Moçambicano agraciado com Prêmio Camões enxerga África em busca de si mesma; e vê na literatura caminho para encontrar indivíduo-multidão
Com dezenas de trabalhos publicados e prêmios arrebatados [entre eles, o Prêmio Camões-2013], Mia Couto é uma das principais figuras da literatura africana contemporânea. Em conversa com o Afreaka, o escritor e biólogo moçambicano conta como o seu estilo está costurado com o momento histórico de seu país e de seu continente. Discutindo sobre a linha de pensamento que conduz seu trabalho, traz uma análise apurada sobre a busca de identidade: a identidade de si mesmo e a identidade de África.
Quem é o Mia Couto pessoa?
Eu sou muitos, um dos quais é esse que agora infelizmente ganhou uma certa hegemonia sobre os outros, sobre esta multidão que mora dentro de mim, que é o Mia Couto escritor. Tenho uma empresa onde trabalho como biólogo. E eu também sou muito esse. Sou uma mestiçagem desses vários seres e criaturas que me habitam.
E o Mia Couto escritor?
Provavelmente é este o que me ocupa mais. Exatamente porque ele não pode ser capturado, não pode ser domesticado, configurado. Do Mia Couto escritor, o que me agrada mais é eu poder ser muita gente, poder ser vários, atravessar vidas e nascer em outras criaturas, nos personagens que eu crio.
Você tem algum empecilho para conciliar as duas carreiras?
Não tenho dificuldade nenhuma. Faço tudo mal (risos). Não, na verdade é que não vejo essas fronteiras. Não quero ser obediente a esse tipo de pensamento que compartimentou as coisas. Por exemplo, o que me agrada na biologia é a sua narrativa, a história que ela cria. A história da vida é a mais fascinante que conheço. Quando olho para a biologia, olho como se fosse um prolongamento da escrita, da criação de narrativas, dessa busca que para nós é essencial.
Você acha que tem uma linha de pensamento que atravessa todas as suas obras?
Sim. Principalmente a procura da identidade. Uma procura, que na verdade, é sempre ilusória. É a busca de uma miragem. Eu acho que, se há um fio na minha escrita – e eu só percebi isso quando eu já tinha escrito a maior parte dos meus livros –, é porque venho de uma família que tinha mesmo esse desafio, uma família que vem de Portugal em ruptura com seu passado. Eu não conheço os meus avós, eu tenho que inventar essa história toda para mim. Tenho que inventar um passado. Eu percebi que aquilo que era a história minha e também a história de muitos outros é o resultado de uma invenção. Nós estamos fazendo ficção sobre quem somos. Essa procura minha da identidade familiar coincidiu muito com a procura de identidade que este país está, um país que é mais novo do que eu. Há uma coincidência histórica. Eu nasço dentro de uma nação que está em busca do seu próprio retrato, da sua moldura. Isso faz com que eu perceba que a busca de identidade mesmo sendo falsa e plural, é o que me motiva.
Isso o ajudou a criar um estilo?
Sim, porque como a busca da identidade é falsa, como ela procura aquilo que não está lá, eu não podia usar a linguagem comum, a língua enquanto edifício já construído. Eu tinha que inventar um bocadinho esse caminho. E por isso a busca pela palavra nova, pela reinvenção da linguagem.
Você diz que seus livros buscam identidades, poderia nos contar sobre algumas das que você já encontrou? Quem são elas?
Eu acho que o que a escrita me permitiu, e eu tenho uma grande dívida com ela por isso, é perceber que eu sou todos. Cada um de nós é todos os outros. Quando eu comecei a escrever sobre mulheres, eu tive uma grande dificuldade, porque eu achava que estava a ser falso. Ia perguntar às mulheres como é que elas pensavam, mas depois percebi que estava dentro de mim. Se eu conseguir chegar lá, e fazer essa viagem para o meu lado feminino, para a mulher que eu também sou, aí sim fica verdadeiro. Eu não posso falar sobre uma mulher, eu tenho que escrever como se eu fosse ela. Eu sou essa mulher que eu escrevo. E eu sou esse chinês, sou esse velho, sou essa criança e sou todos os outros que vivem dentro de mim. Quando eu escrevo, não estou só a visitá-los, eu incorporo tudo isso. Acho que essa foi a grande lição para mim. Não é uma lição que me permite escrever melhor, não é isso. Mas me permite ser mais feliz. Hoje, quando me relaciono com os outros, tenho uma disponibilidade para não estar com o outro, mas sim ser o outro.
Não existe uma identidade, mas as pessoas vivem em uma fortaleza: “eu sou assim”. E quando alguém diz isso, está dizendo uma grande mentira porque está a criar, a sedimentar uma imagem que os outros criaram dela. As pessoas facilmente, quando se apresentam, dizem “eu sou jornalista”, e isso é uma coisa terrível, porque a gente fica capturado nessa única coisa, como se a vida inteira coubesse em um cartão de visita, que diz quem somos nós.
Você fez uma leitura analisando o medo que ficou bem conhecida online, certo? Como você enfrenta os seus medos?
Eu acho que enfrento tratando-os como amigos. Não os combato, não faço guerra com eles. É como se fosse viver com um conselheiro dentro de mim. O medo é uma maneira primeira, um aviso interior que funciona como vigilância que nós temos em relação aos caminhos, em relação às opções. Portanto, a primeira coisa foi que deixei de ter medo dos meus medos. Aceitei-os como uma parte boa de mim.
Você tem medo de começar um livro?
Atroz! Enorme! Fico quase paralisado. Quando o medo nos paralisa, quando é maior do que nossa capacidade de resposta, é uma coisa negativa, já não posso ser amigo dele. Mas até agora, o medo tem sido bom para mim, me ajuda a procurar ser diferente, ajuda a me descolar daquilo que já fiz. Ele me faz ter algum espírito de autocrítica. É um medo que me ajuda.
A África plural muitas vezes vem interpretada erroneamente sobre o nome de África unidade. Mas, acima dessa sensibilidade, o senhor acha que existe uma identidade em comum africana?
Existem algumas identidades que são diversas, mas aquela que eu acho que é mais importante é o sentimento de religiosidade que une essas pessoas: como se concebe Deus, como se concebe o nosso lugar após a morte, como se concebe a própria morte. Essa espiritualidade de fato é uma religião. Não tem nome. Não é reconhecida. Eu acho que o grande elemento de aglutinação é essa coisa do lugar dos mortos, do invisível, a fronteira entre o possível e o impossível.
E isso permeia todas as comunidades?
Sem dúvida. É um chão. Eu nunca entenderei o Brasil se eu não souber nada sobre a religião católica, por exemplo. Mesmo o brasileiro que se afirma ateu foi moldado, foi condicionado em relação à ética, está embrionado disso. Aqui é o mesmo. Imagina se eu não soubesse nada da religião católica, como a maior parte das pessoas que vêm visitar a África não sabe desses valores. Então, eles veem e acham que são umas práticas, umas crenças exóticas, mas não entendem como isso funciona como um sistema de pensamento. E enquanto não tiver essa sensibilidade, nunca vai conseguir ter proximidade com a África porque está a ler o espaço apenas por linhas mais epidérmicas como a política, a história etc. Aquilo que é mais profundo não é tocado.
Na nossa viagem, percebemos uma dualidade entre as comunidades tradicionais e seus valores e a urbanização. Dentro desse processo, como você vê o futuro relacionado à preservação de culturas?
Tenho o cuidado com a própria maneira de olhar para essas coisas. A primeira tentação é falar da preservação de culturas. Elas têm que ser respeitadas, mas eu não sei se têm que ser preservadas, afinal elas têm a própria dinâmica de negociação, que não começou agora. Não existem comunidades que são puras, que se mantiveram intactas e que só agora estão sendo surpreendidas com os fenômenos sociais como a urbanização. É verdade que agora tem uma rapidez quase antropofágica, mas eu não acho que as culturas são tão frágeis como a gente pensa. Essas culturas, que chamamos de tradicionais – palavra que não gosto muito – têm uma capacidade de negociação muito forte. Dou este exemplo: a maneira como aqui a sociedade urbana é ruralizada. As pessoas que habitaram Maputo, por exemplo, se urbanizaram? Sim, mas em troca, obrigaram a cidade a partir-se, a ruralizar-se. As pessoas andam na rua mais do que na calçada, pois esta não existe na concepção rural. A maneira como as pessoas não têm uma palavra para dizer lixo nas línguas africanas locais, porque lixo é uma entidade urbana e uma realidade recente. A maneira como uma pessoa concebe a sua residência, o espaço em volta, o convívio social. Maputo vive em conflito consigo mesma, porque foi concebida para certo tipo de urbanismo e de urbanidade, e agora quem vive na cidade pensa e sente de outra maneira e, portanto, quer trazer o campo para cá. É muito curioso. É uma questão dessas brigas de culturas. Portanto, eu não acho que se tenha que fazer uma grande bandeira de defender a pureza das culturas porque felizmente todas as culturas são impuras. Todas são mulatas.
O que você diria sobre a identidade africana e o modo como ela é estereotipada?
Acho que a autonomia começa do próprio pensamento, dos modelos de pensamento. Como que nós pensamos a nós próprios? Quais são os critérios e os parâmetros que usamos para nos pensarmos? Muitos desses critérios foram criados na Europa. Acho que essa briga está acontecendo agora e vai ser resolvida entre nós próprios. O africano tem que criar esse espelho para ver bem a si próprio.
Que ações as pessoas de África estão tomando nesse sentido?
Hoje, qualquer pessoa que tenha boa vontade de olhar o mundo sem preconceito, começa a perceber que não há um lugar do mal, que esse mal está bem democraticamente espalhado pelo mundo. A crise econômica na Europa, a corrupção no Brasil. Portanto, a África foi se libertando desse estereótipo não só por si mesma, mas porque houve coisas que mudaram. O que falta é que os africanos não se remetam e não fiquem condicionados no lugar que lhes foi concebido, que é o “bom jogadores de futebol, os que dançam bem, os que produzem boas esculturas”. Porque existem filósofos africanos, intelectuais, gente que produz em uma área mais íntima de pensamento. E é o território que nós ainda temos que nos afirmar. Mas afirmar não dizendo “olhem para nós”, porque isso continua a ser uma posição colonizada, o fazer em função do outro. Nós fazermos por nós próprios. Esse é o caminho.
Entrevista a Flora Pereira e Natan Aquino
Fonte: Outras Palavras