Mendigo gato e mendigo lixo: a cor de quem merece ou não ficar na rua

por Higor Faria

No dia 08 de dezembro, noticiaram que habitantes de Florianópolis protestavam contra a presença de moradores de rua na região. Para os que reclamavam, as pessoas em situação de rua levavam “sujeira, drogas, desentendimentos e homicídios” e, por isso, a tentativa era de “limpar a praia para a chegada dos turistas”. Esses e outros termos desumanos usados pelos manifestantes são trazidos pela reportagem publicada no portal da Revista Fórum.

Curiosamente, no dia seguinte, o G1 noticiou que o “mendigo gato de Curitiba” voltou para a clínica de reabilitação para receber alta definitiva e anunciou seu casamento. Fico feliz, parabenizo sua recuperação e desejo muitas felicidades ao lado de sua futura esposa. O que trato nesse texto não tem a ver com a pessoa, Rafael Nunes, mas com sua condição. Tem a ver com todos nós que definimos a quem nossas lágrimas e esforços serão dirigidos, a quem as oportunidades serão ofertadas e a que tipo de outros seres queremos que saiam do estado de vulnerabilidade e alcancem o de heroísmo.

Nas matérias sobre os protestos de Florianópolis, todas as imagens mostravam como moradores de rua pessoas negras. Não duvido que a maioria das vítimas dos protestos sejam negras — 67% (Pesquisa Nacional sobre a população em situação de rua). No Brasil, somos a maioria quando se fala em espaços de vulnerabilidade.

A situação de rua tem cor pré-estabelecida: é preta.

É isso que diferencia o “mendigo gato de Curitiba” do resto dos mendigos no país. Ele é branco. E, por ser branco, é tratado de forma humana, ao passo que pessoas negras em situação de rua não recebem nem esse tipo de tratamento básico. O racismo opera assim.

Na maioria das matérias, o “mendigo gato de Curitiba” é também tratado pelo nome — ele se chama Rafael Nunes. Ser chamado pelo nome é a mesma coisa que reconhecer que o outro, independente da sua situação, é gente: que tem identidade, história e trajetória. Os pretos moradores de rua de Florianópolis de certo não têm nome. Parecido com os “lotes” de africanos escravizados que recebiam o mesmo nome quando chegavam ao Brasil — um lote de Francisco, outro de João, outro de Maria etc. Parecido também com aquele seu único amigo negro é sempre tratado por um apelido genérico — o neguinho, o negão, o pretinho. Essa histórica forma de invisibilização não é coincidência.

Ao mendigo de Curitiba é dado o status de gato porque seu fenótipo reproduz o padrão europeu endeusado por décadas. Além disso, na nossa configuração racista, a pele os olhos claros dele o colocam numa situação de não pertencimento às ruas. Afinal, naturalizou-se que negros devem ocupar esse espaço e não brancos. Em decorrência também disso, o “mendigo gato” teve o apoio e indignação nas redes sociais e nos veículos de comunicação de todo o Brasil. Dessa comoção nacional, surgiram oportunidades: ele ganhou um emprego em uma agência de modelo, pagaram clínica de reabilitação, terminou e segundo grau e até arrumou alguém para dividir os momentos difíceis na jornada para abandonar as drogas.

Os outros não têm nem nome. Alcançar um título da beleza restrito a quem nasce branco é impensável. “Ora, estão sujando a cidade, deixando-a mais feia”. A história de preto sujo e feio já é velha, mas vinga no imaginário de muitos até hoje. Não tem comoção nacional, mas racismo, preconceito, descaso e estigmatização sobram. Dessa intolerância, resultaram protestos contra esses moradores de rua. Em Florianópolis os manifestantes admitiram isso. Ao invés de lutarem por condições mais dignas para àqueles que estão em situação de vulnerabilidade (como lutaram pelo “mendigo gato”), eles pediam por higienização das ruas, pela exportação ou por qualquer outra medida — leia-se extermínio — com a finalidade de limpar as praias de Canasvieiras. Para as pessoas em situação de rua, não houve o mínimo de tratamento humano, pois eles não são como o “mendigo gato”. Eles não são brancos.

E a seletividade não para por aí. O “mendigo gato” virou “exemplo de superação”, um herói: saiu das ruas, das drogas, arrumou emprego, está terminando os estudos e vai se casar. Já os mendigos de Florianópolis não receberam metade da ajuda ou das oportunidades e são denominados vagabundos, estorvo, lixos que merecem ser varrido das praias. Tudo isso por causa do nosso olhar que é diferente para as diferentes etnias.

Quando falo que a cor da pele define quais os tipos de oportunidades serão dadas ou quais obstáculos serão impostos ao indivíduo ou a um certo grupo é de casos como o do “mendigo gato de Curitiba” e dos protestos contra os de Florianópolis que me refiro.

E há quem ainda acredite que a questão é meramente de classe social.

 

Higor Faria é preto, publicitário, estuda masculinidade negra e escreve no https://medium.com/@higorfaria

+ sobre o tema

Uruguai: governo diz que número de abortos diminuiu após descriminalização

Segundo o governo, os dados preliminares apontam entre 300...

Nota da CNAIDS ao Ministro Alexandre Padilha

AoExmo. Sr.Alexandre PadilhaMinistro de Estado da Saúde - Ministério...

GO: ex-pastor é preso por estupro e cárcere privado da mulher por 6 anos

Um ex-pastor evangélico de 45 anos foi preso na...

Carta Aberta contra a chamada para a II Conferência Municipal de Promoção da Igualdade Racial

Vimos manifestar publicamente à sociedade curitibana, assim como ao...

para lembrar

O apoio turco às vítimas do racismo na Alemanha

Depois dos atentados racistas contra a famíla Yigit, na...

Denúncias de racismo abalam Departamento de Bombeiros de NY

O Departamento de Bombeiros de Nova York (FDNY), uma...

Comissão diz que não houve ato ilícito da Justiça ao algemar advogada negra

Desembargador também inocentou a juíza que pediu a prisão...

‘Lá nunca mais volto’ – SEU JORGE sofre racismo na Itália – áudio

Entrevista concedida ao produtor Van Damme, da Beat98 Seu...
spot_imgspot_img

Quanto custa a dignidade humana de vítimas em casos de racismo?

Quanto custa a dignidade de uma pessoa? E se essa pessoa for uma mulher jovem? E se for uma mulher idosa com 85 anos...

Unicamp abre grupo de trabalho para criar serviço de acolher e tratar sobre denúncias de racismo

A Unicamp abriu um grupo de trabalho que será responsável por criar um serviço para acolher e fazer tratativas institucionais sobre denúncias de racismo. A equipe...

Peraí, meu rei! Antirracismo também tem limite.

Vídeos de um comediante branco que fortalecem o desvalor humano e o achincalhamento da dignidade de pessoas historicamente discriminadas, violentadas e mortas, foram suspensos...
-+=