgência”, reunião com o ministro Milton Ribeiro para obter informações e esclarecimentos sobre o processo. Até agora não houve resposta.

“A Unifesp está realizando todos os esforços para ser recebida em audiência pelo ministro Milton Ribeiro, e tomando as medidas cabíveis.”

A Unifesp teve a nomeação, em maio, do professor Nelson Sass como novo reitor. Neste caso, ele foi o primeiro colocado da lista tríplice elaborada pela universidade após eleição.

Desde que assumiu a Presidência, Bolsonaro desconsiderou o primeiro colocado da lista tríplice das universidades em 40% dos casos ao escolher o reitor.

Sass, que está afastado do cargo por motivos de saúde, já esteve com o ministro e, segundo relatos feitos à Folha, ouviu críticas de Milton Ribeiro sobre o procurador agora exonerado. O reitor teria negado ao ministro que haveria planos para substituição.

Em entrevista veiculada nesta segunda-feira (9) na TV Brasil, Milton Ribeiro defendeu a triagem ideológica para as nomeações nas instituições de ensino superior ligadas ao governo federal.

“As universidades federais não podem se tornar um comitê político do partido A, nem de direita, mas muito menos de esquerda”, disse.

O MEC foi questionado sobre a situação e não respondeu. Em nota, a AGU defendeu a legalidade do processo, que atenderia o que é definido por decreto de 2019, alterado por outros dois atos.

Segundo a AGU, os decretos são “normas superiores que exigem interpretação evolutiva da instrução normativa”.

O decreto 9.704, de 2019 —atualizado por outros, também em 2019 e em 2020—, garante a competência do ministro em nomear e exonerar ocupantes de cargo de comissão no âmbito das autarquias, como é o caso.

Este texto não menciona as universidades, que têm autonomia administrativa garantida pela Constituição.

“Os elementos objetivos constantes da Instrução Normativa n. 5/AGU, de 10 de dezembro de 1998, tais como os formulários de indicação, são juntados em caráter meramente complementar ao procedimento, não se configurando como um requisito normativo de análise desde a edição do Decreto n. 9.727, de 15 de março de 2019”, defende a AGU.

Mas o próprio processo que antecedeu a nomeação do novo titular da Procuradoria da Unifesp, obtido pela Folha, cita um eventual atendimento à instrução.

“O processo encontra-se instruído de acordo com o preconizado pela instrução normativa”, diz despacho da Procuradoria-Geral Federal. Não há nos autos nenhum pronunciamento da universidade.

A LDB —lei que, portanto, supera hierarquicamente o decreto— prevê que “no exercício da sua autonomia” as universidades públicas poderão “propor o seu quadro de pessoal docente, técnico e administrativo”.

“Em face do artigo 207 da Constituição e do artigo 54 da LDB, é do reitor essa competência”, diz a professora da USP Nina Ranieri, especialista em autonomia universitária. “É mais uma atitude de enfraquecimento das universidades, nesse caso da autonomia administrativa.”

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