Milton Santos

Milton Almeida dos Santos (Brotas de Macaúbas, Bahia, 3 de maio de 1926 – São Paulo, São Paulo, 24 de junho de 2001) foi um advogado brasileiro. Apesar de ter se graduado em Direito, Milton destacou-se por seus trabalhos em diversas áreas da Geografia, em especial nos estudos de urbanização do Terceiro Mundo. Foi um dos grandes nomes da renovação da geografia no Brasil ocorrida na década de 1970.

 

BIOGRAFIA


Milton Santos nasceu no município baiano de Brotas de Macaúbas em 3 de maio de 1926. Ainda criança, migrou com sua família para outras cidades baianas, como Ubaituba, Alcobaça e, posteriormente, Salvador. Em Alcobaça, com os pais e os avós maternos (todos professores primários), foi alfabetizado e aprendeu álgebra e a falar francês.

 

Aos 13 anos, Milton dava aulas de matemática no ginásio em que estudava, o Instituto Baiano de Ensino. Aos 15, passou a lecionar Geografia e, aos 18, prestou vestibular para Direito em Salvador. Enquanto estudante secundário e universitário marcou presença na militância política de esquerda. Formado em Direito, não deixou de se interessar pela Geografia, tanto que fez concurso para professor catedrático no Colégio Municipal de Ilhéus. Nesta cidade, além do magistério, desenvolveu atividade jornalística, estreitando sua amizade com políticos de esquerda. Nesta época, escreveu o livro Zona do Cacau, posteriormente incluído na Coleção Brasiliana, já com influência da Escola Regional francesa.

 

Em 1958, concluiu seu doutorado na Universidade de Strasburgo, na fronteira da França com a Alemanha. Ao regressar ao Brasil, criou o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais, mantendo intercâmbio com os mestres franceses. Após seu doutorado, teve presença marcante na vida acadêmica, em atividades jornalísticas e políticas de Salvador. Em 1960, o presidente Jânio Quadros o nomeia para a subchefia do Gabinete Civil, tendo viajado a Cuba com a comitiva presidencial – o que lhe valeu registro nos órgãos de segurança nacional após o golpe de 1964.[1]

 

EXÍLIO


Em função de suas atividades políticas junto à esquerda, Milton foi perseguido pelos órgãos de repressão da ditadura militar. Seus aliados e importantes políticos intervieram junto às autoridades militares para negociar sua saída do país, após ter cumprido meio ano de prisão domiciliar. Milton achou que ficaria fora do país por 6 meses, mas acabou ficando 13 anos. Milton começa seu exílio em Toulouse, passando por Bordeaux, até finalmente chegar em Paris em 1968, onde lecionou na Sorbonne, tendo sido diretor de pesquisas de planejamento urbano no prestigiado IEDES.

 

Permaneceu em Paris até 1971, quando se mudou para o Canadá. Trabalhou na Universidade de Toronto. Foi para os Estados Unidos, com um convite para ser pesquisador no Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde trabalha com Noam Chomsky. No MIT trabalha em sua grande obra, O Espaço Dividido. Dos EUA viaja para a Venezuela, onde atua como diretor de pesquisa sobre planejamento da urbanização do país para um programa da ONU. Neste país manteve contato com técnicos da Organização dos Estados Americanos. Estes contatos facilitaram sua contratação pela Faculdade de Engenharia de Lima, onde foi contratado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para elaborar um trabalho sobre pobreza urbana na América Latina.

 

Posteriormente, foi convidado para lecionar no University College de Londres, mas o convite ficou apenas na tentativa, já que lhe impuseram dificuldades raciais. Regressa a Paris, mas é chamado de volta à Venezuela, onde leciona na Faculdade de Economia da Universidade Central. Segue, posteriormente para Tanzânia, onde organiza a pós-graduação em Geografia da Universidade de Dar es Salaam. Permaneceu por dois anos no país, quando recebeu o primeiro convite de uma universidade brasileira, a Universidade de Campinas. Antes disso, regressa à Venezuela, passando antes pela Universidade de Colúmbia de Nova Iorque.

 

RETORNO AO BRASIL


No final de 1976, houve contatos para a contratação de Milton pela universidade brasileira, mas não havia segurança na área política e o contato fracassou. Em 1977, Milton tenta inscrever-se na Universidade da Bahia, mas, por artimanhas político-administrativas, sua inscrição foi cancelada. Ao regressar da Universidade de Colúmbia iria para a Nigéria, mas recusou o convite para aceitar um posto como Consultor de Planejamento do estado de São Paulo e na Emplasa. Esse peregrinar lhe custou muito, mas sua volta representou um enorme esforço de muitos geógrafos, destacando-se Armen Mamigonian, Maria do Carmo Galvão, Bertha Becker e Maria Adélia de Souza. Quanto ao seu regresso, Milton tinha um grande papel nas mudanças estruturais do ensino e da pesquisa em Geografia no Brasil.

Após seu regresso ao Brasil, lecionou na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) até 1983. Em 1984 foi contratado como professor titular pelo Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), onde permaneceu mesmo após sua aposentadoria.

 

A TRAJETÓRIA E O RECONHECIMENTO


Embora pouco conhecido fora do meio acadêmico, Santos alcançou reconhecimento fora do país, tendo recebido, em 1994, o Prêmio Vautrin Lud, (conferido por universidades de 50 países).

Milton Santos foi dos poucos cientistas brasileiros que, expulsos durante a ditadura militar (naquilo que foi conhecido por êxodo de cérebros), voltaram depois ao país. Foi disputado por diversas universidades, que o queriam em seus quadros.

 

Sua obra O espaço dividido, de 1979, é hoje considerada um clássico mundial, onde desenvolve uma teoria sobre o desenvolvimento urbano nos países subdesenvolvidos. Apresenta a contribuição de Milton Santos à busca de uma teoria do espaço e da urbanização no terceiro mundo. O geógrafo considera que o fenômeno do subdesenvolvimento carece de um esforço de compreensão global, sem o qual a solução de problemas particulares é impossível. É um esforço original de interpretação sistemática e interdisciplinar da evolução econômica social, política e ao mesmo tempo geográfica do conjunto dos países do terceiro mundo. Partindo da análise de inúmeras variáveis, e apoiado num vasto elenco de exemplos baseados na África, América latina e na Ásia, o autor chega a interpretações próprias sobre o fenômeno complexo que é o subdesenvolvimento e suas repercussões na vida das populações a ele submetidas, sobretudo nos comportamentos espaciais e suas leis em uma situação de dependência.

 

Suas idéias de globalização, esboçadas antes que este conceito ganhasse o mundo, advertiam para a possibilidade de gerar o fim da cultura, da produção original do conhecimento – conceitos depois desenvolvidos por outros. Por uma Outra Globalização, livro escrito por Milton Santos dois anos antes de morrer, é referência hoje em cursos de graduação e pós-graduação em universidades brasileiras. Traz uma abordagem crítica sobre o processo perverso de globalização atual na lógica do capital, apresentado como um pensamento único. Na visão dele, esse processo, da forma como está configurado, transforma o consumo em ideologia de vida, fazendo de cidadãos meros consumidores, massifica e padroniza a cultura e concentra a riqueza nas mãos de poucos.

 

ESPAÇO: ABORDAGEM INOVADORA


A obra de Milton Santos é inovadora ao abordar o conceito de espaço. De território onde todos se encontram, o espaço, com as novas tecnologias, adquiriu novas características para se tornar um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações.

 

As velhas noções de centro e periferia já não se aplicam, pois o centro poderá estar situado a milhares de quilômetros de distância e a periferia poderá abranger o planeta inteiro. Daí a correlação entre espaço e globalização, que sempre foi perseguida pelos detentores do poder político e econômico, mas só se tornou possível com o progresso tecnológico.

 

Para contrapor-se à realidade de um mundo movido por forças poderosas e cegas, impõe-se, para Santos, a força do lugar, que, por sua dimensão humana, anularia os efeitos perversos da globalização.

Estas idéias são expostas principalmente em sua obra A Natureza do Espaço (Edusp,2002)

 

ATIVIDADES, PRÊMIOS E DISTINÇÕES


Por seus méritos, universidades e instituições ligadas à Geografia passam a outorgar-lhe títulos acadêmicos e honrarias. Os mais importantes são:

· Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud, Paris, 1994
· Mérito Tecnológico, Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo, 1997
· Personalidade do Ano, Instituto dos Arquitetos do Brasil, 1997
· Jabuti, 1997 – Prêmio pelo melhor livro das Ciências Humanas por A Natureza do Espaço – Técnica e Tempo, Razão e Emoção
· Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico, 1995
· Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 1997
· Homem de Idéias 1998, homenagem do Jornal do Brasil a Milton Santos, em 1998
· Contemplado em concurso nacional da Revista Isto É como um dos 20 “Cientistas do Século”, conforme encarte Especial nº 7, de 04 de agosto de 1999


Milton Santos teve o título de Doutor Honoris Causa pelas seguintes instituições:


· Universidade de Toulouse, França, 1980
· Universidade Federal da Bahia, 1986
· Universidade de Buenos Aires, 1992
· Universidade Complutense de Madri, 1994
· Universidade do Sudoeste da Bahia, 1995
· Universidade Federal de Sergipe, 1995
· Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1996
· Universidade Estadual do Ceará, 1996
· Universidade de Passo Fundo/RS, 1996
· Universidade de Barcelona, 1996
· Universidade Federal de Santa Catarina, 1996
· Universidade Estadual Paulista, 1997
· Universidade Nacional de Cuyo, Argentina, 1997


 

Além da vida acadêmica, Milton Santos desempenhou outras atividades, entre as quais:


· Presidente ou membro de distinguidas entidades profissionais, como:
o Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB)
o Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur)
o Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (Anpege)[carece de fontes?]
· Consultor de organismos como:
o Organização Internacional do Trabalho (OIT)
o Organização dos Estados Americanos(OEA)
o Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco)
o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
o Secretaria da Educação Superior (SESu/MEC)
o Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp/SP)


 

PUBLICAÇÕES


Até 1998, seu currículo apresentava:
· 44 livros publicados
· 231 artigos publicados (em português, francês, inglês, espanhol e japonês);
· 46 publicações em obras coletivas;
· 11 prefácios/apresentações em livros;
· 14 editorias ou co-editorias/organização de obras científicas, além de artigos em jornais de circulação nacional


Entre outras publicações:


· Revista Geosul, Florianópolis, nº 7, Ano IV, de 1989, “Entrevista com o Milton Santos”, realizada pelos docentes do Departamento de Geografia da UFSC;
· O Mundo do Cidadão – Um Cidadão do Mundo, Org.Maria Adélia A. de Souza, 1996;
· “Entrevista Explosiva: Mestre Milton” – Revista Caros Amigos, agosto de 1998;
· “Homem de Idéias – 1998: Milton Santos – Geografia e Cidadania”, Caderno Idéias e Livros do Jornal do Brasil, edição de 26 de dezembro de 1998;
· “Entrevista – Milton Santos”, por José Corrêa Leite, em Teoria e Debate, Revista da Fundação Perseu Abramo, Ano 12, nº 40, fev/mar/abr 1999;
· “Milton Santos”, Caderno Especial nº 7, O Cientista do século, da Revista Isto é, edição de 4 de agosto de 1999).[2]


LIVROS


· SANTOS, Milton. A cidade nos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira S.A., 1965.
· SANTOS, Milton. Geografía y economía urbanas en los países subdesarrollados. Barcelona: Oikos-Tau S.A. Ediciones, 1973.
· SANTOS, Milton. Sociedade e espaco: a formacão social como teoria e como método. Boletim Paulista de Geografia, São Paulo: AGB, 1977, p. 81- 99.
· SANTOS, Milton. Por uma Geografia nova. São Paulo: Hucitec-Edusp, 1978.
· SANTOS, Milton. O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo. SP: Hucitec, 1978.
· SANTOS, Milton. Pobreza urbana. São Paulo/Recife: Hucitec/UFPE/CNPV, 1978.
· SANTOS, Milton. Economia espacial: críticas e alternativas. SP: Hucitec, 1979.
· SANTOS, Milton. Espaço e sociedade. Petrópolis: Vozes, 1979.
· SANTOS, Milton. O espaço dividido. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979 (Coleção Ciências Sociais).
· SANTOS, Milton. A urbanização desigual. Petrópolis: Vozes, 1980.
· SANTOS, Milton. Manual de Geografia urbana. São Paulo: Hucitec, 1981.
· SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Hucitec, 1982.
· SANTOS, Milton. Ensaios sobre a urbanização latino-americana. SP: Hucitec, 1982.
· SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo: Nobel, 1985.
· SANTOS, Milton. O meio técnico-científico e a redefinição da urbanização brasileira. Projeto de pesquisa apresentado ao CNPq, 1986 (datilografado).
· SANTOS, Milton. Aspectos geográficos do Período Técnico-Científico no estado de São Paulo. Projeto de pesquisa apresentado à Fapesp, maio 1986 (datilografado).
· SANTOS, Milton. A região concentrada e os circuitos produtivos. Texto apresentado como parte do relatório de pesquisa do projeto O Centro Nacional: Crise Mundial e Redefinição da Região Polarizada, 1986 (datilografado).
· SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.
· SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. Paulo: Hucitec, 1988.
· SANTOS, Milton. O Período Técnico-Científico e os estudos geográficos: problemas da urbanização brasileira. Projeto de pesquisa apresentado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), mar. 1989 (datilografado).
· SANTOS, Milton. Metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo. São Paulo: Nobel/Secretaria de Estado da Cultura, 1990.
· SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.
· SANTOS, Milton. Por uma economia política da cidade. SP: Hucitec /Educ, 1994.
· SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo. São Paulo: Editora Hucitec, 1994.
· SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia A.(org.). A construção do espaço. São Paulo: Nobel, 1986.
· SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único a consciência universal. São Paulo: Editora Record, 2000.
Sobre Milton Santos
· ELIAS, D. “Milton Santos: a construção da geografia cidadã”. In: El ciudadano, la globalización y la geografía. Homenaje a Milton Santos. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, núm. 124, 30 de septiembre de 2002.http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-124.htm [ISSN: 1138-9788]


· Encontro com Milton Santos

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Ligações externas



O Wikiquote tem uma coleção de citações de ou sobre: Milton Santos.
· Folha Online Brasil
· Milton Santos
· AGB – perfil do Prof. Milton Santos

 

Referências


1. ↑ Site da Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior. <http://www.abmes.org.br/miltonsantos/Biografia/index.asp> Acessado em 12 de maio de 2009.
2. ↑ MILTON SANTOS RECEBE O TÍTULO DE PROFESSOR HONORIS CAUSA NA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UnB)

Obtido em “http://pt.wikipedia.org/wiki/Milton_Santos”

Obtido em “http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Espa%C3%A7o_Dividido”

Categorias: Geógrafos do Brasil | Ensaístas do Brasil | Professores da Universidade de São Paulo
Fonte: Folha de S.Paulo

Ser negro no Brasil hoje
Por Milton Santos

{xtypo_quote}Ética enviesada da sociedade branca desvia enfrentamento do problema negro{/xtypo_quote}

http://www.ige.unicamp.br/~lmelgaco/santos.htm

Há uma frequente indagação sobre como é ser negro em outros lugares, forma de perguntar, também, se isso é diferente de ser negro no Brasil. As peripécias da vida levaram-nos a viver em quatro continentes, Europa, Américas, África e Ásia, seja como quase transeunte, isto é, conferencista, seja como orador, na qualidade de professor e pesquisador. Desse modo, tivemos a experiência de ser negro em diversos países e de constatar algumas das manifestações dos choques culturais correspondentes. Cada uma dessas vivências foi diferente de qualquer outra, e todas elas diversas da própria experiência brasileira. As realidades não são as mesmas. Aqui, o fato de que o trabalho do negro tenha sido, desde os inícios da história econômica, essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes deu-lhe um papel central na gestação e perpetuação de uma ética conservadora e desigualitária. Os interesses cristalizados produziram convicções escravocratas arraigadas e mantêm estereótipos que ultrapassam os limites do simbólico e têm incidência sobre os demais aspectos das relações sociais. Por isso, talvez ironicamente, a ascensão, por menor que seja, dos negros na escala social sempre deu lugar a expressões veladas ou ostensivas de ressentimentos (paradoxalmente contra as vítimas). Ao mesmo tempo, a opinião pública foi, por cinco séculos, treinada para desdenhar e, mesmo, não tolerar manifestações de inconformidade, vistas como um injustificável complexo de inferioridade, já que o Brasil, segundo a doutrina oficial, jamais acolhera nenhuma forma de discriminação ou preconceito.

 

500 anos de culpa

Agora, chega o ano 2000 e a necessidade de celebrar conjuntamente a construção unitária da nação. Então é ao menos preciso renovar o discurso nacional racialista. Moral da história: 500 anos de culpa, 1 ano de desculpa. Mas as desculpas vêm apenas de um ator histórico do jogo do poder, a Igreja Católica! O próprio presidente da República considera-se quitado porque nomeou um bravo general negro para a sua Casa Militar e uma notável mulher negra para a sua Casa Cultural. Ele se esqueceu de que falta nomear todos os negros para a grande Casa Brasileira. Por enquanto, para o ministro da Educação, basta que continuem a frequentar as piores escolas e, para o ministro da Justiça, é suficiente manter reservas negras como se criam reservas indígenas. A questão não é tratada eticamente. Faltam muitas coisas para ultrapassar o palavrório retórico e os gestos cerimoniais e alcançar uma ação política consequente. Ou os negros deverão esperar mais outro século para obter o direito a uma participação plena na vida nacional? Que outras reflexões podem ser feitas, quando se aproxima o aniversário da Abolição da Escravatura, uma dessas datas nas quais os negros brasileiros são autorizados a fazer, de forma pública, mas quase solitária, sua catarse anual?

 

Hipocrisia permanente

No caso do Brasil, a marca predominante é a ambivalência com que a sociedade branca dominante reage, quando o tema é a existência, no país, de um problema negro. Essa equivocação é, também, duplicidade e pode ser resumida no pensamento de autores como Florestan Fernandes e Octavio Ianni, para quem, entre nós, feio não é ter preconceito de cor, mas manifestá-lo. Desse modo, toda discussão ou enfrentamento do problema torna-se uma situação escorregadia, sobretudo quando o problema social e moral é substituído por referências ao dicionário. Veja-se o tempo politicamente jogado fora nas discussões semânticas sobre o que é preconceito, discriminação, racismo e quejandos, com os inevitáveis apelos à comparação com os norte-americanos e europeus. Às vezes, até parece que o essencial é fugir à questão verdadeira: ser negro no Brasil o que é? Talvez seja esse um dos traços marcantes dessa problemática: a hipocrisia permanente, resultado de uma ordem racial cuja definição é, desde a base, viciada. Ser negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo. Essa ambiguidade marca a convivência cotidiana, influi sobre o debate acadêmico e o discurso individualmente repetido é, também, utilizado por governos, partidos e instituições. Tais refrões cansativos tornam-se irritantes, sobretudo para os que nele se encontram como parte ativa, não apenas como testemunha. Há, sempre, o risco de cair na armadilha da emoção desbragada e não tratar do assunto de maneira adequada e sistêmica.

 

Marcas visíveis

Que fazer? Cremos que a discussão desse problema poderia partir de três dados de base: a corporeidade, a individualidade e a cidadania. A corporeidade implica dados objetivos, ainda que sua interpretação possa ser subjetiva; a individualidade inclui dados subjetivos, ainda que possa ser discutida objetivamente. Com a verdadeira cidadania, cada qual é o igual de todos os outros e a força do indivíduo, seja ele quem for, iguala-se à força do Estado ou de outra qualquer forma de poder: a cidadania define-se teoricamente por franquias políticas, de que se pode efetivamente dispor, acima e além da corporeidade e da individualidade, mas, na prática brasileira, ela se exerce em função da posição relativa de cada um na esfera social.

Costuma-se dizer que uma diferença entre os Estados Unidos e o Brasil é que lá existe uma linha de cor e aqui não. Em si mesma, essa distinção é pouco mais do que alegórica, pois não podemos aqui inventar essa famosa linha de cor. Mas a verdade é que, no caso brasileiro, o corpo da pessoa também se impõe como uma marca visível e é frequente privilegiar a aparência como condição primeira de objetivação e de julgamento, criando uma linha demarcatória, que identifica e separa, a despeito das pretensões de individualidade e de cidadania do outro. Então, a própria subjetividade e a dos demais esbarram no dado ostensivo da corporeidade cuja avaliação, no entanto, é preconceituosa.

A individualidade é uma conquista demorada e sofrida, formada de heranças e aquisições culturais, de atitudes aprendidas e inventadas e de formas de agir e de reagir, uma construção que, ao mesmo tempo, é social, emocional e intelectual, mas constitui um patrimônio privado, cujo valor intrínseco não muda a avaliação extrínseca, nem a valoração objetiva da pessoa, diante de outro olhar. No Brasil, onde a cidadania é, geralmente, mutilada, o caso dos negros é emblemático. Os interesses cristalizados, que produziram convicções escravocratas arraigadas, mantêm os estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais. Na esfera pública, o corpo acaba por ter um peso maior do que o espírito na formação da socialidade e da sociabilidade.

Peço desculpas pela deriva autobiográfica. Mas quantas vezes tive, sobretudo neste ano de comemorações, de vigorosamente recusar a participação em atos públicos e programas de mídia ao sentir que o objetivo do produtor de eventos era a utilização do meu corpo como negro -imagem fácil- e não as minhas aquisições intelectuais, após uma vida longa e produtiva. Sem dúvida, o homem é o seu corpo, a sua consciência, a sua socialidade, o que inclui sua cidadania. Mas a conquista, por cada um, da consciência não suprime a realidade social de seu corpo nem lhe amplia a efetividade da cidadania.

Talvez seja essa uma das razões pelas quais, no Brasil, o debate sobre os negros é prisioneiro de uma ética enviesada. E esta seria mais uma manifestação da ambiguidade a que já nos referimos, cuja primeira consequência é esvaziar o debate de sua gravidade e de seu conteúdo nacional.

 

Olhar enviesado

Enfrentar a questão seria, então, em primeiro lugar, criar a possibilidade de reequacioná-la diante da opinião, e aqui entra o papel da escola e, também, certamente, muito mais, o papel frequentemente negativo da mídia, conduzida a tudo transformar em “faits-divers”, em lugar de aprofundar as análises. A coisa fica pior com a preferência atual pelos chamados temas de comportamento, o que limita, ainda mais, o enfrentamento do tema no seu âmago. E há, também, a displicência deliberada dos governos e partidos, no geral desinteressados do problema, tratado muito mais em termos eleitorais que propriamente em termos políticos. Desse modo, o assunto é empurrado para um amanhã que nunca chega.

{xtypo_quote}Ser negro no Brasil é, pois, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta. Logo, tanto é incômodo haver permanecido na base da pirâmide social quanto haver subido na vida. {/xtypo_quote}

Pode-se dizer, como fazem os que se deliciam com jogos de palavras, que aqui não há racismo (à moda sul-africana ou americana) ou preconceito ou discriminação, mas não se pode esconder que há diferenças sociais e econômicas estruturais e seculares, para as quais não se buscam remédios. A naturalidade com que os responsáveis encaram tais situações é indecente, mas raramente é adjetivada dessa maneira. Trata-se, na realidade, de uma forma do apartheid à brasileira, contra a qual é urgente reagir se realmente desejamos integrar a sociedade brasileira de modo que, num futuro próximo, ser negro no Brasil seja, também, ser plenamente brasileiro no Brasil.

 

Artigo escrito por Milton Santos, geógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Fonte: Folha de S.Paulo – Mais – brasil 501 d.c. – 07 de maio de 2000

http://www.ige.unicamp.br/~lmelgaco/santos.htm

 

Pesquisa e seleção de imagens:Carlos Eugênio Marcondes de Moura

Imagens obtidas em Google Imagens

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