Melhor ginasta negro da história do Brasil perde emprego após denunciar supostos casos de racismo

Enviado por / FonteESPN, por Marcelo Gomes

Ângelo Roberto Dias de Assumpção, 24, não é mais uma promessa da ginástica artística e sim uma realidade da fantástica fábrica brasileira de revelar atletas talentosos para a modalidade.

Como a exuberante Daiane dos Santos, Ângelo é um dos raros atletas negros que se destacaram em um esporte que exige dedicação máxima desde a infância. A exemplo dos grandes nomes, o menino de família humilde, do extremo da Zona Leste de São Paulo, começou a carreira na modalidade com apenas 5 anos de vida.

José Carlos Ferreira, motorista de ônibus, espécie de tio e pai do garoto, lembra os primeiros passos do sobrinho, no quintal da casa da família, até o Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa, um oásis da base olímpica, bancado pela Prefeitura de São Paulo.

“Ele sempre foi um menino muito espoleta e forte. Dava suas cambalhotas, subia e descia os batentes da nossa casa com a maior facilidade. Tinha um impulso e uma energia impressionantes. Foi aí que eu falei para a mãe dele, que é irmã da minha esposa, levá-lo para treinar ginástica!”, relembrou o tio, em entrevista para a reportagem.

Foram dois anos no COTP até Ângelo começar a chamar a atenção de alguns clubes de ginástica. O tio diz que o menino recebeu vários convites, mas acabou optando por ingressar no Pinheiros, 18 anos atrás.

Vida de ginasta

A ginástica artística é um dos esportes mais difíceis de ser praticado e por isso o início tem que se dar realmente na infância.

São treinamentos rígidos, extenuantes, com riscos de lesões graves e uma carreira, na maioria das vezes, mais curta e arriscada do que a de jogador de futebol, por exemplo. Ao longo da vida dentro do esporte, são intermináveis treinamentos na busca pelo movimento perfeito, da execução sem erros e da apresentação sincronizada. Tudo pela nota máxima.

E quando se fala em disciplina então, quem faz esse esporte sabe mais do que ninguém que o atleta não tem voz para nada. É obrigado a seguir a rotina imposta, desde criança, como se fossem adultos, perdendo assim a infância, a adolescência e muitas vezes não tendo tempo nem para estudar, pois as viagens e competições são implacáveis que levam mundo afora o nome do Brasil.

O caminho de Ângelo foi pior do que qualquer outra criança da ginástica. Tudo porque ele é um dos raros negros na modalidade.

“Enquanto todos tem que andar, eu tenho que correr pra chegar lá. Sabe como é, né, ser negro no Brasil?”, indagou o ginasta que hoje está desempregado.

O céu e o inferno

Dois mil e quinze foi um ano mágico e trágico na carreira do ginasta. Começou com o marco, com ele surgindo como um dos grandes nomes da ginástica brasileira e mundial.

O ouro conquistado na prova do salto na etapa da Copa do Mundo de São Paulo, no Ibirapuera, foi um divisor de águas na carreira do menino, até então desconhecido pela mídia nacional.

Ali o ouro representou mais que uma premiação, o fato de ocupar o degrau mais alto do pódio era a resposta que o menino, o primeiro ginasta negro brasileiro campeão de um torneio mundial, poderia dar à sociedade que, mesmo sem ele saber, o excluiria mais tarde.

Ângelo só ganhou aquela medalha porque o ginasta titular do Pinheiros, Arthur Nory, havia se contundido, abrindo espaço para que o jovem da Zona Leste paulistana definitivamente entrar em cena e brilhar.

Só que em vez de a medalha dourada lhe trazer prestígio, pelo menos entre os companheiros e atletas de clube, o feito acabou desencadeando um dos maiores traumas vividos pelo garoto em quase vinte anos de carreira dias depois.

Um vídeo gravado e postado no Snapchat de Arthur Nory em 15 de maio mostra Ângelo sofrendo provocações raciais. Na gravação, Nory pergunta: “Seu celular quebrou… A tela quando funciona é branca. Quando ele estraga é de cor?”. A resposta vem de Nory e dos atletas Felipe Harakawa e Henrique Flores, que também estão na mesa. Eles dizem: “Preto”.

Na mesma gravação, Nory pergunta “O saquinho do supermercado é branco. E o do lixo? É preto!“.

O vídeo foi apagado das redes sociais, mas acabou resultando em uma reportagem do jornal “O Globo” em julho de 2015. Resulou em um novo vídeo, este um pedido de desculpas de Arthur Nori, Felipe Harakawa e Henrique Flores.

Na época, a Confederação Brasileira de Ginástica abriu um inquérito para apurar os fatos. Os três foram afastados por um curto periódo, enquanto outros atletas e técnicos amenizaram o lamentável episódio que, no final das contas, não puniu ninguém.

Talvez por causa dessa impunidade as agressões continuaram e o mundo do atleta no esporte definitivamente começou a ruir.

Segundo Ângelo, as ofensas se intensificaram nos últimos dois anos, até que, cansado de tanta humilhação, ele decidiu procurar a comissão de esportes do Pinheiros para denunciar o caso em agosto do ano passado.

A reportagem procurou uma das integrantes dessa comissão, que não quis se identificar, embora não tenha deixado de confirmar as acusações relatadas pelos atletas. E foi além.

“Ângelo sempre foi um exemplo de atleta e profissional. Nunca trouxe um problema disciplinar ou de comportamento ao clube. Ele foi sim vítima de racismo e digo mais”, afirmou uma fonte de dentro do clube.

Sobre os casos de racismo, o Pinheiros se manifestou por meio de uma nota, dizendo que “repudia e se posiciona contra qualquer atitude racista”, assegurando que “todos os relatos recebidos pelo clube são averiguados e documentados”.

Mas, especificamente sobre os supostos ataques racistas relatados por Ângelo nos últimos anos, diz “não há evidências fáticas que o referido atleta tenha sofrido qualquer ato discriminatório nas dependências do clube ou fora delas”.

Ângelo pagou uma pena ainda maior. Foi suspenso por 30 dias com a justificativa de “indisciplina, como atraso em treinos” e também “insubordinação com a equipe técnica e atrito com os demais integrantes da equipe”. Ao voltar de suspensão, em 4 de novembro do ano passado, teve contrato rescindido. Ou seja, o talento da ginástica artística do Brasil está desempregado.

Sobre a dispensa, o Pinheiros encaminhou outra nota. Alega que Ângelo “é profissional competente e que trouxe muitas vitórias para todos os pinheirenses. O contrato do atleta iria findar no dia 31 de dezembro de 2019, data que o clube iria reincidir o contrato”. Ainda diz que optou pelo fim do vínculo “para facilitar o processo de migração do atleta para outro clube esportivo”.

O Pinheiros diz ainda ter cumprido todos os acordos financeiros, tendo quitado inclusive o salário de dezembro.

“RACHADINHA”

Ao investigar a história de Ângelo, a reportagem acabou descobrindo outro problema no Pinheiros. Um tema que é de conhecimento do presidente: as “rachadinhas”.

“Existe um esquema de ‘rachadinhas’ dentro do clube, ou seja, quando um atleta ganha alguma premiação internacional, tinha que depositar 30% do valor para a comissão técnica”, afirmou fonte de dentro do clube.

A reportagem entrou em contato com o presidente do Pinheiros, Ivan Castaldi, que disse ter criado uma equipe de governança para apurar os supostos casos de racismo e este caso de “rachadinha” dentro da ginástica da instituição.

“A gente tem cerca de 70 modalidades esportivas no Pinheiros, portanto é muito difícil a gente controlar tudo que acontece nos esportes amadores, de base e alto rendimento. Já ouvi sim, denúncias sobre os dois casos citados. O que eu posso dizer é que vamos a fundo nisso com a governança e, claro, se obtivermos provas nós iremos punir os culpados”, garantiu.

Falamos também com Roseane Zanetti, presidente da Federação Paulista de Ginástica e mãe de Arthur Zanetti, ginasta duas vezes medalhista olímpico.

“Cada atleta acerta a premiação com o seu técnico, pois não existe atleta vencedor sem um técnico competente. Não é que seja obrigatório pagar premiação, mas vai da cabeça de cada um”, afirmou a dirigente e mãe do primeiro medalhista de ouro da história da ginástica artística brasileira em Olimpíadas.

É importante lembrar que, no caso dos técnicos do Pinheiros, são profissionais com salários pagos pelo clube, pela seleção (quando viajam em torneios internacionais) e que recebem o Bolsa Pódio.

O futuro repete o passado

Não é a primeira vez que a comissão técnica da ginástica do Pinheiros põe fim a carreira de um atleta criado no clube.

Em dezembro de 2018, a direção técnica, que puniu Ângelo Assumpção com suspensão e em seguida demissão, havia feito praticamente a mesma coisa com Jackelyne da Silva, conhecida como Jackie, então com 17 anos.

A diferença entre os dois casos é que a história da menina terminou de forma trágica.

Jackie foi demitida após sofrer supostas acusações de bullying por estar fora de forma. A mensagem de desligamento foi enviada por WhatsApp pelo coordenador técnico Raimundo Blanco.

Sem salário e sem outra oportunidade para voltar a treinar Jackie teve um grave problema de saúde que resultou na morte da menina, em um hospital público da periferia de São Paulo.

A reportagem exibida pelos canais ESPN em maio de 2019 apresenta o histórico da menina, então promessa da ginástica artística brasileira e o drama dos pais que se disseram desamparados pelo clube mais rico do país.

Relembre o caso Jackie da Silva, a menina morta em um hospital público após um mês da demissão do Pinheiros.

Coicidência ou não, Ângelo era o melhor amigo de Jackie da Silva. Foi ele que alertou os pais que ela teria um seguro de vida que cobriria o custo do funeral. Os dois eram unha e carne no Pinheiros e na seleção brasileira.

Abaixo, o amigo Ângelo relembra o triste e trágico episódio acontecido com a melhor amiga do esporte.

Classe desunida

Quem vê os atletas participando de competições por equipe pode até imaginar que eles são unidos em todas as situações.

Ledo engano.

No caso do Ângelo, quando o vídeo com ofensas racistas veio à tona nenhum atleta, técnico ou dirigente da ginástica artística veio a público apoiar ou estender a mão para o ginasta que desde outubro do ano passado está sem clube para treinar.

É a velha lei da mordaça que impede que o atleta fale ou apoie qualquer causa. Na ginástica artística parece ser pior. Afinal, a reportagem também entrou em contato com dois grandes nomes da modalidade para ver se eles poderiam ajudar o ex-atleta do Pinheiros a arrumar algum clube onde ele pudesse retomar o sonho. Nada de exposição.

Com medo de retaliação, uma das atletas que pediu para não ser identificada disse que tentaria falar com outros treinadores na tentativa de abrir uma porta para Ângelo. Pedimos para que ela gravasse um vídeo dando força ao atleta, mas ela disse que não poderia se expor nesse momento.

Outra atleta que entramos em contato por telefone e mensagens de WhatsApp pedindo uma entrevista nem respondeu ao nosso contato.

Na intenção de ajudar o atleta paulistano, também falamos com a Federação Paulista de Ginástica Artística, Roseane Zanetti.

Ela disse que não tem o poder de intervir na decisão do clube, mas que ligaria para a comissão técnica do Pinheiros e para tentar estudar uma solução para o caso.

Enquanto isso não acontece

Ângelo segue, lá nos confins do extremo da Zona Leste de São Paulo tentando se curar de uma depressão que o atormenta impiedosamente desde 2015 e treinando na sala apertada do tio-pai ou no corredor que divide a casa da mãe e dos tios.

O menino, um verdadeiro fenômemo da ginástica artística, improvisa exercícios com os colchões da própria família esperando que alguém lhe estenda a mão e não deixe um talento ser esquecido.

Para assistir o vídeo da matéria Clique aqui

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