Mídias digitais impulsionam protagonismo local em narrativas sobre as favelas

HBS entrevista a jornalista Thamyra Thâmara, do coletivo GatoMÍDIA

Do Boell

O advento da web 2.0, marcada pela intensificação das formas de compartilhamento, tornou possível que qualquer cidadão com acesso à internet produza seu próprio conteúdo e o publique em plataformas diversas, como blogs, websites e, mais recentemente, redes sociais, sem o menor custo. Paralelamente, o avanço e a popularização de diversas tecnologias da informação vêm dando à sociedade acesso a recursos que jamais estariam ao seu alcance em um contexto pré-digital. Se há poucos anos apenas um grande veículo de comunicação poderia arcar com os custos exorbitantes do equipamento necessário para se fazer uma transmissão ao vivo, hoje qualquer pessoa munida de um celular e um aplicativo como o Twitcasting pode tomar parte nesse empreendimento.

Essa possibilidade de se atingir públicos amplos utilizando linguagens variadas, a custos virtualmente inexistentes, vem impulsionando a criação de uma série de novos coletivos de mídia. Estruturados em rede e ancorados unicamente nas redes sociais, eles têm contribuído para dar voz a novos atores e para difundir narrativas mais plurais. Em entrevista à Fundação Heinrich Böll Brasil, a jornalista Thamyra Thâmara, do Complexo do Alemão, fala sobre a importância dos meios digitais para comunicadores populares das favelas, espaços estigmatizados pela mídia tradicional como territórios que se resumem à carência de recursos e à violência.

Thamyra Thâmara é jornalista, fotógrafa e idealizadora do GatoMÍDIA, além de escrever para a página Anastácia Contemporânea e para a Revista DR sobre o empoderamento da mulher negra e feminismo. Thamyra estará presente na mesa “Mundo digital e a sociedade civil: possibilidades e desafios”, que acontecerá dia 08/10 no evento Ambivalências Digitais, no Rio de Janeiro, com transmissão ao vivo pela internet.

HBS: Como foi criado o coletivo GatoMÍDIA, do qual você faz parte? Quais seus principais objetivos e como ele se organiza?

Thamyra: Diante das particularidades que envolvem a favela, esse espaço muitas vezes precisou inventar sua forma de estar na cidade. Um exemplo disso são os tradicionais “gatos”, maneiras que os moradores desses lugares encontraram para utilizar desde serviços básicos, como água e luz, até serviços de necessidade contemporânea, como internet ou TV a cabo. Isso aponta esse território como um espaço de constante inventividade e criação de soluções para suas demandas, uma vez que esses serviços são oferecidos de maneira deficiente pelos órgãos competentes.

Entendendo o “gato” como uma forma não-tradicional de acesso a serviços, o GatoMídia propõe uma formação em conjunto nas ferramentas de mídia alternativas: facebook, youtube, twitter, instagram. Fazemos cobertura colaborativa e damos “macetes” para potencializar esses recursos para gerar visibilidade para seu projeto, trabalho ou causa.

HBS: O GatoMÍDIA organizou esse ano o evento Favelado 2.0, que contou com uma oficina de cobertura colaborativa e outra de fotografia. Qual a metodologia utilizada nesses encontros e qual a importância de se incentivar o protagonismo dos moradores das favelas nas narrativas que são construídas sobre elas?

Thamyra: A principal metodologia é apresentar os recursos do celular como importantes ferramentas de trabalho e enfrentamento das desigualdades. Favelado 2.0 é um conceito que está sendo desenvolvido pela equipe. A gente acredita que o Favelado 2.0 é aquele garoto ou aquela garota que mora na favela ou periferia urbana e não tem Mac em casa, mas faz questão de ter um celular bacana da última moda, como Samsung ou Iphone. Ele já nasceu na época do wi-fi livre e adora fazer uma boquinha. O seu celular é extensão do seu corpo, carrega pra lá e pra cá. Faz selfie da festa na laje ou no quintal de casa, mas não deixa de filmar o conflito no beco. Nenhum acontecimento no seu território passa despercebido pelas lentes do seu android. Não é especialista em softwares ou aplicativos, mas é especialista na rataria. É só sair um aplicativo novo que já começa a testar. O favelado 2.0 faz da lan house seu lugar de pesquisa e sociabilidade, gosta de mostrar seu talento com a música, a dança e a moda com vídeos no youtube. Tem sua linguagem própria no facebook, “noiz por noiz”, gosta de usar a timeline como diário de sua visão de mundo. Faz evento no face só para encontrar os amigos. Adora fazer meme de si e da galera. Tem os muros da favela como lugar de expressão e o clique como espaço de reverberação. Ele tem o seu celular como dispositivo afetivo e a viela como principal inspiração.

HBS: Segundo a publicação “Mídia e Favela”, até seu ano de publicação (2012) havia 104 veículos de mídia alternativa em favelas e espaços populares da região metropolitana do Rio de Janeiro e, dos 73 que responderam ao questionário do levantamento, mais da metade eram veículos de internet. De que forma as mídias digitais vêm contribuindo para dar voz a novos atores vindos das periferias e acentuar as batalhas pela significação desses espaços? Você acredita que os coletivos de comunicação são canais para o fortalecimento da democracia?

Thamyra: Sim, acho que esse na verdade foi o grande marco para os veículos de comunicação popular. Estão cada vez mais ganhando seu espaço de legitimidade dentro e fora da favela. Isso faz com que muitas vezes o jornal da favela desminta (ou mostre uma outra versão) o jornal da grande mídia e, quando isso acontece, ela precisa se retratar ou é obrigada a dar a versão dos moradores. Essa força que o morador de favela tem através das redes sociais de poder colocar a qualquer momento o que está rolando na comunidade sem mediação de terceiros é o que fortalece a luta pela democratização da informação.

Outro fato importante é o aparecimento das lan houses desde 2010 nos territórios populares. Antes mesmo de o jovem da favela ter acesso a um computador pessoal ou a um celular com internet, as lan houses, verdadeiros centro tecnológicos nas favelas, gambiarras favelês, abriram espaço para a inclusão digital nas comunidades. Acredito que não só o acesso às mídias digitais, mas também o empoderamento que vem do uso das ferramentas digitais nas redes contribuem para a visibilidade de diferentes subjetividades, para a revindicação de direitos e o acesso à cidade por meio da comunicação.

HBS: Qual o público-alvo dos conteúdos produzidos pelos veículos alternativos? Os próprios moradores das favelas, para reforçar sua identificação e a luta por direitos, e/ou as pessoas de fora das favelas, a fim de mudar uma imagem estigmatizada das periferias? Você acredita que as pessoas de fora estão abertas a esses novos discursos contra-hegemônicos?

Thamyra: Depende muito. De um tempo para cá vejo que vários coletivos jovens de favela têm falado muito do “noiz por noiz”, que é a ideia de a favela falar com a própria favela. Mas uma plataforma na internet não está limitada apenas a uma comunidade ou território. As redes são uma área “sem dono”, caiu na net está visível para todo mundo. Esse debate com o outro que complica, porque qualquer debate na internet, principalmente com quem pensa diferente, é raso. Acredito que o discurso das minorias nas redes contribui mais para fortalecer e empoderar a luta que já existe há anos. Mas não acho que convence quem já pensa diferente.

HBS: Em 2010, a equipe do Jornal Voz das Comunidades, liderada por Rene Silva, de 17 anos, utilizou o Twitter para narrar em tempo real a ocupação do Complexo do Alemão pela polícia militar. Em dias em que o Alemão era a maior pauta dos jornais e que emissoras como a Globo interromperam sua programação para transmitir imagens ao vivo, qual foi a importância de se ter uma voz da própria comunidade cobrindo os acontecimentos?

Thamyra: Acredito que ter um jovem de favela narrando seu lugar a partir de seu ponto de vista é extremante importante e simbólico. Mas se só temos um fazendo isso, é um grande risco de cair nos mesmos estereótipos combatidos.

HBS: A mídia tradicional tem feito coro para apoiar a redução da maioridade penal e difundir uma cultura pautada no medo. Você acredita que a posição pró-redução da imprensa tem ganhado espaço nas favelas? Esse tema tem sido disputado pelos coletivos de mídia das periferias. Como tem sido essa experiência?

Esse ano eu estava numa marcha no Complexo do Alemão contra a morte de um jovem negro assassinado pela polícia militar e na hora que a imprensa tradicional chegou, moradores e ativistas começaram a gritar sai “Rede Globooo”. Vi muito repórter ficar surpreendido com a postura. Acredito que o debate sobre o papel da grande mídia na construção do imaginário da favela como um lugar de carência e marginalidade tem sido muito falado hoje na favela. Não só pelos favelados ligados a movimentos sociais, como também pelos moradores que não têm nenhum envolvimento político direto. Está bem claro hoje que a mídia hegemônica não tem contribuído com o papel de informar e sim que vem há anos criminalizando as minorias.

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