Michele Alexander: a guerra às drogas é a nova escravidão

A neutralidade permite que se adotem práticas tão racistas quanto aquelas do regime de segregação

no Carta Capital

Foto- Carta Capital

O sociólogo Jessé Souza, em sua magistral obra “A elite do atraso: da escravidão à lava-jato”, demonstra como a sociedade brasileira se formou de maneira independente de sua herança ibérica. Diversamente de Portugal, o que moldou a história social dos últimos quinhentos anos no Brasil foi a escravidão. O escárnio, o ódio e a falta de humanidade historicamente dispensados aos escravos permitiu que tivéssemos – até o dias atuais – uma sociedade em que a um grupo determinado de pessoas são reservadas apenas a exclusão, a pobreza, a prisão e a morte.

A escravidão, que também durou séculos nos Estados Unidos da América, foi igualmente o regime responsável pela criação de uma “sociedade de castas” naquele país. É o que defende Michele Alexander, na imperdível obra “A nova segregação: racismo e encarceramento em massa”. Alexander faz um instigante paralelo entre a escravidão norte-americana, a era Jim Crow (o regime de segregação racial que durou de 1876 a 1965) e a atual política de encarceramento em massa – cujo mote principal é a “guerra às drogas” – como a continuidade de sistemas baseados na mesma lógica: o racismo histórico e estrutural arraigado no país.

O racismo, para a autora, é altamente adaptável, notadamente quanto à facilidade de se esconder sob a forma de uma pretensa “neutralidade racial” (colorblindness).

A neutralidade, prossegue, permite que se adotem práticas tão racistas quanto aquelas do regime de segregação. Políticas “neutras” racialmente, assim, têm efeitos perversos e muito mais danosos sobre a população negra.

O principal sistema de controle utilizado para a política segregacionista é a justiça criminal. A política criminal racista dos EUA pode ser demonstrada não só no encarceramento, mas também no controle que se faz após a libertação dos condenados, quando uma série de “leis, regras, políticas e costumes” rege a vida dos rotulados como criminosos, fazendo-os entrar num submundo de discriminação e exclusão social.

Uma vaga de emprego, o recebimento de benefícios sociais, a participação no tribunal do júri e até o direito ao voto são eternamente negados àqueles que possuem uma “condenação criminal”. Ocorre que, de acordo com a pesquisa, os negros são os mais abordados nas ruas, suas casas (situadas nos guetos) são as mais invadidas pela polícia, são os mais coagidos a aceitar acordos criminais para cumprimentos de severas penas de prisão sob ameaça de penas ainda mais altas (às vezes sem um advogado), tudo com graves e repugnantes violações a direitos e garantias legais.

Os números demonstram que os negros e latinos sofrem desproporcionalmente os efeitos devastadores da guerra às drogas (são três quartos dos presos por esse tipo de crime), mas as instâncias judiciais, na imensa maioria dos casos, negam-se a reconhecer as práticas racistas do sistema. A Suprema Corte já negou a discriminação racial em casos nos quais estudos demonstraram uma taxa grande de recusa imotivada de negros no júri e acordos penais que impunham penas muito mais altas a negros que a brancos em situações idênticas.

Ao abordar a “nova segregação”, Alexander alerta para o fato de que os EUA são primeiro lugar no mundo no que se refere ao encarceramento per capita: enquanto detém 5% da população mundial, abriga 25% dos presos do planeta.

Os milhões de pessoas presas naquele país, cuja maioria é pobre e não branca, foram mandadas para as prisões em razão “de uma ‘guerra às drogas’ racialmente enviesada e de um movimento de ‘endurecimento que destruiu famílias e dizimou comunidades inteiras”.

A autora destaca ainda que o número de pessoas presas por delitos relacionados a drogas aumentou de cerca de 50 mil, em 1980, para algo próximo a 500 mil atualmente – “mais do que o número de pessoas que a Europa ocidental prende por todos os crimes” –, um aumento de mais de 1.100%.  Já em 2008, os EUA mantinham 2,3 milhões de pessoas presas e impressionantes 5,1 milhões sob “supervisão correcional”.

Alexander comprova sua hipótese de que políticas afirmativas, as quais permitem que alguns negros ocupem postos importantes em empresas e na atividade estatal, e até mesmo o fato de os EUA terem tido um presidente negro “são essenciais para manutenção de um sistema de castas na era da neutralidade racial”. Fazem parecer que a raça não é mais relevante. Só que basta ver as taxas de negros encarcerados, desempregados e vivendo na pobreza para se concluir o contrário.

Basta de subornos raciais. A luta pelo fim das castas – tanto nos EUA como no Brasil – deve ser radicalizada, para que todos e não apenas alguns negros e algumas negras possam deixar esse sistema injusto e excludente.

E a primeira e urgente providência é o fim da “guerra contra os negros” (às drogas).

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